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2.3 – Relações dialógicas entre memória e esquecimento

2.4 Reatualização da cultura popular

Discorreremos sobre algumas ponderações acerca da cultura popular relacionadas a questões históricas e políticas. Posteriormente, retomaremos as considerações a respeito da cultura popular relacionada às questões da memória e do esquecimento.

No contexto da Idade Média, a cultura popular e a oficial conviviam em muitos momentos de forma paralela, mas também de maneira interativa. Um bom exemplo dessa realidade está nos estudos sobre a obra de Rabelais realizados por Bakhtin (1993), nos quais se afirma que tanto o popular como o erudito coexistiam no pensamento do homem feudal. Dessa forma, a comicidade14 – característica marcante na cultura popular – se fazia presente no cotidiano do povo, assim como a seriedade, a penitência – marcas da cultura oficial.

No século XVI, a cultura popular pertencia à sociedade como um todo. Até mesmo a palavra povo estava relacionada a todos da sociedade e indicava gente de respeitabilidade (BURKE, 1989). Em meados do século XVII, essas culturas ainda não se distanciavam, uma vez que a nobreza estava inserida no contexto da cultura popular. Havia, além disso, uma grande aceitação por parte da nobreza do universo popular com suas crenças religiosas, seus costumes, festejos, jogos.

Todavia, Ortiz (1985) assegura que mesmo participando ativamente da cultura popular, a nobreza cada vez mais elaborava os componentes de sua própria cultura, o que situa um embate entre essas duas culturas. Em contrapartida, a massa popular não tinha acesso à dita cultura erudita. Desse modo, um processo de isolamento entre cultura

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A sociedade feudal era marcada por uma ideologia de opressão e intimidação, requerendo, portanto, um comportamento baseado na seriedade, na redenção e na penitência e assim condenava o riso, visto como uma emanação diabólica. Destarte, não havia lugar para o riso nas esferas oficiais ideológicas, sociais, econômicas e culturais. No entanto, havia a necessidade da “legalização” do riso à parte das cerimônias oficiais legitimadas pela igreja. Essa realidade era perpetuada e vivenciada nas manifestações à margem dos cultos religiosos, canônicos e ganhava força nas festas do povo, que promovia cultos paralelos, em ruas e tavernas, com características cômicas. Desse modo, é perceptível a necessidade do homem feudal de ter momentos de riso, de festa, de profanação, para depois retornar ao seu cotidiano sério, religioso e castrador (BAKHTIN, 1993).

popular e erudita passou a ser mais declarado, havendo, consequentemente, uma repressão a tudo que se caracterizava com o popular.

Já no fim do século XVIII, as ideias iluministas iam tomando conta do pensamento intelectual da época, designando assim uma grande influência em todos os setores da sociedade. Em meados do século XIX, o capitalismo industrial já estava bem consolidado e o progresso tecnológico nos transportes e máquinas era uma realidade que exaltava a inteligência humana. Os intelectuais da época defendiam o conhecimento crítico da realidade na qual se estava inserido.

Segundo Catenacci (2001), os intelectuais também se voltavam a uma ideia iluminista do domínio científico, da dominação da natureza. E com a racionalização do pensamento, pretendia-se romper as amarras do mito, do pensamento supersticioso, das crenças religiosas que, de certa forma, tinham uma relação com a cultura popular. Ou seja, o pensamento iluminista estava relacionado às ideias científicas, ao pensamento racional e à produção econômica capitalista, visando ao progresso tecnológico. Observa-se que no século XIX, em grande parte da Europa, há um abandono da cultura popular pelo clero, comerciantes, nobreza, entre outros. E assim, apenas artesãos, camponeses e demais sujeitos das classes rotuladas como subalternas, ainda permaneceram em contato direto com a cultura popular.

Portanto, os motivos religiosos e políticos foram essenciais no processo de cisão cultural que foi ficando cada vez mais evidente, já que a nobreza se distanciava consideravelmente dos hábitos populares e criava outros para si, mesmo que estes fossem elaborados a partir de referências populares. Outrossim, a Reforma15 e a Renascença16 contribuíram bastante para que o comportamento sociocultural de seus

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Movimento social liderado pelo monge Martin Lutero no século XVI, que protestava contra inúmeras práticas da Igreja Católica, propondo uma reforma no catolicismo. Recebeu apoio de vários governantes e religiosos europeus, promovendo a cisão da Igreja do Ocidente entre os católicos romanos e os reformados ou protestantes. Nesse contexto, surgiu o Protestantismo (JOHNSON, 2001).

16 Período iniciado por volta do século XIV, que alcança seu auge no século XVI, em que há um retorno cultural aos padrões clássicos a partir dos estudos dos cânones artísticos da Antiguidade. É nesse período que o homem passa a estudar a si mesmo, sendo, ao mesmo tempo, o próprio objeto de observação e o observador (JOHNSON, 2001).

partícipes ganhasse uma formatação de embate com o caráter despojado e livre da cultura popular (JOHNSON, 2001).

Dessa maneira, os clérigos passaram a adotar condutas mais sisudas, a nobreza e a burguesia buscaram um novo modo de se apresentarem perante a sociedade, totalmente diferente do comportamento de artesãos, camponeses, e que outrora era corriqueiro a todos. Assim, era comum que a nobreza também compartilhasse do mesmo universo costumeiro dos campesinos através da religiosidade, das crendices, das manifestações culturais próprias do povo. Este não tinha acesso à cultura da nobreza, que cada vez mais se fortalecia e se distanciava da cultura popular (BURKE, 1989).

Já no decorrer do século XX, o termo popular foi ganhando características mercadológicas, quando as forças midiáticas o utilizaram na incorporação de processos culturais hegemônicos criando, portanto, produtos vendáveis e de gosto popular, os quais tinha uma notoriedade, mas não provinham do próprio povo (CATENACCI, 2001).

