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Capítulo 1: A Escrita da História de Alice Piffer Canabrava e a Faculdade

1.2 A escrita da História em O Comércio Português no Rio da Prata (1580-1640): “uma

1.2.1 A recepção da tese

Após termos analisado a concepção de História de cada um dos membros da banca examinadora da tese de 1942 de Alice Piffer Canabrava, bem como as fontes por ela privilegiadas, passemos à recepção da mesma em âmbito nacional e internacional, uma vez que esta recepção também nos forneceu subsídios para pensarmos uma concepção de História. Em 1945 Leopoldo Antonio Feijó Bittencourt (1893-1957), segundo secretário do IHGB e membro da comissão permanente de História para os anos de 1944-1945, escreveu apreciação da tese de doutoramento de Alice, defendida em 1942 e publicada em 1944 no Boletim da Cadeira de História da Civilização Americana. A apreciação intitulou-se “Nota de Feijó Bittencourt” e se localizava na IV seção da Revista, intitulada “Crítica de livros”.

A Sra. D. Alice P. Canabrava, defendendo o título de doutora pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, escolheu como assunto o comércio português no Rio da Prata, e não podia voltar os olhos para o que fosse mais expressivo. É um amplo quadro de história da civilização esse comércio através da América do Sul, na parte onde correm as águas de grandes rios236.

235 Excerto de carta de Alice Canabrava a Francisco Iglésias, datada de 22/10/1972, constante do acervo

Francisco Iglésias do IMS: FI-C-CP (103), p. 2.

236 Ver: BITTENCOURT, Feijó. O COMÉRCIO BRASILEIRO NO RIO DA PRATA – 1580-1640) – por Alice

P. Canabrava. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 186, 1945, p. 202. Disponível em: <http://www.ihgb.org.br/rihgb/rihgb1945volume0186c.pdf>. Acessado em 20/11/2013.

Pode-nos causar certa mossa o fato de que alguém vinculado ao IHGB esteja alinhado a uma concepção de História que se vincula à História das Civilizações e não à História Política. Contudo, vimos no caso de Afonso Taunay que, destarte o fato de que esteve vinculado a instituições tidas como portadoras de uma visão dita tradicional de História, sua concepção de História estava muito além de uma mera História Política. Da mesma forma podemos pensar para o caso de Feijó Bittencourt, que tratou este trabalho de Alice como pertencente à História Social. “A história social, para cujo desenvolvimento a D. Alice Canabrava está concorrendo tanto, sempre se pronuncia em um sentido verdadeiro. Parece ela uma revisão necessária da História”237.

Realizou apontamentos importantes acerca da História Econômica, problematizados por Canabrava, como a questão da moeda e também sobre a formação da Argentina, comparando o fato de que, naquele momento, esta Nação se formava a partir de sua dinâmica interior, bem diferente do momento atual (1945) cujo centro dinâmico estava em torno de Buenos Aires. Bittencourt comparou esta mudança de centro dinâmico ao deslocamento do centro dinâmico da economia nos EUA, da região da Virgínia, no Sul, para os estados industrializados do Norte238.

Contudo, não há nenhuma referência aos “mestres franceses”, somente à “Escola de Filosofia da Universidade de São Paulo”239. A vinculação estabelecida pelo autor se deu em relação aos escritores argentinos.

No que escreve dessa região do Prata, D. Alice Canabrava lembra o melhor Carcano, aquele que é exato, criterioso, aquele que escreveu as Primeiras

lutas religiosas entre a Igreja e o Estado no governo de Tucuman. Surgem

nas suas páginas os homens improvisados pelo meio, criaturas ainda sem formação moral fixa, mas apressadas em tomar conta do meio, seja de que modo fosse, e fazendo das questões de ordem superior instrumento do seu interesse particular. Tanto no livro de D. Alice Canabrava como no de Ramon Carcano, os mesmos caracteres, a mesma espécie de homens se revela naquele meio platino240.

Alice utilizou-se dessa referência de Ramon Carcano em sua tese e o que podemos depreender do excerto acima é que Bittencourt preocupou-se em demarcar um importante aspecto da Geografia em Alice Canabrava. Como veremos no capítulo 3, sua formação vidaliana permitiu-a tratar das modificações que os homens imputaram no meio ao longo do tempo. Entretanto, Feijó Bittencourt mostrou-se extremamente preocupado em aproximar

237 Idem, p. 212.

238 Idem, p. 205. 239 Idem, p. 213. 240 Idem, p. 207.

Canabrava de Carcano, principalmente no que tange a uma análise da moral dos homens e um determinismo do meio social.

