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Recomendações do Ministério da Saúde e desafios na implantação da política

2. Introdução

2.2. Atual contexto obstétrico brasileiro

2.2.2. Recomendações do Ministério da Saúde e desafios na implantação da política

As dificuldades na implantação da política Nacional de Humanização ainda são perceptíveis, uma vez que esta implica numa atuação diferenciada do profissional de saúde,

respeitando os aspectos da fisiologia, reconhecendo os aspectos sociais e culturais do parto e oferecendo suporte emocional à mulher e sua família, facilitando a formação dos laços afetivos familiares e o vínculo mãe-pai-bebê (Dias & Domingues, 2005). Afirmam Dias e Deslandes (2006) que enquanto não mudar a relação profissional de saúde-parturiente, será praticamente impossível a elaboração do plano de parto (lista elaborada pela mulher descrevendo tudo o que gostaria ou não gostaria que acontecesse em seu parto) aos moldes da humanização.

Para Brasil (2014), todos os pontos da rede de atenção precisam atuar de forma integrada e harmônica, a fim de garantir o atendimento integral à mulher e ao recém-nascido, evitando sua peregrinação e, se necessário, sua transferência deve ser feita em transporte seguro e com garantia de vaga e acolhimento na unidade de referência. De acordo com a ANVISA (2014), a transferência da mulher, em caso de necessidade, deve ser realizada após assegurar a existência de vaga no serviço de referência, em transporte adequado às necessidades e às condições estabelecidas na Portaria GM/ MS nº 2.048, de 05 de novembro de 2002.

Além disso, o local de cuidado a mulher não pode ser desagradável, com rotinas rígidas e inalteradas, de forma que ela não possa expressar livremente suas necessidades e o que sente. Manifestações de julgamento e repressão em relação aos seus atos devem ser evitadas e, cabe aos membros da equipe de saúde uma postura de respeito como ser humano e cidadã plena de direitos. Assim, devem receber cuidados individualizados e flexíveis de acordo com suas demandas e precisa se sentir segura e protegida por todos aqueles que a cercam (Brasil, 2014).

Outro fator importante é a presença de acompanhante junto à parturiente. Em meados século XX, quando o parto hospitalar foi estabelecido pelos programas de saúde nos países industrializados, pela primeira vez na história, a maioria das mulheres começou a parir sem a presença de qualquer pessoa que lhe fosse familiar. Desde então, essa foi a realidade de muitos países nas últimas décadas, com a presença de familiares proibida no parto institucionalizado (Hodnett et al, 2011). No Brasil, não foi diferente e tal realidade fez parte da formação médica e

de enfermagem por muitos anos. Rezende, Martinez e Ferreira (1991) recomendavam que “Os familiares nervosos e as pessoas que, em grande número, vão às Maternidades como acompanhantes, devem ser afastados” (p. 233).

Ainda na década de 90 do século passado, com o ativismo das mulheres e a necessidade de uma medicina baseada em evidências, um movimento mundial iniciou o registro de benefícios emocionais e de saúde, além da grande satisfação materna com a presença e apoio contínuo durante o parto. Estudos começaram a aumentar documentando os muitos resultados positivos para a saúde materna e neonatal dessa intervenção simples, o que levou à recomendação internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 1996) de que “o apoio contínuo durante o trabalho tem benefícios clinicamente significativos para as mulheres e crianças e nenhum prejuízo conhecido, e que todas as mulheres devem ter apoio durante o parto e nascimento” (p. 2).

Por ser um processo complexo, geralmente, as mulheres ficam tensas e fragilizadas, sendo uma das justificativas para ter alguém de confiança que possa acompanhá-la nesse período, incentivando-a, auxiliando-a, trazendo segurança, tranquilidade e conforto (Rosa et al, 2010). O acompanhante, nesse momento, representa o suporte psíquico e emocional, com uma presença confortante, contato físico, útil para dividir o medo e a ansiedade, somar forças e estimular positivamente a parturiente.

