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RECONFIGURAÇÕES DA FIGURA DO LEITOR

RECONFIGURAÇÕES, OS DESAFIOS E A URGÊNCIA DE NOVAS LITERACIAS

CAPÍTULO 1: RECONFIGURAÇÕES DA FIGURA DO LEITOR

111 RECONFIGURAÇÕES AO PAPEL DO LEITOR

Partindo do princípio de que, como realçámos ao longo da primeira parte deste trabalho, a literatura digital é alimentada por um movimento de continuidade técnica e estética, proveniente da própria tradição literária vanguardista, é agora momento de nos questionarmos: estará a introdução dos novos suportes na literatura a proporcionar-nos a possibilidade de observar um conjunto de reconfigurações que resultam da materialidade e das potencialidades tecnológicas do novo meio condicionando o próprio processo de criação e receção literárias?

Ora, tendo como base a ideia de Chartier (1999) de que novos suportes têm vindo a acionar, ao longo da História, novos modos de ler e, consequentemente, novos tipos de leitor defenderemos ao longo deste capítulo a necessidade de repensar, à luz do surgimento de um novo suporte e de um novo espaço de escrita – o digital – a necessidade de reavaliar o papel do leitor, admitindo, nesse processo, que a sua figura sofre um conjunto de reconfigurações.

Assumindo, como defende Chartier (1999) que, de facto, a leitura não foi sempre e em todo o lugar a mesma, sofrendo várias revoluções em função dos suportes, cabe-nos então analisar o modo como a criação e transmissão digital de textos parece impor hoje a necessidade de uma reflexão, contribuindo para a redefinição dos papéis do autor, do leitor e do próprio texto.

Assim, começaremos por afirmar, como aponta o autor francês que:

(…) os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem. Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrónico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. (Chartier, 1999, p. 77)

Ora, neste sentido, vale a pena a pena recordar que, de facto, os textos não existem fora dos seus suportes materiais e esses suportes, funcionando como seus veículos, afirmam- se como elementos fundamentais no momento de pensarmos a escrita e a leitura.

Como nota Chartier (1999), os dispositivos técnicos, visuais e físicos que organizam a escrita e a leitura representam, simultaneamente, uma possibilidade de olharmos para as próprias práticas.

112 Assim, e no que diz respeito ao papel do leitor, começaremos por sugerir a ideia de que este se tem vindo a alterar em função da modificação dos suportes textuais e da sua consequente implicação nas práticas de leitura.

A justificar esta ideia basta, aliás, que observemos, do ponto de vista analítico, o tipo de textos produzidos na Antiguidade grega e romana, bem como os seus modos de leitura, para concluirmos que, de facto, tanto a leitura quanto a escrita desse tempo, em pouco ou nada se assemelham à leitura de livros tal como a conhecemos na contemporaneidade.

A esse respeito, basta que notemos, tão somente, que o suporte do livro antigo era um rolo (volúmen), que o leitor segurava com as duas mãos durante a leitura, e que ia desenrolando à medida que lia. Nesta tarefa, e dada a disposição horizontal do texto, a mão direita auxiliava o leitor a progredir no texto, desenrolando-o, enquanto a mão esquerda servia para ir enrolando as partes já lidas. Tratava-se, portanto, de uma leitura contínua e sequencial que mobilizava o corpo inteiro.

Assim, podemos observar que as especificidades desse suporte sugeriam, então, um particular modo de leitura.

Mais tarde, entre os séculos II e IV da era cristã, com o surgimento de um novo suporte de escrita - o códice -, e em função da renovada forma do livro manuscrito, mais alterações se imporiam à leitura. O códice, composto agora por folhas de papiro dispostas em cadernos, impunha uma nova materialidade na escrita e contribuía, uma vez mais, para a transformação profunda dos modos de ler.

Repare-se que, diferentemente do rolo, e devido à sua composição, o códice permitia uma leitura fragmentada a partir da qual o leitor, pela possibilidade de fazer anotações, de segurar e transportar o livro, assumiria uma postura mais livre e participativa.

Ora, perante estes dois exemplos, parece-nos ser possível observar que, efetivamente, a evolução dos suportes tem, de facto, implicações muito para além deles.