[...] é grande a semelhança moral entre os homens que ela aponta nos cargos administrativos e os que Carcano descreve envolvidos na luta entre a Igreja e o Estado. A mesma gente. E um livro, o da brasileira, explica o outro, o do argentino: o meio social daquele momento e daquele lugar é que fundamenta a história que por diversas vezes se tem escrito a respeito dele241.

Em seguida, Bittencourt retoma sua análise social, afirmando que mais um dos méritos da tese foi o de romper com a análise que vigorou por longo tempo, onde somente havia dois poderes: o poder local e o poder colonial, onde o segundo tentava se impor ao primeiro. Alice, segundo ele, teria demonstrado que o quadro era muito mais complexo. “Entretanto, ninguém imbuído dessa artificial concepção política da História, não via o grande desenrolar das questões econômicas dando feição e formação própria à história do Prata”242. A FFCL da USP teria adotado a concepção de História em seu ensino presente na obra de Capistrano de Abreu e Alice Canabrava seria um exemplo de superação de uma História- filosófica, ou seja, de uma História concebida como uma sucessão de etapas no tempo progressivo e evolutivo. “A ideia de evolução, isto é, de tornar as instituições, contingentes à transformação do mundo, não se vendo nele nada de permanente (sim, aquilo a que chamaram universal): é que caiu por terra”243.

Cerca de três anos depois dessa apreciação pelo historiador do IHGB, a tese foi comentada por Fernand Braudel na revista dos Annales, em um número todo dedicado à América Latina. A resenha constou da seção “L’Essor Économique” e levou o título de “Du Potosi a Buenos Aires: une route clandestine de l’argent”. Braudel iniciou a resenha afirmando que, ao longo do século XVI, a América do Sul esteve fora das principais correntes comerciais do mundo, à exceção de dois casos: a leste no Atlântico, entre o Recife e São Vicente, onde a cana de açúcar fez prosperar a região e trazer escravos e a oeste na região das minas de Prata de Potosí. Contudo, apontou para a mais miserável de todas as regiões da América do Sul: a Província do Paraguai e do Rio da Prata244. Em seguida, mencionou as dificuldades de se estabelecer na região, devido às suas condições geográficas e seguiu mencionando as dificuldades de ocupação da região em torno de Buenos Aires245.

241 Idem, p. 208-209.

242 Idem, p. 209. 243 Idem, p. 213.

244 BRAUDEL, Fernand. Du potosi à Buenos Aires: Une route clandestine de l´argent. Fin du XVe, début du

XVIIe siècle. Annales. Économie, Sociétés, Civilisations. Paris, n. 4, 1948, p. 546. Disponível em: <http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ahess_0395-2649_1948_num_3_4_2381>. Acessado em 20/11/2013.

Na segunda parte da resenha, Fernand Braudel mencionou que uma jovem historiadora formada pela leitura dos Annales, escreveu um importante livro sobre esta região.

Sur ces pays déshérités, au début de leur rude vie « coloniale », une jeune historienne brésilienne, Аliсе Piffer Canabrava, formée, orientée, je peux bien le dire, par la lecture et la connaissance de nos Annales, vient d'écrire un livre, son premier livre, dont il m'est agréable de dire la très grande importance246.

Em seguida, afirmou se tratar de um livro de fácil leitura, claro, exato, com método e a presença de referências de eruditos argentinos, espanhóis, portugueses e brasileiros, que foram cuidadosamente analisados, não sendo um esforço de erudição pela erudição. O mais importante para Braudel foi a percepção de Alice Canabrava de que as minas de Potosí e seu comércio estavam ligadas ao Brasil, Espanha, Portugal, África em uma conexão inter- oceânica. “C’est le mérite d’Alice P. Canabrava de les bien poser et de nos proposer des solutions vraisemblables... Et c’est son mérit encore, de ne pas rester attachée à l’étude du deul Rio de la Plata, si vast que soit cette enorme Gironde”247.