O acompanhamento por um membro da família pode incluir o apoio emocional, medidas de conforto (como toque, massagem, ajuda para manter-se hidratada ou ir ao banheiro), entre outros. As teorias que surgem para explicar os benefícios do apoio contínuo sobre os resultados do parto, descrevem a otimização da fisiologia do parto e os sentimentos de controle e competência das mulheres, como redutores da dependência de intervenções médicas. No Brasil, as evidências sobre esse apoio durante o parto foram usadas para propor as primeiras leis sobre o

direito ao acompanhante durante o nascimento nos anos 1990 (Brüggemann, Osis & Parpinelli, 2007; Diniz et al, 2007).

Hoje, o direito a um acompanhante no parto está garantido por três legislações: lei federal nº 11.108 de 07 de abril de 2005, aplicando-se o direito ao acompanhante em hospitais do SUS e seus conveniados; resolução normativa da ANS - RN Nº 338, de 21 de outubro de 2013, aplicando-se o direito ao acompanhante em hospitais particulares; e resolução-RDC nº 36, de 03 de junho de 2008 da Anvisa (cujo item 9.1 prevê que “o serviço deve permitir a presença de acompanhante de livre escolha da mulher no acolhimento, trabalho de parto, parto e pós-parto imediato”) aplicando-se o direito ao acompanhante também em hospitais particulares.

Embora a presença do acompanhante seja preconizada pelo Ministério da Saúde e garantido por lei, observam-se em alguns serviços de saúde, obstáculos a sua participação, justificados pela inadequada infraestrutura e, principalmente, pela falta de preparo da equipe de saúde para lidar com essa recomendação (Longo, Andraus & Barbosa, 2010). A passividade que os familiares das parturientes assumem em relação à autoridade hospitalar, mediante o exercício de uma prática institucional sugere que o parto não é um assunto de família (Mc Callum & Reis, 2006).

Para incentivar tais práticas, o Ministério da Saúde passou a conferir títulos como “Hospital Amigo da Criança”, assegurando pagamento de 10% a mais sobre a assistência ao parto para hospitais vinculados ao SUS, em função de critérios tais como: estímulo à amamentação e ao vínculo precoce, incentivo ao parto normal e vertical, presença de acompanhante escolhido pela mulher para o processo do parto e permanência dos bebês em todo o tempo ao lado das mães (Portaria nº 1.113, de 1994; OMS, 2009; Portaria nº 1.153, de 22 de maio de 2014).

Contudo, a presença central e superior de profissionais médicos, principalmente obstetras e pediatras, precisa ser revista. A inserção de outros profissionais, como enfermeiras obstetras,

obstetrizes, educadores perinatais, psicólogos, doulas, entre outros, deve ser promovida na equipe assistencial, proporcionado uma assistência integral, de acordo com as necessidades da mulher e de sua família, por meio de um trabalho multidisciplinar (Brasil, 2011c).

A entrada da enfermagem obstétrica neste espaço de assistência, até então ocupado exclusivamente pelos médicos obstetras, tem provocado embates entre estas categorias, dificultando a implantação da política de humanização. Contudo, a proposta da inserção da enfermagem nesse contexto é de cooperação e não de sobreposição de atividades. Em vários países da Europa, por exemplo, o trabalho do médico obstetra está voltado para a assistência às gestantes de risco, com uma formação voltada principalmente para as complicações da gestação e do parto, o que não excluem o médico obstetra do processo de humanização da assistência, mas aponta os desafios que estes profissionais precisam superar no sentido de modificar sua rotina de assistência aos partos de baixo risco atuando mais como cuidadores do que efetivamente como “especialistas” em patologia obstétrica (Dias & Domingues, 2005).