Neste sentido, e perante o surgimento da tecnologia digital e da sua colocação ao serviço da litetura, propomos, portanto, a ideia de que estamos hoje, a partir de uma nova materialidade, a experimentar novos modos e novas práticas de leitura que, no nosso entender, contribuem para repensar o papel do leitor.

Assim, assumindo que a revolução do livro eletrónico, como afirma Chartier (1999, p. 13), é uma “revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler” consideramos que é de toda a pertinência avaliar as implicações que a revolução digital traz para as práticas leitura e, concretamente, para a figura do leitor.

113 Desta forma, e para iniciar a nossa reflexão, a primeira consideração que tomamos é a de que, de facto, o leitor do texto digital, como apontam Alquéres e Policarpo (2016, p. 1) já não é o mesmo dos pergaminhos uma vez que “o modo como ele percebe o texto e as competências que aciona no ato da leitura são muito diferentes”.

Ora, neste sentido, e reconhecendo uma forte vinculação entre o suporte e as suas formas de leitura, consideramos pertinente observar que, na realidade, o modo como o texto digital é hoje criado e veiculado parece condicionar e determinar o modo como é lido, influenciando, consequentemente, a figura do leitor no século XXI.

Assim, se, como afirma Chartier, as formas de leitura são afetadas pelo suporte, sugerimos, portanto, a ideia de que a introdução de novos suportes digitais no processo literário cria, consequentemente, novos leitores e novas formas de leitura.

Como explica Patterson (2000, p. 74), referindo-se às novas práticas de leitura em meio digital: “those changes were directly related to the nature of hypertext and other electronic texts”. Assim, e reconhecendo que, de facto, para olhar o novo leitor é necessário olhar para a própria natureza do suporte digital e hipertextual, começaremos por sugerir a ideia de que o leitor convencional – o leitor das formas impressas – é hoje, simultaneamente, não apenas o sujeito que, como no passado, descodifica, reproduz e transmite, mas também aquele que lê, compreende e interpreta o mundo diante de uma infinidade de links, percorrendo, no interior do hipertexto, diversos caminhos.

Trata-se, portanto, como afirmam Bernardes, Miguéis & Ferreira:

de uma entidade bem diferente daquele outro (o leitor analógico, para simplificar) a quem, até aos anos 90, bastava ler frases inscritas em livros e revistas em papel, e complementarmente, dispor de uma mínima literacia bibliotecária (Bernardes, Miguéis, & Ferreira, 2015, p. 59).

Este “novo leitor”, pelo contrário, é, como sublinham, uma “figura obrigatoriamente tocada pela síndrome da multiplicidade” (Bernardes, Miguéis, & Ferreira, 2015, p. 59), uma figura que, para ler em ambiente digital, tem, necessariamente de saber “manipular o computador, o tablet, o smartphone, os programas de acesso, os aplicativos” (Bellei, 2012, p. 149) a fim de conseguir concretizar a sua tarefa.

Neste sentido, e à luz da teorização de Espen Aarseth (1997), defendemos ser possível reconhecer, no texto digital, a presença daquilo a que o autor chama de um “leitor ergódico” (Aarseth, 1997), um leitor que desenvolve um determinado esforço (ergon – trabalho) por forma a definir um caminho (hodos -caminho) no interior do texto digital.

114 Dizemos, portanto, que, no contexto do digital, e devido à sua materialidade, o leitor, para levar a cabo o processo de leitura, tem de desenvolver, necessariamente, um trabalho, um esforço, que é concretizado, neste meio, através da interação física com o texto. Só esse esforço lhe permitirá, finalmente, ler e atravessar o texto.

Repare-se, assim, que se o texto digital é construído, mecanicamente, a partir das potencialidades do meio, prevendo, ele próprio, a partir das suas especificidades, um foco de atenção na figura do leitor, então, parece ser possível reconhecer que a literatura digital, através da narrativa digital interativa, perpetua uma tendência de valorização do papel do recetor no processo de comunicação literária.

A este respeito explica-nos, aliás, Aarseth (1997, p. 1) que durante o processo de leitura de um texto digital o leitor é desafiado a um trabalho de “construção física” na medida em que, para “atravessar o texto”, ou seja, para lê-lo na sua globalidade e na sua plenitude, tem de fazer, como anteriormente referimos, um “esforço não trivial” que implica, necessariamente, efetuar uma interação, ter um envolvimento físico com o próprio texto.

