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3 QUEM SÃO ESSAS MULHERES? DO ROMANTISMO À

3.3 Realismo e naturalismo: um antimodelo

Como discutíamos no primeiro capítulo, Dona Guidinha do Poço, romance de Oliveira Paiva, pode ser considerada uma das obras mais bem realizadas durante a influência realista- naturalista nas letras nacionais. Dando continuidade ao trabalho iniciado por Visconde de Taunay, Paiva retoma os procedimentos suscitados ainda no Romantismo em relação ao espaço,

42 Essas disparidades de gênero ficam claras já nos títulos da produção desse autor, pois enquanto seus romances urbanos suscitam imagens femininas - A viuvinha (1857), Lucíola (1862), Diva (1864) e Senhora (1875) -, suas obras regionalistas aludem, majoritariamente, ao universo masculino: O Guarani (1857), O gaúcho (1870), O

sertanejo (1875). Esse tratamento díspar evidencia ainda mais as relações de poder existentes entre homem e

mulher, em que o primeiro ocupa os papéis sociais que importavam nos respectivos contextos: o sertanejo no sertão, o guarani na tribo, o gaúcho no pampa, etc., enquanto a mulher nessas conjunturas é apenas adereço da atuação masculina.

quando, de fato, articula personagem-ação-ambiente sem que haja hierarquização de uma categoria ou outra. Neste romance, Paiva transforma as descrições das paisagens em “índice revelador” das subjetividades das personagens, a começar por Guida, protagonista da trama, aproximando-se, com isso, do tratamento realista.

Como vimos, a construção dramática da narrativa se organiza em torno da protagonista, desenvolvendo-se a partir de suas escolhas. Embora trate do problema da seca, Dona Guidinha

do Poço dá enfoque à questão humana, a problemáticas universais, evitando o localismo

pitoresco que se verifica em tantas outras obras de sentido regionalista do mesmo período ou mesmo anteriores a ela. Como já dissemos, aqui o espaço regional vai sendo incorporado à narrativa à medida que o conflito se desenvolve, trazendo para o tecido narrativo a realidade local: linguagem, embora haja críticas ao uso do registro oral, valores, tipos humanos, paisagem, dentre outros aspectos. Desse modo, o caráter do espaço, até então pictórico, ganha agora dramaticidade e função estética na produção de sentido da narrativa.

Além disso, as inovações não se restringem apenas ao novo tratamento dado à linguagem, às personagens e ao dado regional. Mais do que isso, a representação da mulher acompanha o ritmo das transformações, destoando, em grandes proporções, das imagens anteriores. Parece, inclusive, que enquanto o Romantismo criou modelos de mulheres “perfeitas”, servis, envoltas em ares de santidade, como exemplo a ser seguido por toda uma genealogia, tal como se vê em Iracema, Inocência e outras, o Naturalismo-realismo, por outro lado, criou antimodelos, cujas condutas deveriam ser evitadas, refutadas enquanto parâmetro de “boa mulher”, segundo as convenções sociais da época.

Margarida ou Dona Guida, protagonista do romance em questão, marca o início de um novo modo de representar as figuras femininas na tradição regionalista. Irreverente, Dona Guida não comunga do padrão heroico naturalista, em que a passividade é traço determinante. Trata- se de uma mulher forte, geniosa, exigente, capaz de conduzir os rumos de sua própria vida e determinar o destino de todos à sua volta. Herdeira de larga fortuna em gado, terra, ouro e escravos – eis aqui o pressuposto libertador –, Margarida é chamada “chefa” e “Rainha” das terras que comanda, dada a sua influência sob a lei e a população local. Poderosa, era de “costume, daquela senhora, pródiga, respeitada, festeira e influente, soltar criminosos, obrigar a casamentos, e ser sempre assim honrada de longas comitivas à entrada e saída da vila.” (PAIVA, 1981, p. 60). Por sua atuação, Guida antecede, de certo modo, a Flauzina de “Esses Lopes”, de Guimarães Rosa, e a Maria Moura, de Raquel de Queiroz.

A conduta da protagonista está totalmente centrada em seus próprios interesses, tanto é que, ao contrário do que se esperava de uma “princesa” de família abastada, filha do capitão-

mor da vila, Margarida casou-se aos 22 anos, idade considerada ultrapassada para as moças de seu calibre, com um homem 16 anos mais velho que ela, o Major Joaquim Damião de Barros, pois, antes de se casar, quis “desfrutar a vidoca.” (PAIVA, 1981, p. 3).