Por outro lado, a formação profissional do enfermeiro obstetra, mais voltado para o cuidar, tem sido considerada aquela que possibilita ao profissional uma abordagem diferenciada na condução do trabalho de parto. A formação da enfermeira obstétrica dá maior ênfase aos aspectos fisiológicos, emocionais e socioculturais do processo reprodutivo, privilegiando uma atuação fundamentada na compreensão do fenômeno da reprodução como singular, contínuo e saudável, no qual a mulher é o foco central, e que se desenvolve em um determinado contexto sócio histórico. Vários trabalhos mostram que, quando acompanhadas por essas profissionais, as mulheres necessitam de menos analgésicos, ocorrem menos intervenções e os resultados finais são melhores que aqueles produzidos pela assistência médica convencional. A atuação do enfermeiro na assistência ao parto normal ganha força em nosso meio a partir da discussão dos resultados do modelo médico de atenção e do exemplo da atuação das enfermeiras obstetras em países europeus, como Inglaterra e Holanda. Nesses locais, o modelo de atenção ao parto inclui a

importante atuação dessas profissionais, apresenta resultados perinatais muito bons e alta satisfação das usuárias com a assistência prestada (Sescato, Souza & Wall, 2008; Progianti & Mouta, 2009; Moreira et al, 2009; Silva, Costa & Pereira, 2011). No Brasil, desde 1998, o Ministério da Saúde (Portaria nº 2.816) reconheceu oficialmente a assistência ao parto por enfermeiro obstetra nos hospitais conveniados com o SUS e normalizou a remuneração desses profissionais.

No final da década de 1990, foram adotadas políticas públicas no Brasil como estratégia para a melhoria dos índices de cesariana e de morbidade materna e perinatal e uma destas estratégias foi a instituição de centros de parto normal (CPN- Portaria nº 11, 2015), definidos como estabelecimentos que podem funcionar em instalações intra ou extra-hospitalares, com uso adequado de intervenções e presença de acompanhante escolhido pela mulher, que permitem a assistência aos partos de baixo risco, com possibilidade de funcionamento sem médicos, ficando enfermeiros obstetras responsáveis por todos os cuidados prestados às mulheres e bebês.. Este modelo tem como princípio norteador da assistência, o foco no nascimento como evento emocional, familiar e fisiológico, valorizando as escolhas e necessidades da mulher no planejamento da assistência (Dias & Domingues, 2005).

Quanto às doulas, Bruggemann, Parpinelli & Osis (2005) as caracterizam como mulheres que dão suporte físico e emocional às parturientes durante e após o parto, encorajando, tranquilizando, estimulando e oferecendo medidas de conforto e orientações. Os primeiros estudos para avaliar os efeitos da presença de doulas foram realizados na década de 80 na Guatemala, e foi observado que o grupo de parturientes que recebeu apoio de doulas apresentou menor incidência de problemas perinatais, menor utilização de ocitocina, menor tempo de trabalho de parto e maior interação da mãe com o bebê. Nos Estados Unidos, pesquisa com grupo acompanhado por doulas apontou, além das características acima, menor taxa de anestesia peridural para parto vaginal e menor taxa de cesariana. Outros países mostraram que um dos

resultados favoráveis foi o alto grau de controle sobre a experiência do parto (Bruggemann, Parpinelli & Osis, 2005; Leão & Bastos, 2001; Santos & Nunes, 2009). Recentemente, várias cidades brasileiras têm aprovado leis municipais que autorizam a entrada de doulas nos hospitais para acompanhar as parturientes. Em novembro de 2015, a cidade de Uberlândia, na qual o estudo foi realizado, teve a aprovação da lei nº 12.314, que dispõe que maternidades, casas de parto e estabelecimentos hospitalares congêneres, da rede pública e privada de Uberlândia ficam obrigados a permitir a presença de doulas durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, sempre que solicitadas pela parturiente. Contudo, não se tem informações se a referida lei tem sido cumprida, devido a data de publicação e vigência da mesma, não deixando de reconhecê-la como um avanço para a humanização do cuidado a essa mulher.

A amamentação na primeira hora de vida também é uma das práticas de evidências recomendada pela OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) e a OMS (2003), sendo importante para o estabelecimento do vínculo mãe-bebê, além de aumentar a duração do aleitamento materno e reduzir a mortalidade neonatal (Anderson, Moore & Bergman, 2007; Bystrova et al., 2009). Dessa forma, não se justifica também o clampeamento precoce do cordão umbilical, como ocorre em grande parte dos partos, sendo tal prática revisada pela OMS que incluiu como nova forma de manejo o clampeamento tardio do cordão umbilical.