Na sequência, Braudel analisou a formação de Potosí e apontou para seu vertiginoso crescimento demográfico e também o estabelecimento de outras cidades ao longo da via do Pacífico. Após mencionar as características geográficas do caminho do Pacífico, viu como “natural” a busca pelo caminho do Atlântico. Mencionou os três possíveis caminhos para escoar a produção mineira: um passando por São Vicente, Iguape ou Cananea; um segundo, pelo caminho natural do Rio da Prata, Rio Paraná e Rio Paraguai; e a longa rota de Córdova a Buenos Aires248. Afirmou que o governo espanhol era contra esta rota e que o poder da prata era maior do que qualquer restrição. Era em Lisboa que terminava esse comércio ilegal. Era esta que fornecia escravos e também tecidos, assim como o Brasil fornecia açúcar e alimentos. Isso Braudel afirma que já era sabido desde o trabalho de Lafuente Machain. Este último, com o título de “Los portugueses em Buenos Aires. Siglo XVII”, de 1931, foi utilizado por Alice Canabrava em sua tese.

Como explicar a resenha dessa tese de Alice Canabrava em um periódico do IHGB, que em um primeiro momento logo ligamos a uma concepção de História dita tradicional, que, destarte dotado de uma concepção moderna, ainda estaria ligada a um topos de Historia Magistra Vitae249, e na revista dos Annales? Contudo, tal fato não nos causa mossa. Pudemos

246 Idem.

247 Idem, p. 548. 248 Idem, p. 548-549.

249 A Historia Magistra Vitae, segundo Reinhart Koselleck, caracteriza-se por ser fornecedora de exemplos, ou

seja, o passado seria um guia seguro para o presente. Em termos das duas categorias formuladas por Koselleck para a apreensão da temporalidade histórica, espaço de experiência e horizonte de expectativas, a História como

perceber que, neste momento, 1945, a concepção de História ligada ao IHGB já havia mudado, ou melhor, a concepção de História de Feijó Bittencourt claramente, através do exposto acima, não mais se vinculava à História Política e à História como fornecedora de exemplos. Sua concepção está ligada à História econômica e social, bem como ao modus operandi de Capistrano de Abreu. Tal fato foi atestado por Lucia Maria Paschoal Guimarães ao analisar o IV Congresso de História Nacional promovido pelo IHGB em 1949.

Conforme podemos observar no quadro de número 3 em anexo, Alice Canabrava apresentou trabalho neste Congresso, intitulado “Um capítulo da história das técnicas no Brasil: o emprego da cana como combustível dos engenhos”. Mas não é estranho que um trabalho vinculado já à Universidade esteja presente em um evento do IHGB? Como vimos, alguns membros do Instituto já acompanhavam a Historiografia universitária e como observou Lucia Guimarães, a seção de História Econômica e Social estava organizada de acordo com a proposta de Capistrano de Abreu em seu “Capítulos de História Colonial”. “Neste último seguimento, por sinal, até a estrutura dos conteúdos seguia pari passu as pegadas de Capistrano”250. Outros trabalhos oriundos da FFCL da USP também estiveram presentes no evento, como os trabalhos de Olga Pantaleão, Maria da Conceição Martins Ribeiro e Nícia Vilela Luz. Tal fato atesta que a Historiografia universitária naquele momento, não era ainda hegemônica e que o IHGB ainda era uma instância representativa e importante da produção historiográfica nacional. Não por acaso que no “Memorial” para o concurso da Cadeira de História da Civilização Americana, Alice Canabrava tenha mencionado que sua tese de