Filha única, Guida era órfã de mãe e foi criada por seu pai, o Major Venceslau, que, desgostoso “de que ela não fosse macho” (PAIVA, 1981, p. 3), nunca pôs limites aos exageros da filha, nem teve autoridade que lhe freasse o gênio mandão. Aos dez anos de idade, por capricho, obrigou o pai a mandar fazer-lhe um cilhão pequeno, apropriado para seus quadris, para que ela pudesse montar a cavalo e “aos quatorze anos, quando as nossas meninas são feitas de amor e de susto, Guidinha atravessou o impetuoso Curimataú, de margem a margem, só porque uma outra duvidou.” (PAIVA, 1981, p. 5).

Desde pequena era protegida da avó, aprendeu a ler e escrever – habilidade mais comum aos jovens e meninos de famílias ricas –, saía e voltava quando queria, corria a vila montada nas garupas dos rapazes quando moça, sem se importar com sua reputação ou cortejadores, tal como agiria um jovem mancebo a essa idade.

Os parentes se queixavam de que o Venceslau, viúvo, criou a menina assoluta. O caso é que ela cresceu com todos os pendores naturais, uns por enfrear, outros por desenvolver. Criou-se como a vitela do pasto. A avó, mulher do primeiro Reginaldo, tão ríspida na educação dos filhos, foi de uma notável frouxidão para com a neta Guidinha. Se acontecia o pai repreender a bichinha, logo a velha reclamava [...] Saía de casa e entrava quando queria. Corregia a vila sozinha, habituada como estava aos conselhos e birras da avó, que parecia achar certo gozo, diga-se a verdade, nas desobedienciazinhas da sua primeira neta. (PAIVA, 1973, p. 27-28).

Mais moça, tornou-se a verdadeira coronela daquela província do século XIX: geria os negócios da família, ordenava e desmandava seus criados, interferia nas decisões políticas, nos assuntos de milícia, religiosos e da comunidade de Quixeramobim. Nada passava imune à sua aprovação, sendo dela a última palavra.

Depois que o pai morreu, Margarida se casou com o major Joaquim Damião de Barros, pernambucano que chegou àquela região para comprar cavalos, e por ali ficou. Apesar do pouco amor, viveram bem até que Luís Secundino, sobrinho de seu marido, veio fugido de Goianinha, acusado de matar o seu padrasto e refugiou-se na fazenda do tio. A presença do moço desperta o interesse de Guida, que é prontamente correspondido por Secundino. A paixão torna-se incontrolável e, consequentemente, indisfarçável, a ponto de Major Quinquim, ao perceber as insinuações, expulsá-lo da fazenda. Enfurecida, Guida resolve encomendar a morte do marido com um famoso assassino da região. Este, porém, desiste no ato, mas Guida não se intimida, ordenando que Naiú, filho de um empregado da fazenda, execute sua ordem. Quinquim é

assassinado e todos se voltam contra Naiú. Guida é delatada e presa ao som de vaias e alarde da comunidade.

Em um trabalho dedicado a rastrear e analisar os diferentes tipos de donzelas-guerreiras que se fazem presentes no imaginário de culturas bastante diferenciadas, Walnice Nogueira Galvão (2000) caracteriza os atributos que definem os traços dessa figura cativante, recorrente em mitologias religiosas, tradições indígenas, etc. Para compreender os diversos perfis da

donzela-guerreira, é preciso compará-los entre si e com os das demais personagens femininas

que povoam o universo literário, reunindo tanto as características que lhes são comuns como aquelas que as diferenciam. Em síntese, porém, é possível dizer que “ela se destaca, de saída, por ser outra: ela não é mãe, nem esposa, nem prostituta, nem feiticeira, etc. Seu nicho muito especial deve ser procurado ali onde não radica nenhuma dessas.” (GALVÃO, 1997, p. 34).