Neste sentido, podemos, portanto, sugerir que o leitor digital se trata de um leitor ergódico na medida em que a materialidade do próprio suporte textual prevê o seu esforço e a sua ação por forma a que a obra se concretize.

Diferentemente do leitor não-ergódico, cujo esforço “to traverse the text is trivial, with no extranoematic responsibilities (…) except eye movement and the periodic or arbitrary turning pages” (Aarseth, 1997, pp. 1-2), ao leitor digital são requeridas um conjunto de intervenções físicas para completar o sentido do texto.

Sublinhamos, deste modo, que o texto digital requer do leitor um esforço e uma energia que não se traduzem apenas ao nível da sua descodificação e interpretação, mas que as extrapolam, tornando o leitor figura fundamental para o desenvolvimento da narrativa, e fazendo depender da sua intervenção ativa – da sua interação - o desenvolvimento do próprio texto.

Como nos elucida Aarseth, no texto digital, há uma certa noção de que a história não pode existir sem o leitor, de que há uma impossibilidade de avanço na narrativa caso este não intervenha ativamente, caso não concretize, por via da interação, a relação autor-máquina-texto.

Ora, nesta perspetiva, e de acordo com o disposto, interessa-nos particularmente explorar a ideia de que a introdução do digital, com a sua nova materialidade, nos abre espaço a pensar novas práticas de leitura, condicionadas pelas propriedades do suporte e

115 que, consequentemente, contribuem para uma reconfiguração do papel do leitor que, para poder ler o texto, deve, necessariamente, adaptar-se à sua nova condição, ajustando, ele próprio, os seus comportamentos e posturas.

Diante do disposto, sugerimos, portanto, que a introdução do digital pressupõe a emancipação de uma nova prática de leitura onde a interação atua como elemento fundamental. Assim, o leitor de textos digitais, é essencialmente, um leitor, que, em função das propriedades interativas do suporte e do texto, se afirma, consequentemente, como um leitor fisicamente mais participativo e mais interventivo.

a) O leitor como coautor

Tendo em conta a intensa colaboração ativa exigida, no texto digital, ao leitor, outro dos eixos que tem vindo a ser explorado é a noção do leitor como coautor.

Como sugere Landow, em Hipertexto 3.0, (2009), a figura do escritor parece aproximar- se cada vez mais da figura do leitor na medida em que, segundo ele, o texto digital cria, pela sua materialidade, um leitor ativo que contribuirá para a consumação do texto. Como explica, o que a literatura digital pede ao leitor “no es una mera recepción, sino una construcción activa, independiente y autónoma” (Landow, 2009, p.168), que é marcada pelo modo como este intervém ativamente no texto.

Repare-se, assim, que, enquanto o texto impresso é um objeto físico acabado, que, como sublinha Lévy, materializa já “uma certa versão do texto (…) integralmente manifesta”, o texto digital, por seu turno, apresenta-se como “uma pequena janela a partir da qual o leitor explora uma reserva potencial” (Lévy, 2003, p. 39). Quer isto dizer, em termos gerais, que quando lemos em papel estamos necessariamente condicionados a não intervir na materialidade do texto, limitando-nos a aceder àquilo que nos é dado a ler, sendo que o mesmo não se verifica, porém, no digital, uma vez que será o próprio leitor, através da sua interação, a “escrever”, ou seja, a concretizar, diante de uma matriz de textos potenciais, um dos textos propostos pelo autor.

Ora, neste sentido, sublinhamos, uma vez mais, a relevância atribuída ao papel do leitor na medida em que este se vai afirmar como elemento decisivo na construção física e significativa do texto.

Repare-se, a este respeito, que a própria materialidade e especificidade do texto digital já prevê, na sua essência, uma atitude interventiva por parte do leitor que, interagindo com o dispositivo computacional – que lhe apresenta um conjunto de “universos

116 possíveis” (Lévy, 2003) – vai realizar, por via do toque e da decisão, a concretização ou consumação de um desses percursos.