mestra da vida caracteriza-se pelo fato de as expectativas quanto ao futuro estarem eminentemente baseadas na experiência. Para Koselleck o topos da História como mestra da vida vigorou até meados do século XVIII, quando as expectativas cada vez menos passaram a estar baseadas na experiência. Ver: KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae – Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 41-60. A partir do século XVIII, fundação da modernidade, a História consolida-se enquanto conceito e o distanciamento entre espaço de experiência e horizonte de expectativas se acentua. A experiência de uma ruptura que estaria separando, de forma violenta, as dimensões do passado e do futuro, a consciência de um período de transição está amplamente registrado, desde a grande revolução. Cf. KOSELLECK, Reinhart. “História” como conceito mestre moderno. In: KOSELLECK, Reinhart et al. O Conceito de História. Tradução René E. Gertz. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 202. Em 2013 a Editora autêntica através de seu projeto “História e Historiografia” coordenado por Eliana de Freitas Dutra lançou este livro que trata-se do verbete “História” do famoso projeto de pesquisa coletivo intitulado “Conceitos históricos fundamentais: léxico histórico da linguagem político-social na Alemanha”, editado entre 1972 e 1997, de autoria de Reinhart Koselleck, Christian Meier, Horst Günther e Odilo Engels. A tradução do verbete é mais uma iniciativa na divulgação do campo da História dos Conceitos no Brasil. Para uma contextualização do verbete, bem como sua importância para a História dos Conceitos, ver seu prefácio: ASSIS, Arthur Alfaix; MATA, Sérgio da. O conceito de história e o lugar dos Geschichtliche Grundbegriffe na história da história dos conceitos. In: KOSELLECK, op. cit., 2013, p. 9-34.

250 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. IV Congresso de História Nacional: tendências e perspectivas da

história do Brasil colonial (Rio de Janeiro, 1949). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, n. 48, 2004, p. 149. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v24n48/a07v24n48.pdf>. Acessado em 20/11/2013. Vale ressaltar que a temática mais presente no congresso foi a da ocupação e expansão do território, clara contribuição da matriz historiográfica capistraneana e de Afonso Taunay, um dos organizadores do Congresso.

doutoramento mereceu resenha na Revista do IHGB251. Nesse momento, o IHGB já se encontrava longe dos modelos historiográficos ditos tradicionais. “[...] o conjunto dos trabalhos publicados nos Anais do IV Congresso de História Nacional revela que a produção da história do Brasil colonial alcançara um grau de maturidade que não mais admitia uma volta aos modelos tradicionais”252. Desta feita, não nos causa mossa o fato de Alice Canabrava ter participado do IV Congresso, uma vez que o IHGB já não se alinhava mais a uma concepção de História-filosófica ligada ao topos da Historia Magistra Vitae. Ademais, a historiografia universitária somente se colocaria como hegemônica, onde sentiríamos seus primeiros frutos, nos anos 60 e 70 do século XX, principalmente com a criação dos cursos de pós-graduação. Ainda durante os anos 1940 e 1950, “[...] apesar da criação dos cursos de história, em 1934 e 1935, o IHGB continuaria a ser o locus privilegiado da produção historiográfica, ao lado dos institutos históricos estaduais. O deslocamento para o âmbito universitário só se concretizou por volta da década de 1960”253.

Da mesma maneira, o fato de Alice Canabrava ter sido posta como historiadora orientada pela “leitura e compreensão de nossos Annales” por Fernand Braudel, também não nos causou estranhamento. A tese de doutoramento de Alice Piffer Canabrava pode ser compreendida como pertencente a dois mundos que não são distintos, mas que, naquele momento, entrecruzavam-se: herdeira de uma crítica histórica que remonta ao eregimento da História enquanto ciência no século XIX, com grande preocupação com o documento; e uma historiografia tributária da interpretação e análise, vinculada, sim à proposta dos Annales expressa no Brasil, principalmente por Eurípedes Simões de Paula, mas também de Alfredo Ellis Júnior, Afonso Taunay e Capistrano de Abreu. Daí o título de nosso trabalho: a historiografia de Alice Piffer Canabrava, para o período por nós recortado, apresenta elementos pertencentes tanto à historiografia do século XIX, quanto à historiografia do século XX, ou seja, é uma Escrita da História que se coloca entre estes dois mundos, e deles se faz co-partícipe.

251 Processo 46.1.126.8.7 (Arquivo da FFLCH da USP: inscrição no concurso para a Cadeira de História da

Civilização Americana, 1946). Memorial, p. 3.

252 GUIMARÃES, op. cit., 2004, p. 164.

253 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Sobre a história da historiografia brasileira como campo de estudos e

reflexões. In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal; GONÇALVES, Márcia de Almeida et alli (orgs.). Estudos de Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 29. Ver resenha: BALABAN, Marcelo. Reflexões sobre História e Historiografia. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 8, p. 217-224, 2012. Disponível em: <http://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/388/253>. Acessado em 21/02/2014.

1.3 A Indústria do Açúcar nas Ilhas Inglesas e Francesas do Mar das Antilhas