Segundo Chaparro e Lutter (2007), o clampeamento “tardio” do cordão umbilical pode ser entendido como aquele realizado após a circulação do cordão umbilical cessar e ficar sem pulso (aproximadamente 3 minutos ou mais depois do nascimento), sendo 80% da transfusão placentária ocorrida nesse período, com profundos efeitos sobre o volume de sangue do recém- nascido após o parto. Nos casos de reanimação neonatal, com recém-nascido pálido, flácido ou não respirando, é melhor manter o bebê no nível do períneo da mãe, para permitir um fluxo ideal de sangue e oxigenação enquanto se realiza as manobras. Na maioria dos casos, a reanimação pode realizar-se mesmo com o clampeamento tardio do cordão umbilical.

Van Rheenen e Brabin (2007) citam como algumas das vantagens do clampeamento tardio do cordão, o aumentou dos níveis de hemoglobina e a redução do risco de anemia. Com o aumento do volume sanguíneo do recém-nascido, eleva-se o nível de suas reservas de ferro ao nascer, o qual foi demonstrado ser importante para prevenir deficiência de ferro e anemia durante a infância (Chaparro & Lutter, 2007).

Assim, temos o clampeamento tardio do cordão umbilical, o contato imediato pele a pele e o início da amamentação exclusiva como as três práticas que, além de proporcionar benefício instantâneo ao recém-nascido, podem ter impacto na nutrição e na saúde da mãe e do bebê. Com um programa de atenção integral que inclua essas três práticas será notória a contribuição, a curto e longo prazo, tanto a saúde da mãe quanto a do bebê, além de prevenir a morbidade e a mortalidade materna e neonatal (Brasil, 2011a)

Diante desse quadro, o Ministério da Saúde realizou uma grande pesquisa nacional, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o projeto INOVA-ENSP e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), a fim de estudar o parto e o nascimento no Brasil. O estudo contemplou 266 maternidades com 500 ou mais partos por ano, sendo representativo dos nascimentos hospitalares neste universo onde ocorrem 83% dos partos do país. Foram visitados 191 municípios e 23.940 mulheres foram entrevistadas entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012. Como resultados, foram apresentados 14 artigos que tratam desde aspectos metodológicos, até a criação de algoritmo para cálculo da idade gestacional, estimação da mortalidade materna, resultados sobre a assistência pré-natal, decisão sobre a via de parto, intervenções sobre as parturientes e recém-nascidos de risco habitual, tipo de parto nas adolescentes, satisfação com o atendimento e presença de acompanhante durante a internação, near miss e mortalidade materno e neonatal, além de uma análise sobre a estrutura das maternidades e a descrição de uma experiência bem sucedida para a redução de cesarianas na rede privada. Além da divulgação para a sociedade brasileira do

panorama de como acontecem os parto e nascimento no Brasil, o objetivo do mesmo foi a sensibilização dos profissionais, gestores, gestantes e seus familiares para a necessidade de mudanças no atual modelo de atenção obstétrica (Leal & Gama, 2014).

Contudo, tem-se a notória imprudência de muitas instituições, que deixam de seguir as recomendações do Ministério da saúde, baseadas em evidências e com comprovação de benefícios a curto e longo prazo para a vida de mães e bebês. Ou talvez seja uma mera disputa entre modelos de cuidado em saúde, que se trava entre a defesa por interesses próprios profissionais e a defesa dos direitos e respeito ao próximo, e em meio a esse conflito, vidas são colocadas em risco. Assim, nota-se a emergência de uma atenção às dificuldades de implantação dos programas de humanização da assistência ao parto, permitindo às mulheres vivenciar esses momentos não apenas como uma questão de saúde, mas também como um acontecimento social e afetivo que pode se registrar em suas memórias e marcar suas vidas e de seus companheiros.