Nesse panorama, Margarida parece enquadrar-se no tipo “Mandonas e Autárquicas”, nome que intitula um dos subcapítulos do estudo de Galvão, no qual a autora analisa diferentes donzelas-guerreiras dessa estirpe, pertencentes aos mais diversos filões literários, citando Dona Guidinha do Poço como caso mais relevante de nossa literatura. Diz a autora que o romance se destacaria por examinar o percurso de uma “mandona” desde as suas origens e formação até as últimas consequências de seus mandos (GALVÃO, 1997. p. 212), o que ocorre de fato em Dona

Guidinha do Poço, visto que a narrativa tem início na infância de Guida e vai até a sua idade

adulta, quando ela atinge o auge de sua excentricidade, ao caminhar orgulhosa e segura de si mesma rumo à prisão.

Além disso, Galvão explica que essas matronas, incluindo Luzia-Homem, de quem logo falaremos, “têm um cunho de força da natureza uma sexualidade marcante uma independência, um comando de si e dos outros”, encontrando antecedentes em José de Alencar, cujas personagens urbanas femininas – Aurélia, Diva, dentre outras – têm “mais discernimento, mais inteligência e sobretudo mais caráter que as personagens masculinas.” (GALVÃO, 1997, p. 212).

Quanto ao primeiro aspecto elencado pela autora, Guidinha se mostra, desde a juventude, muito dona de si mesma. Contrariando as regras da moral e dos bons costumes, ainda adolescente aventurou-se em carícias e afagos com os moçoilos da vila, sendo, inclusive, motivo de duelos e competição:

Os mancebos que frequentavam a casa, frequentavam-na sem dúvida por causa da moça, por via de ser ela muito das liberdades, muito amiga de agradar, não poupando nem mesmo as pequenas carícias que uma donzela, senhora de si, pode conceder sem prejuízo de sua física inteireza. (PAIVA, 1973, p. 290).

Quando adulta, casou-se por desejo e não por amor. Esta é a tese que defende Marta Célia Feitosa Bezerra (2006), em dissertação intitulada Dona Guidinha: o poço dos desejos. Ao final da pesquisa, Bezerra conclui, dentre outras coisas, que Dona Guida só se casou com o major Quinquim para poder realizar os seus desejos sexuais sem maiores constrangimentos e reprovações.

Desde o início, a atração era física e não algo sublime, feito de afeto e idealização. Nesta discussão, a defesa é de que a personagem revela uma nova condição para o feminino naquele contexto, justamente por não representar a esposa dedicada, apaixonada, pronta para satisfazer os desejos de seu cônjuge. Do mesmo modo, quando se vê atraída por Secundino, não hesitou em tirar de seu caminho os empecilhos que impediam a consumação dessa paixão proibida. No entanto, sabemos que o destaque dado pelo autor ao lado mais instintivo da personagem está diretamente ligado ao conjunto de escolhas estéticas e temáticas que tecem o Naturalismo literário. Isto, somado ao perfil contraventor da protagonista, cria uma imagem “libertária” de Guida, porém não se podem perder de vista os aspectos estilísticos que contribuem para produzir tal feição.

É bem verdade, também, que o romance traz outra configuração de estrutura familiar nordestina: em vez de uma numerosa prole, Margarida é filha única. Ao contrário da realidade de muitas moças, o seu casamento foi escolhido e planejado por ela mesma. Depois de falecido o pai, não foram contratados contadores ou especialistas que administrassem os negócios da família, tudo ficou sob sua responsabilidade, e ela assumiu sozinha, e com destreza, a gerência dos recursos de sua herança, da fazenda e de todo engenho. Aqui identifica-se a superioridade social e intelectual de que fala Galvão.

Era Guida quem ditava as regras de sua casa e de tudo o mais que o seu poderio alcançava. Respeitada por todos, mandava soltar, prender, perseguir e matar a quem desejasse, mantendo todos debaixo de suas ordens, subordinados às suas vontades, inclusive o próprio marido: “Margarida era, pois, uma criatura como ela mesma. Em casa, de branca, ela. O mais, preto, inferior, escravo, até o próprio marido, branco é verdade, mas subalterno pela sua índole e por não ter trazido ao monte um vintém de seu.” (PAIVA, 1987, p. 129).

Nesse ponto, parece que tanto a submissão do marido como a de todos que a cercavam, inclusive as figuras públicas e políticas, estão atreladas a um único e fundamental aspecto: a singular condição financeira de Guida, incomum a qualquer jovem moça daquele tempo. Isso justifica, inclusive, todas as regalias e facilidades que ela, enquanto mulher, teve durante toda a sua vida. Na verdade, ela foi criada “como homem”, com a liberdade de um, e só faz o que

faz porque economicamente ocupa um lugar exclusivamente masculino na tradição patriarcal. Quinquim, apesar de major, era mais modesto, e se sujeita aos mais diversos caprichos da matrona porque era ela quem sustentava o seu padrão de vida. Trata-se, portanto, não só de uma questão de gênero, mas também de uma questão de classe.