Neste sentido, interessa-nos, de forma particular, destacar o modo como o computador funciona, no contexto digital, como um mediador entre autor e leitor, ou, como aponta Lévy (2003, p. 41), como uma nova “máquina de ler” na medida em que se constitui, ele próprio, como o espaço onde um determinado conjunto de informações possíveis (programadas pelo autor) vão realizar-se por seleção (após interação do leitor) constituindo um percurso específico.

Simplificando, falamos de um conjunto de possibilidades, de um mapa de caminhos (que é delineado pelo autor no momento de conceção da obra) e que é, mais tarde, reproduzido pela máquina (exigindo a interação do leitor), sendo finalmente atualizado por este através das suas escolhas no interior do texto.

Assim, e sublinhando a ideia de que o leitor, ao interagir com a obra, colabora ativamente na sua construção, cabe-nos destacar, como aponta Lévy (2003, p. 41), que “toda a leitura em computador é uma edição, uma montagem singular”.

No fundo, ao ler uma obra digital o leitor não faz mais do que, a partir do puzzle completo e desorganizado que lhe é oferecido pelo autor, selecionar, no processo de leitura, por via da interação, as suas próprias peças para, com elas, construir um dos textos possíveis dentro dos que lhe são oferecidos, em aberto, pelo autor.

Neste contexto, o autor será, portanto, responsável pela disponibilização de um conjunto de textos potenciais, um conjunto de hipóteses – uma árvore narrativa – cabendo ao leitor, através da sua interação física com o dispositivo que reproduz o texto, concretizá- lo num determinado sentido, oferecendo-lhe, nesse ato, uma montagem particular baseada nas suas escolhas e nas suas decisões.

Tendo em conta o processo que acabamos de descrever concordamos com a visão de Lévy (2003, p. 40) quando o autor nos diz que “o leitor em tela é mais ativo que o leitor em papel”. Note-se que, de facto, a leitura digital, implica, como refere o autor, ser capaz de “enviar um comando a um computador” (Lévy, 2003, p. 40) antes mesmo de interpretar a totalidade do texto. Assim, a necessidade não apenas de interpretação (como se verifica nos textos em papel) mas de interação (requerida pelos textos digitais) faz com que nestes últimos seja possível reconhecer uma ainda mais intensa participação do leitor elevando-o aqui à condição de coautor do texto lido.

Sublinhe-se, a justificar a nossa posição, que o leitor, através da sua interação - dos links que segue, das escolhas que efetua, da organização que dá ao texto – contribui para a

117 sua própria “escrita”, uma “escrita” particular e autónoma que é resultado de um processo de montagem do texto digital no momento em que frui esteticamente dele. Como destaca Lévy (2003, pp. 45-46) “(…) o navegador participa assim da redação ou pelo menos da edição do texto que lê” uma vez que no texto digital escrita e leitura parecem trocar repetidamente de papéis pois, como afirma o autor, “todo aquele que participa da estruturação do hipertexto (…) é já um leitor” bem como, simetricamente, todo aquele que percorre um percurso, atualizando-o por via de um conjunto de escolhas potenciais, revela, simultaneamente, contribuir para a sua redação, tornando-se, ao mesmo tempo, seu autor.

Nesta perspetiva, consideramos ser pertinente observar que o texto digital e a sua abertura a uma intervenção direta por parte do leitor contribuem, sobremaneira, para configurar um cenário no qual o papel do leitor e do escritor se aproximam e, a dado momento, se fundem e confundem, subvertendo as fronteiras rígidas que o texto impresso, na sua completude e acabamento material, nos vêm impondo.

A este respeito, e tendo em conta a reflexão levada a cabo em torno da noção de coautoria no texto digital, consideramos ser possível falar de uma nova configuração comunicacional na leitura, uma vez que ao tornar-se interativo, através da participação do leitor, o texto traduz um processo simultâneo de escrita e de leitura que inaugura uma nova forma de receber o texto.

Assim, enquanto no texto impresso, embora prevista uma ação interpretativa para oferecer sentido ao texto, as funções de autor e leitor parecem ter, usualmente, uma demarcação relativamente clara, no texto digital, todavia, pela possibilidade de intervenção na própria materialidade textual, estas posições tornam-se móveis e assumem um carácter dinâmico e proteiforme.

