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1. A história de um filme

1.2 O segundo Cabra Marcado Para Morrer 1984

1.2.1 Reconstruindo a história nacional

Quando Eduardo Coutinho decide retomar o projeto de Cabra Marcado Para Morrer em 1981, suas intenções, segundo ele próprio, são de apurar a história da luta camponesa, a experiência da filmagem interrompida em 1964, a história real da vida de João Pedro e, claro, a trajetória de cada um dos participantes até aquele momento presente. Para isso, era necessário reencontrar os camponeses que estavam desaparecidos da história do país e, segundo Coutinho, completamente esquecidos pelo Brasil. Era questão de recolocá-los na História. Apoiar-se em fotografias de cenas do filme e projeções do material que havia sido salvo é a maneira que o cineasta utiliza para reaver o contato com os camponeses e poder extrair deles os depoimentos que buscava.

O filme é todo moldado por esses depoimentos, relatos e rememorações sobre os acontecimentos passados que, muitas vezes, desmentem e corrigem documentos do mesmo período. É o caso do relato de um camponês que conta como teve de desmentir para o exército a existência de cubanos e de armamento no local, e que a montagem do filme contrapõe a artigos de jornais da época, afirmando justamente o contrário: atividades de treinamento subversivo e revolucionário, ministradas aos camponeses por estrangeiros, inclusive cubanos.

Tudo é feito a partir de um trabalho intenso com a memória dos camponeses que, acionada, inicia a construção dos acontecimentos, dotando-os de significado para nós, espectadores. Este é o ponto de partida para a narrativa que nos propõe Eduardo Coutinho.

Aqui, então, é importante, o conceito de memória desenvolvido por Jacques Le Goff num de seus capítulos do livro História e Memória. Ele nos informa que a memória atua no homem como um conjunto de funções psíquicas capazes de atualizar impressões e informações passadas. Ela tem seu papel na escrita da história enquanto propriedade que conserva informações importantes para os povos e as sociedades. Assim, memória, história e identidade ligam-se na disputa pela dominação da recordação e da tradição: a posse da memória de uma sociedade ou de um povo por um grupo determinado passa pela disputa de poder pois significa a posse da história desta sociedade ou povo. Para Jacques Le Goff: “Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações

das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desse mecanismo de manipulação da história coletiva.” 31

É essa memória coletiva que está no centro da composição de Cabra Marcado Para Morrer. O filme todo debruça-se sobre si mesmo ao contar a história de sua própria realização, de sua brusca interrupção pelo Golpe de 64 e, ainda, ao perseguir a história dos camponeses envolvidos no projeto dezessete anos antes. O filme de 84 não é o acabamento daquele iniciado em 1962: ele vai muito além disso. Inicialmente concebido como um docudrama, circunstâncias da história política do país interromperam o projeto, dispersando toda a equipe de filmagem. Dezessete anos depois, se o filme fosse simplesmente retomado como uma continuação do que fora começado, o significado da produção poderia ter sido completamente esvaziado. Ao invés disso, o cineasta decide realizar um documentário, “do modo que fosse possível”, retornando ao local das filmagens para saber o que havia sido feito daquelas pessoas.

Essa é a intenção do filme. Como documentário, Cabra Marcado Para Morrer é um relato de como a vida de todas aquelas pessoas foi profundamente marcada pelo momento histórico do país, configurando-se assim, num exemplo de ingerência extrema da esfera pública sobre a privada. E não só isso, o que o filme finalizado representa é um emaranhado de relações e de indicadores do modo como a História age no filme (do momento de sua concepção pelo CPC até o de sua retomada pelo cineasta apenas) e na esfera privada. Em contrapartida, tem-se ainda a atuação do filme sobre a História (como forma de reelaboração e de revisão do fatos, e até mesmo da construção de discurso) e sobre a vida particular daquelas pessoas.

Essas relações dinâmicas, de forças que interagem e apontam uma para outra, decorrem, principalmente, de duas implicações contidas neste filme. A primeira é que Cabra Marcado Para Morrer é um filme documentário e não simplesmente uma ficção da qual possam ser depreendidos aspectos particulares ou gerais do mundo histórico. E a segunda é que Cabra é um filme que transcorre a partir dele mesmo, a partir de seu início em 1962.

Segundo Bill Nichols, o documentário, além de ser o gênero de filme mais político que se conhece, ainda configura-se como um dispositivo que aponta para além dele mesmo, em direção ao mundo histórico. Assim, o documentário contribui para a formação de uma memória popular ao se fazer valer do aparato cinematográfico e da capacidade que este tem de empregar sons e imagens para reproduzir a aparência física das coisas e se tornar evidência do mundo. É desta forma que se legitima seu uso como fonte de conhecimento. Documentários nos apresentam situações e eventos que são parte de um reino de experiência compartilhada, e essa experiência aponta sempre para o mundo.

Tem-se, então, que o trabalho do documentarista é um pouco trabalho de historiador, na medida em que nos fornece uma interpretação do mundo e da história a partir dos documentos com os quais trabalha e que seleciona e enfatiza. Além disso, além de interrogar a sociedade e colocar-se à sua escuta, o cineasta contribui para a criação e a instituição de documentos, exatamente como prega Marc Ferro. O papel social do historiador, ainda segundo Ferro32, está em conceber voz àqueles que nunca puderam testemunhar, destituindo o monopólio da consciência histórica dos aparelhos institucionais, exatamente como se propõe Eduardo Coutinho quando se lança à finalização de Cabra Marcado Para Morrer.

Muito já se falou sobre este filme, do caráter de restituição da memória camponesa oprimida. Mas é importantíssimo falar ainda que o cineasta participa também de dentro, ou seja, enquanto pessoa histórica envolvida naqueles eventos, como ator social. E se ele decide retomar o projeto dezessete anos depois, e se lançar à procura daqueles camponeses desaparecidos para dar-lhes a palavra, é porque, para ele, há muito a ser dito sobre aquilo tudo. Coutinho toma partido e se posiciona no exato momento em que se propõe o resgate de uma história que se perderia – independentemente de sua validação como verdadeira, falsa, mentirosa ou construída. Pelo contrário, a construção daquela história é muito clara, ela nos é apresentada a cada instante. Nós sabemos qual é a intenção do cineasta, sabemos que ele participou e participa daqueles acontecimentos e quais as condições que possibilitaram a finalização do filme.

Quando o diretor reúne todos os testemunhos dos camponeses e os imprime no suporte cinematográfico ele, de fato, está operando a transformação dos relatos orais, da

história oral feita da memória, para o estatuto de documento histórico. E esse documento histórico vai ser a prova de que a história daquele momento passado, daquelas pessoas e daqueles eventos é uma outra história, diferente da oficial, da que se tinha até então (colhida na época através das notícias de jornais e dos relatos dos representantes do governo militar) e à qual o filme faz também referência.