Não é só por ser uma mulher impulsiva e meticulosa que Guida consegue controlar tudo e a todos. Para além de sua personalidade incomum, ela é rica, a mulher mais rica de toda a província, e é por isso, certamente, que funcionários, juízes e moradores da região acatavam suas ordens. Semelhante a Aurélia, de Senhora, Margarida transita com tranquilidade e segurança por esse universo masculino de policiais, delegados e homens de poder, numa época em que as mulheres passavam a maior parte do tempo trancafiadas em suas casas, dedicando- se à lida doméstica. Margarida, por sua vez, dispõe de uma condição financeira privilegiada, que autoriza o seu acesso à esfera pública – interditada às mulheres durante todo o século XIX –, levando-a a ocupar o posto de patriarca, investido de prestígio e poderio. Sua condição econômica favorável acaba, portanto, garantindo liberdade. Em síntese, Guida antecipa, de certo modo, os anseios e comportamentos da mulher independente que viria a existir, com ressalvas, no século XX. Mas aqui não se trata ainda desse tipo de mulher.

Ao olharmos para esse romance com os olhos do século XXI, a forma com que Dona Guida conduz a sua vida certamente não nos causará estranhamento, visto que em nossos dias, ainda que prevaleçam as raízes do patriarcado, as mulheres já assumem determinados papéis antes censurados. Mas naquele contexto, considerando que Dona Guidinha do Poço data do final do século XIX, sob influência do Naturalismo, é preciso investigar o porquê de o autor inverter o papel social feminino, dando poder em suas mãos, bem como as implicações disso na obra e no contexto na qual ela está inserida.

O tratamento naturalista que descaracteriza a personagem acaba por inverter e/ou modificar o seu lugar de atuação na sociedade patriarcal. Ao contrário do que se espera de uma jovem mulher, Guida age como se exercesse autoridade soberana não só sobre suas propriedades, mas sobre toda a região, rebatendo, inclusive, as ordens de seu pai quando ele ousa contrariá-la. Daí a força naturalista que subverte o tradicional “lugar de mulher”, equiparando-a, com restrições, às figuras masculinas, o que propicia maior liberdade ao seu comportamento, permitindo que eles fiquem em pé de igualdade. Na construção dessa imagem, a mediação do narrador é fundamental, pois é ele quem cria juízo de valor acerca dos personagens, através de seus comentários carregados, quase sempre, de ironia e julgamento.

Já nas primeiras referências a Guida já se nota o tom depreciativo da narração, que destaca os traços físicos da menina que não condiziam com o padrão de feminilidade de sua época:

Nadava de braça como os homens, e não como as mulheres, que trabalhavam com as mãos por debaixo d’água, pelo instinto do pejo, e vão assim batendo os pés à tona [...] Feiosa, faixa, entroncada, carrancuda ao menor enfado [...] a mulher parece antes um homem, ou antes um animal sem sexo. Margarida era muitíssimo do seu sexo, mas das que são pouco femininas, pouco mulheres, pouco damas, e muito fêmeas. (PAIVA, 1891, p. 28-29).

Observa-se, aí, a insinuação profundamente conservadora e moralista da estereotipia de feia, indelicada, animalesca e “machona”, procedimento que também se repete em Luzia-

Homem (2015), outra obra realista-naturalista que comentaremos mais adiante. É nesse sentido

que a caracterização da personagem, propositalmente deformada para fins pedagógicos, referenda os padrões naturalistas. A figura de Guida exerce, então, uma função singular na narrativa: a de representar um modelo, tal qual Iracema, mas às avessas; sua performance deve chocar o leitor daquele horizonte de recepção para melhor produzir o efeito de reprovação desse tipo de mulher: virilizada, autoritária e inconsequente. Sua performance é, portanto, construída segundo as estratégias naturalistas, a fim de atender à missão moralizadora do romance, o que não invalida o ímpeto transgressor de sua personalidade.

