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REALIZANDO A FESTA

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O bem viver: Cotidianos experimentados pelos irmãos do Rosário.

2.3 REALIZANDO A FESTA

Normalmente as irmandades empregavam algo em torno de vinte a quarenta por cento de seus rendimentos na concretização das festas. Essas despesas verificáveis na contabilidade das entidades se referem ao seu núcleo considerado formal. Temos armação de capela, cera, clérigos, rosários, música e fogos como exemplos. Na verdade, a tessitura da sociabilidade entre os seus componentes estava diretamente implicada com as realizações das suas atividades, sua capacidade mobilizadora. E, dessa maneira, suas perspectivas de existência também se deviam à distinção que um festejo ao santo de devoção empregaria como identidade social à entidade. A festa, sendo central nesse intento, não espanta, então tanto esforço em torno de sua efetivação. 190

A festa em homenagem à Senhora do Rosário, sem dúvida, exigia grande dedicação por parte de todos da associação. Um festejo em homenagem ao santo de devoção consistia em uma tradição de todas as irmandades desde a Idade Média. E, no final do século XVI o Papa Gregório XIII determinou a obrigatoriedade da festa nas irmandades do Rosário no primeiro domingo de outubro, onde deveria haver oferta de graças e indulgências aos confrades para comemorar o sucesso na Batalha de Lepanto em 1571. Depois, foi reiterada esta decisão pelo Papa Inocêncio XI determinando festejo com o que ele chamou de “ofício de rito”, desta vez para marcar a vitória contra os turcos.191

Na ocasião da festa, no início do século XVIII os confrades da Irmandade de Igarassu deveriam ofertar suas esmolas. Na realidade os óbolos nesse contexto, consistiam em taxas obrigatórias, visto o risco de se tornarem inadimplentes, aproveitando a entidade, o momento, para forçar que ofertassem. Estas doações seriam depositadas em uma caixa que seria trancada à chave. Desta, haveriam três cópias distribuídas da seguinte forma: uma com o tesoureiro, outra com o juiz

190 AGUIAR, Marcos Magalhães de. Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades

negras de Minas Colonial. In Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. Organizado

por: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.) Vol. I. São Paulo: Edusp, 2001., p 361, 365 e 378.

77 e, outra, ainda, ficaria sob o domínio da juíza da irmandade192.

No Rosário da Vila do Recife era necessário o comparecimento de todos os seus componentes na véspera da festa e, no dia do festejo, seria preciso a demonstração de muita gravidade, asseio e quietação para participar da comemoração, o que nos revela que, ao menos no documento oficial, a exigência de um comportamento normatizado era a tônica. A mesa administrativa da irmandade deveria ser posta na igreja. Tudo se daria de modo pomposo e cerimonioso, com o Juiz e outros oficiais assistindo o desenrolar dos acontecimentos sem descuidar da cruz da instituição, hasteada até o fim. Enquanto isso o escrivão cuidava de se colocar a postos com os devidos livros em que ia registrando as esmolas, as entradas e as mordomagens recebidas - todas essas taxas aqui denominadas habilitavam os pagantes para a associação, ou para assumir cargos na mesa regedora. Acabada a festa [...] o que for despendendo, o Tesoureiro se irá lançando no livro da Despesa, e da mesma forma o que for recebendo no livro da Receita, tendo nestes assentos toda a cautela e declaração neles; advertindo porém que abandonará a cada um ainda que seja um sô ano de anual paraseus nomes ao Irmão, ou Irmã que pagar [...]. O dinheiro recebido deveria ser recolhido aos cofres da irmandade e com ele seriam pagas as despesas da festa diante da presença de todo o seu corpo administrativo. 193

Na constituição nona do compromisso da dita irmandade determina ainda que, como foi instituída desde a antiguidade, a festa se dará na segunda dominga de outubro. Sabendo disso, quando estiver faltando dois meses para a sua realização, antes da eleição dos oficiais da irmandade, o juiz da mesa mandará chamar os irmãos que ocupam cargos, assim como os demais, para que em conjunto decidam a feitura da festa. Esta deveria se cumprir com toda solenidade possível, ser assistida por todos os irmãos e irmãs, tanto na véspera - para provavelmente cuidarem dos preparativos - quanto no dia de seu acontecimento. Na seqüência o documento descreve que, em havendo terço, como é uso, e procissão, a suntuosidade deveria estar presente, pois se deverão levar as

192 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Vila de Igarassu. 1706. op.

cit., f. 07 e 07 v.

193 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Vila do

78 [...] carolas, e mais insígnias os Irmãos da Mesa elegeram os Irmãos mais velhos que serviram em cargos para as Varas do Palio principalmente os ex Juizes, e ex escrivões, enquanto as Espórtulas dos Reverendos Sacerdotes se guardará o Costume Antigo, a ser por véspera, a Missa quatro mil Reis ao ReverendoPároco, e de qualquer festa cinco patacas a cada acólito, e ao turíbulo dois cruzados, e sendo com procissão dará ao Reverendo Pároco seis mil Reis, e a cada acólito dois mil Réis.[...]194

A tradição, o brilho, a animação, a expectativa, o desfecho. Finalização sempre esperada com glória, suntuosidade determinante da consideração que se possuía pela mãe de Deus. Com tanta movimentação em torno de um acontecimento, de tantas formas realizado – terços rezados com fervor, missas, procissões, apresentações dramáticas, danças, roupas especiais. Com tantos cargos a serem ocupados, rituais de inversão a serem curtidos - afinal quando um escravo pode ser rei? Ser eleito, eleger, ser visto, admirar, ser admirado e invejado, se entregar com adoração à sua Senhora do Rosário, se sentir espiritualmente cumpridor de um dever! Pensar por dois meses em uma festa. Planejar, organizar, se sentir fazendo parte, logo este ser tão espoliado de tudo, que tinha que lidar com uma morte em vida, pois

[...] o cativeiro, é a morte ou quase morte do servo, é a vida do servo tal vida, que mais parece morte; ainda que natural e fisicamente viva, política e civilmente está morto. Porque assim como a vida natural do homem consiste no exercício das ações políticas e civis[...] Mas se hei de dizer o que sinto, esta morte civil do servo não é inferior à morte natural, antes muito semelhante a ela, e estou em dizer que a mesma.[...]

195

Embora civilmente morto, ressurreto pelos rituais. Rituais de festa, rituais da

194 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Vila do

Recife. 1782. op. cit., Constituição nona.

195 BENCI S. I. Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro brasileiro

79 adoração assunção da morte cível inclusão pela via espiritual. Iguala-se diante de Deus embora não o possa diante da lei. Isso demonstra como o humano pode subverter. E subvertem no cotidiano, os negros do Rosário.

Muito estava em jogo. O prestígio dos participantes medido por aquisição de cargos, eleições que os afirmariam perante os seus pares, e, ao menos por um dia, a possibilidade de serem vistos pelos donos de gente, através das lentes e da beleza de uma festa, lugar onde tudo cintila. Em uma sociedade tão exterior em suas expressões, onde o aparentar é quase também ser não é de admirar os conflitos, as disputas, os quebra cabeças extra e intramuros à irmandade. Gente sedenta de aceitação e valorização brigando para se apropriar de um espaço legalmente concedido e transformá-lo, ampliá-lo para o mais próximo possível da medida dos seus desejos. Assim era a festa do Rosário, um hiato entre o desejo e uma realidade.

A fim de revelar um pouco mais do vivido abordaremos alguns fragmentos de sua história nos quais consideramos possível entrever um pouco mais de suas experiências.

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