Repare-se, a justificar a possibilidade de intervenção na materialidade do texto, que embora a maior parte das obras de literatura digital interativa limite o leitor a ler a narrativa mediante um conjunto de caminhos pré-determinados, um conjunto de narrativas possíveis dentro da narrativa principal, outras há, no entanto, que manifestando um carácter ainda mais aberto, permitem ao leitor a própria intervenção criativa no texto através da adição de novos excertos textuais.

A justificar a nossa afirmação, apresentamos, a título de exemplo: Todas las historias22, de Dora García (2004), La huella de Cosmos23, de Doménico Chiappe (2005), El libro

118 flotante de Caytran Dölphin24, de Leonardo Valencia e Eugenio Tiselli (2006) e, por fim, alguns romances colaborativos como é o caso de Social Book25, um projeto de Robert Stein ou Madrid Escribe26, de Lorenzo Silva.

Ora, diante destas noções de co-autoria, e nestes últimos casos, até mesmo de autoria, estamos em condições de sugerir que a introdução do digital provoca, em função das suas possibilidades materiais (como é o caso da possibilidade de participação interativa ou, até mesmo, da possibilidade de acrescento de partes ao texto) uma reconfiguração ao papel do leitor que se vê, atualmente, ampliado nas suas funções habituais, contribuindo, em meio digital, e através da interação, para a tarefa de construção do sentido do texto.

23 Para mais detalhes sobre esta obra, cf. o website http://www.cervantesvirtual.com/obra/la-huella-de-

cosmos/.

24 Para mais detalhes sobre esta obra, cf. o website http://www.libroflotante.net/. 25

Para mais detalhes sobre esta obra, cf. o website

https://www.livemargin.com/socialbook/client/landing_page.html.

26 Para mais detalhes sobre esta obra, cf. o website

http://www.cervantesvirtual.com/bib/portal/literaturaelectronica/wikinovelab245.html?fqstr=1&qPagina= 0&qImagen=0.

119 b) O triângulo autor-máquina-texto

Uma vez identificada uma relação de coautoria no texto digital é agora momento de nos determos em mais uma particularidade que, no nosso entender, parece contribuir para uma reconfiguração do papel do leitor no meio digital. Referimo-nos à introdução de um novo elemento no processo de comunicação literária – a máquina ou dispositivo. A este respeito consideramos pertinente começar por colocar algumas questões: influirá a materialidade do dispositivo no próprio modo como é recebido o texto? Terá o aparato digital implicações no modo como lemos atualmente? Moldarão as propriedades do próprio equipamento a nossa relação com o texto literário? O que muda face à leitura de textos impressos? O que nos oferece de novo a leitura mediada por dispositivos digitais? Para tentar oferecer resposta a algumas destas indagações acreditamos ser de fulcral importância analisar a nova tríade que hoje constitui o texto digital - autor, máquina, texto - como forma de compreender que especificidades traz esta configuração para o processo de leitura.

Assim, começaremos por notar que, diferentemente do texto impresso, onde o leitor se encontra diretamente em contacto com o substrato do texto, no meio digital, por seu turno, a relação entre autor e leitor é mediada por um aparato tecnológico que reproduz o texto.

Esse aparato, faz, portanto, com que o texto só tenha efetivamente uma existência real quando o dispositivo é ativado por um terceiro elemento – o leitor – que, através da sua interação, desbravará o conjunto de possibilidades propostas pelo autor, fazendo as suas escolhas e oferecendo à máquina informação sobre elas para que, finalmente, se possa concretizar um dos muitos textos propostos.

Neste sentido, realçamos a importância da perceção háptica27 no processo de leitura digital uma vez que, enquanto leitores, é através do toque, do clique, do scroll, que experienciamos, via dispositivo, um determinado texto que, diferentemente do impresso, não se trata de um texto com o qual estejamos diretamente em contacto, mas, pelo contrário, é um texto que tem lugar, digitalmente, a uma distância indeterminada (entre bites e bytes) e que é trazido à nossa presença apenas pela mediação da máquina.

27

A percepção háptica denomina, usualmente, o ato de “agarrar algo”. Neste caso a percepção é obtida através da exploração ativa das superfícies e dos objetos pela movimentação física do sujeito. Em 1966 Gibson (Gibson, 1966) define um sistema háptico como “the sensibility of the individual to the world

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