Por transgredir os padrões de feminilidade de seu tempo e contexto, muitos estudos apontam-na como responsável por inaugurar uma nova condição para o feminino nos paradigmas da tradição regionalista. Outros críticos, como é o caso de Flávio Loureiro Chaves (2010), julgam por bem aproximá-la das personagens que o Realismo engendrou:

A personagem feminina que surge na enigmática aridez da paisagem sertaneja é das mais vivas de nossa literatura, só encontrando paralelo, nessa época, na Capitu de Dom Casmurro. Deveríamos, por questão de coerência, procurar um paralelo na linguagem regionalista e, então, aproximá-la de Luzia-Homem de Domingos Olímpio. Mas a aproximação, neste caso, seria imprópria. Luzia- Homem traz a marca do naturalismo – sertaneja bárbara e forte, tem seu perfil exterior mais saliente que as linhas psicológicas [...] Já em Guida [...] a vontade feminina levada à extrema capacidade do ódio, tudo faz com que nos defrontemos com uma personalidade inteiriça e complexa, como só o são as mulheres machadianas ou, já amadurecido o regionalismo contemporâneo, a Ana Terra de Érico Veríssimo. Guida é uma personagem irmã de Capitu: marcada pela vontade inabalável e pelo poder feminino de acioná-la. (CHAVES, 2010, p. 5).

De fato, o determinismo naturalista se esvanece aqui, à medida que o seu desenvolvimento psicológico e variação temperamental ganham relevante expressão. Concordamos, também, que seu desempenho transgride em parte, o conjunto de regras vedadas

ao padrão de conduta feminino da época. Entretanto, não se pode perder de vista o que de fato possibilitou suas transgressões: sua vasta riqueza.

Pode-se dizer que trocar o casamento precoce pela vida de moça rica e solteira foi uma das primeiras regras infringidas por ela. Guida se casou quando e com quem quis, numa sociedade em que as mulheres eram obrigadas a se casar com quem conviesse à família, para então assumir os papéis mais importantes de suas vidas, segundo as convenções patriarcais: os de esposas, mães e donas de casa. Passados alguns anos, em complô com o amante e sobrinho, planeja o assassinato do próprio marido. Ao matar, ela transgride para além do que seria possível não puni-la, ultrapassando todos os limites lícitos.

Com isso, referenda o seu papel de antimodelo, reiterando as convenções e os valores da tradição. Guida personifica, em síntese, um outro estereótipo: o da mulher que, descontrolada, torna-se incontrolável, regida por uma furiosa articulação de melindres, caprichos, vaidades, cobiças e um desejo ameaçador – a síntese perfeita do antiexemplo naturalista, se considerarmos o horizonte sociocultural de produção e recepção imediatos da obra. Por outro lado, sua conduta nos reafirma o perfil autárquico de donzela-guerreira, postulado por Galvão (1997, p. 34), justamente por ser a outra dentre todas, ou seja, “não é mãe, nem esposa, nem prostituta, nem feiticeira”, é todas elas ou nenhuma dessas: é o que quiser ser.

O já mencionado Luzia-Homem, romance publicado em 1903, traz a irreverente Luzia, personagem naturalista que, semelhante a Dona Guidinha, é moldada segundo as diretrizes estéticas que constituem essa tendência, atendendo, inclusive ao mesmo apelo pedagógico suscitado por Manuel de Oliveira. Trata-se, igualmente, de uma donzela-guerreira, nascida para a guerra, dotada de força e bravura:

[...] é descriminada em seu meio por suas maneiras masculinas, pois tem “energia máscula” e “músculos de aço”, transporta cinquenta tijolos na cabeça de uma só vez, é valente e soberba, rejeita a corte dos homens, enquanto labuta no ofício de carregador nas obras públicas da frente de trabalho retirante em Sobral. Até os 18 anos, filha única e braço direito do pai vaqueiro, andara vestida de encourado; e o pai a elogiava por não ser mulher, mas “um homem como trinta”. (GALVÃO, 1997, p. 174).

Ao contrário de Guida, julgada por suas características psicológicas, aqui o narrador se detém na aparência física da moça, em seu porte e fisionomia, sendo esta a estratégia de choque e contraste utilizada na criação de antiexemplos femininos. Para tanto, as digressões, comentários e descrições atribuídas à personagem visam transformá-la numa aberração, capaz

de despertar o estranhamento e a repulsa de todos à sua volta. Isso fica demonstrado nas falas das personagens:

- É de uma soberbia desmarcada - diziam as moças da mesma idade, na