Todavia, o progresso tecnológico não suprime a cultura popular, pois mesmo com a expansão de setores midiáticos, industriais e comerciais, as culturas tradicionais têm uma dinamicidade peculiar que acompanha tais processos evolutivos, até porque é de interesse do próprio progresso incluir em sua lógica a cultura popular, para que os sujeitos a ela pertencentes possam identificar uma estrutura simbólica identificatória constante no progresso tecnológico e, com isso, ele possa ser considerado e absorvido por tal público (CANCLINI, 2006).

É uma visão mercadológica da cultura popular que se configura numa realidade muitas vezes negativa por tratar a cultura como um mero produto que pode ser refeito a partir dos interesses do próprio capital. Outrossim, existe também a possibilidade de uma maior propagação e fortalecimento da cultura popular a outros sujeitos através de recursos da própria lógica capital.

Assim, a cultura tradicional é disseminada, uma vez que a dinâmica do mercado permite que um público extenso e variável possa usufruir de seus bens. Desse modo, recursos como festivais de dança e teatro popular, feira de artesanato, encontros e/ou

seminários de cultura popular, entre outros, têm êxito porque também utilizam os meios massivos de comunicação para atingir um maior público. Outra questão associada à cultura popular vincula-a apenas com a vida campesina. No entanto, as influências urbanas, por exemplo, propõem interações versáteis, criando percursos para a cultura popular que, ao se deparar com a dinamicidade e o caos urbano, recebem suas influências de natureza comportamental, econômica e sociocultural, dentre outras (CANCLINI, 2006).

Outra ideia em que a cultura popular se faz presente está arrolada a questões de luta de classes relacionada aos trabalhadores, aos oprimidos, e que sempre trava um enfrentamento diante da cultura pertencente ao bloco de poder, a cultura letrada, erudita (HALL, 2003). Além disso, a cultura popular, muitas vezes, ganha um aspecto de cultura permissiva, dominada, que pode ser invadida de qualquer modo e sem forças para enfrentar forças culturais externas opressoras, sendo, em alguns momentos, subjugada intelectualmente por uma cultura elitizada (CHAUI, 2006).

Indo em direção contrária a essas visões que subjugam a cultura popular a algo menor em relação à cultura erudita, concordamos com Chatier (1995) ao argumentar que a cultura popular ao se revestir de influências de outras culturas não denota necessariamente uma submissão. Ela consegue desencadear um arcabouço de referências que vai culminar num elemento cultural com conteúdos próprios e importados. Isso revela não apenas uma heterogeneidade cultural, mas o próprio caráter dinâmico da cultura popular essencial à sua sobrevivência, pois a cultura popular não está arraigada à imobilidade, ao arcaico, ao resquício ou tem essência que denote pureza e inacessibilidade.

Ao discutir sobre a cultura popular, Chaui (2006) nos apresenta um interessante pensamento de Antonio Gramsci que atribui várias significações simultâneas ao que poderia ser popular na cultura, possuindo assim um caráter multifacetado. Nesse sentido, o popular está relacionado à possibilidade de reconhecimento, identificação e compreensão espontânea do povo sobre ideias, situações, etc., por se tornarem universais, bem como o popular se configura na capacidade de transformação de momentos gerados no âmbito social em temáticas da crítica social que o povo identifica.

Contudo, pensamos ser pertinente evidenciarmos as considerações daquela autora sobre a perspectiva gramsciana em relação ao popular na cultura significando

[...] a transfiguração expressiva de realidades vividas, conhecidas, reconhecíveis e identificáveis, cuja interpretação pelo artista e pelo povo coincide. Essa transfiguração pode ser realizada tanto pelos intelectuais “que se identificam com o povo” quanto por aqueles que saem do próprio povo, na qualidade de seus intelectuais orgânicos (CHAUI, 2006, p. 95).

Nesse sentido, entendemos e defendemos que a cultura popular não é subalterna, submissa e/ou arcaica. Concordamos com as ponderações anteriores sobre a cultura popular relativa ao que é pertencente aos sujeitos de uma sociedade, uma vez que remete justamente à circularidade cultural (GINZBURG, 2006) que promove uma influência mútua entre a cultura popular e a erudita, num processo de retroalimentação, de renovação cultural para ambas.

O popular aqui é compreendido como integrante do cotidiano do conhecimento dos sujeitos pertencentes a qualquer nível da sociedade, não sendo atribuído somente a um cenário social marginalizado e subalterno que alguns estudiosos insistem em situar quando se referem à cultura popular.

Em relação ao Grupo Parafolclórico da UFRN, percebemos que suas produções artísticas trajetam numa perspectiva de renovação da cultura popular que, ao dialogar com demais saberes, promove um movimento dinâmico de variadas referências, contribuindo para sua própria continuidade sem estabelecer hierarquias ou delimitação de territórios estanques. É o que denota a seguinte fala:

[...] eu acho que essa questão da tradicionalidade que se renova ela também é possível de ser vista na própria dinâmica do grupo, na dinâmica da criação dos espetáculos, na dinâmica do que se pensa, e de quem pensa o que é, e quem faz o Grupo Parafolclórico da UFRN (Dançarino 3).

Situando nosso pensamento sobre a cultura popular enquanto processo dinâmico disponível a intercâmbios, pensamos ser importante retomarmos nossas reflexões acerca da cultura popular relacionada à memória e consequentemente ao esquecimento. Devido

a importâncias dos mesmos no processo de concepções dos espetáculos Flor do Lírio e Debaixo do Barro do Chão.

2.5 Cultura popular, memória e esquecimento no processo de criação