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CAPÍTULO III Paulo no projecto anti-gnóstico de Ireneu

III.1 Recepção de Paulo no século II

O século II é um período de activo fermento religioso. Em todas as partes e de todas as formas, se procura alcançar a desejada união da alma com Deus. Esta procura é expressa pela tentativa de traduzir o universo mental dos cristãos através da linguagem da cultura filosófica grega. Neste contexto, a figura de Paulo é central, pois nas suas Epístolas fornece um conceito bem determinado da Sabedoria cristã. Examinemos em detalhe a recepção de Paulo na cultura teológica e filosófica do século II.

O acolhimento do Apóstolo Paulo na Igreja sempre foi, e em certa medida continua a ser, controverso. Logo na Igreja nascente, vemos os “falsos apóstolos” a dividir as comunidades cristãs em relação a Paulo, que eles desaprovavam. Neste sentido devem ser interpretadas as tensões que surgiram, em Corinto, devido a uma contestação em relação à autoridade do apóstolo (1Cor.9,1)167. Mas o anti-paulinismo, manifesta-se em toda a sua força sobretudo depois da sua morte. Paulo foi o apóstolo dos gentios e por esta razão, muitos judeo-cristãos, que não viam com bons olhos o corte demasiado radical com o judaísmo, rejeitaram o convertido de Damasco. Segundo as fontes disponíveis, entre os grupos que mais oposição fizeram a Paulo, durante o século II, estão os ebionitas168. Estes rejeitavam o apóstolo dos gentios porque, segundo eles, ele anunciava a ineficácia da Lei e da circuncisão para a salvação169.

167 Cf. L. PADOVESE, «δ’antipaulinisme chrétien au II siècle», in Antonianum, Rome 2002, 50-54. 168 Seita judeo-cristã que cultivava a pobreza (ebhyonim quer dizer pobre em aramaico) e que tinha

como texto fonte uma reformulação do Evangelho segundo São Mateus, mas omitindo a concepção virginal e a ressurreição.

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Outra forma muito comum de não acolher Paulo, desta vez menos declarada, é o silêncio tendencioso. Este silêncio expressou muitas vezes desprezo e hostilidade velada. Entre os vários nos quais é possível entrever um esquecimento voluntário de Paulo poderíamos designar Hegesipo. Este, por volta do ano 180 d.C., escreveu cinco livros de memórias. Deles, possuímos alguns fragmentos que se referem especialmente à história da primeira comunidade de Jerusalém. Hegesipo informa-nos acerca de alguns grupos gnósticos que tiveram origem em seitas judaicas. Dos escritos deste autor percebemos uma grande preocupação em desenvolver o seu pensamento o mais próximo possível dos ensinamentos da lei. Para Hegesipo é evidente que a adesão a Jesus não exige um apelo a Paulo. Por esta razão, não é de estranhar o pouco interesse de Hegesipo na teologia da revelação em sentido Paulino e a sua preferência pelos dados histórico170.

Por volta de 130-140 d.C. outro autor, Pápias de Hierápolis, escreveu cinco livros intitulados Explicação das palavras do Senhor. Graças a Ireneu e Eusébio chegaram-nos treze fragmentos de sua obra. De acordo com Ireneu, Pápias era discípulo de João, e segundo Eusébio um contemporâneo de Policarpo, ao que parece, um pensador medíocre de ideias judeo-cristãs. Nos fragmentos de Pápias são nomeados Marcos e Mateus mas não Lucas e João, nem as cartas de Paulo ou o Livro do Apocalipse. Um estudo sobre os fragmentos mostra que, no fundo, Pápias queria recolher a tradição oral paradosis dos discípulos e apóstolos e, naturalmente, as cartas paulinas não se enquadram nesta categoria.

Se é verdade que a comunidade de Hierápolis nasceu graças ao zelo missionário de Epáfras, um discípulo de Paulo, e se é verdade que estava perto das comunidades paulinas de Colossos e Laodicéia e, se levarmos em conta a amizade entre Pápias e

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Policarpo, que estimava muito Paulo, então Pápias não poderia desconhecer Paulo e as suas cartas. Logo, as razões para o silêncio têm de ser encontradas noutro lugar, provavelmente numa certa desconfiança do pensamento de Paulo171. Mas, Paulo não foi só acolhido com frieza, muitos dos autores dos primeiros séculos o receberam sem quaisquer reservas, antes tornando-se autênticos discípulos seus, continuadores da sua teologia.

A primeira carta atribuída a Pedro é um dos primeiros textos que esclarecem o uso que era feito de S. Paulo. Sem dúvida, de origem romana e, talvez pertença a um discípulo do apóstolo de Roma esta carta endereçada aos cristãos provenientes do paganismo e dispersos pelo Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia. O nome de Pedro, que acompanha a carta, é um indicativo do pensamento e da alta estima de que gozava o apóstolo em regiões que Pedro nunca tinha visitado. Esta carta está impregnada de paulinismo moderado e tem afinidades com a Epístola aos Romanos. Provavelmente, a comunidade de Roma, mantendo viva a memória e unificando os dois homens, quer acomodar o pensamento das duas colunas como expressão de unidade da Igreja172.

Outros autores, muito influenciados por São Paulo, são Policarpo de Esmirna, Inácio de Antioquia e Clemente de Alexandria. O mais claramente influenciado por S. Paulo parece ter sido Policarpo, único personagem do século I a ser nomeado três vezes na carta aos Filipenses (3,2; 9,1; 11,2s). Para o bispo de Esmirna, o primeiro a demonstrar conhecimento das Cartas Pastorais, Paulo tem uma autoridade teológica incontestável173. Clemente na sua carta aos Coríntios faz pleno uso da primeira carta aos Coríntios e retoma o assunto da carta aos Romanos, mostrando conhecer também as

171 Cf. δ. PχDτVESE, «δ’antipaulinisme chrétien au II siècle», 81-86. 172 Cf. L. PADOVESE, «δ’antipaulinisme chrétien au II siècle»,30-42. 173 Cf. Por exemplo POLICARPO, 1,3; 2,1; 11,2.

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cartas aos Gálatas e Filipenses. O texto Clementino é uma amostra do apóstolo da fé e perseverança, e é o primeiro documento cristão a fazer uma associação de Pedro e Paulo, colocando-os no mesmo nível174.

Os textos paulinos são, por vezes ideologicamente alterados para apoiar teorias ou práticas particulares. Algumas passagens como 1 Cor 10,23; 2Tm2,18; 2 Pd 3,3; 3,6, permitem ver como o ensino de Paulo sobre a ressurreição, a liberdade, a emancipação das mulheres, geraram mal-entendidos. É por isso que podemos perguntar se o anti- paulinismo realmente tem como objecto Paulo ou interpretações tendenciosas de suas cartas. Um exemplo concreto é a carta de Tiago que quer corrigir um falso paulinismo que não tinha entendido a lei da liberdade proclamada pela Apóstolo. Outro exemplo, é o caso dos encratitas. Muitos textos de Paulo foram, por eles, alterados para proibir a procriação e outras coisas como evidenciado por Cassiano, representante do encratismo, reutilizando a 1Cor 11,3. Nos Acta Pauli, o apóstolo Paulo é apresentado como um missionário, curador, taumaturgo ascético e pregador da continência incluída como a única condição para a salvação e ressurreição do corpo enquanto o seu pensamento permanece em penumbra.