• Nenhum resultado encontrado

IV CONSIDERAÇÕES FINAIS: do estabelecimento de conexões à reconstrução de significados

I. Recontando a narrativa

Procurar intersectar a arquitectura conceptual dos enunciados teóricos mobilizados com as tramas discursivas do poder, saber e fazer, colocando-os numa rede de relações, de forma a reconstruir significados de forma singular e criativa, não é tarefa fácil. Na verdade, traçar os contornos deste debate permite realçar o carácter específico, senão marginal e periférico, da educação de infância em idade pré-escolar, e desvendar os seus sentidos, complexidades, heterogeneidades, constrangimentos e potencialidades, no quadro da sua espessura histórica e social, para assim nos apropriarmos simbolicamente deles.

O esforço de objectivação que exercemos, ousando no entanto "viver" e confrontar a nossa subjectividade, suscitou a redescoberta, na coexistência do explícito e implícito, dos sentidos que habitam a prática pedagógica das educadoras de infância, isto é, também a nossa prática pedagógica.

Na verdade, as relações estabelecidas no e com o mundo da infância, em idade pré-escolar, definidas a partir dos parâmetros ou "normalizações" conformes às orientações politico - pedagógicas presentes em cada um dos contextos sociais em que foram instituídas, corporizam um conjunto de conhecimentos (saberes e saberes - fazer) particulares que nos dão conta da especificidade pedagógica deste campo, que, sofrendo no tempo, uma crescente institucionalização, se tem conseguido manter à margem do espaço institucional escolar (formal). Por outro lado, estas relações manifestam as continuidades e rupturas que têm permeado a reconstrução do conceito de criança e os modos de participar na sua socialização, influenciadas por uma crescente valorização da alfabetização, ou pela necessidade de dar resposta às questões sociais emergentes da contemporaneidade. Com efeito, as ideias de infância, do lugar da criança na sociedade em cada tempo social, estão intensamente dependentes de quem as formula, de quem as expressa.

Com o advento da universalização da educação de infância em idade pré-escolar, as instituições que se lhe destinam, autojustificam-se por propósitos de complementaridade à família, reiterando a interdependência entre o doméstico e o público, sendo toda a panóplia de detalhes o reflexo de uma tradição ambivalente entre liberdade e subordinação, controlo e

compromisso, voltados para o enquadramento social da criança. E este carácter normalizador, cuja tónica é colocada no binómio desenvolvimento- aprendizagem, que contribui, a nosso ver, para que as crianças, tendencialmente, sejam cada vez "mais alunas", sob os auspícios da sua protecção e formação, abafando a ideia de que "o saber da criança passa pela sua forma de interagir com o mundo" (Iturra, 2001:139), sendo certo, porém, que conhecimento e aprendizagem também fazem parte do universo da infância, enquanto espaço pedagógico não escolar.

Por sua vez as decisões curriculares tomadas pela tutela para a EPE, cuja tradição é extremamente centralizada, transparecem a existência de uma ruptura de paradigma, no sentido em que, as decisões sobre o currículo se deslocam do centro do sistema para as educadoras e para os Jardins de Infância. Queremos com isto, tornar claro que, hoje, o sentido político da educação, entendido como um direito de todos, se associa, tendencialmente, a uma definição essencialmente pedagógica enquanto relação dual, e na qual se pretende o estabelecimento de um efectivo compromisso da periferia com o centro e deste com a periferia.

Complexificando os fios desta argumentação, a nosso ver, a auréola no domínio politico faz-se sentir pela crescente pedagogização dos problemas sociais (Correia, 2000), parecendo estender-se à educação das crianças em idade pré-escolar sob pena de, por arrastamento, apontar para uma solução que passa por escolarizar mais cedo e mais tempo como garante do combate à exclusão social. Deste modo se vai construindo a realidade, continuamente regulada pelo Estado a quem cabe decidir o que é comum, e em cujo espaço, a criança aparece viva, com uma existência, mas a ser trabalhada.

A consumação deste envolvimento da infância constitui o pano de fundo onde se exprime a socialização da criança. Consequentemente, esta socialização é indexada a um referente que oscila entre a família e a escola, sendo que as questões da sequencialidade, isto é, da passagem do contexto familiar para o contexto institucional, captam, muitas vezes, representações (in) visíveis dos sistemas implícitos de acção subordinados socialmente ao saber hegemónico e definido pela lógica da metáfora da produção (Kliebard, 1975). Dir-se-ia que os factores que permeiam e contribuem para a institucionalização da criança, a jogam com efeito, na interacção de tensões contraditórias, isto é,

entre concepções de educação e de modos de fazer pedagógicos distintos que oscilam entre uma lógica mais técnica ou mais prática. Ou seja como no Capítuloll (ponto1.1) designámos, se situam entre um paradigma mais psicométrico ou paradigma fenomenológico.

A reinvenção da EPE, que parece subjacente a toda a centralidade que o final dos anos 90 concedeu à criança, fazendo gala dos seus direitos, e embora sob o ponto de vista da retórica possa assumir contornos de ruptura com o paradigma da produção, a verdade é que na prática estes contornos correspondem mais a figuras de continuidade. Por outras palavras, trata-se, em nosso entender de uma mudança retórica, na continuidade, pois a educação de infância, nos nossos dias, continua a conviver com o conjunto de pulsões contraditórias, situadas entre o privado e o público, o instruir e o educar, o individual e o social e ainda entre o relacional e o formativo. Ora, tendo em conta que a infância é uma produção sócio-histórica, associada a estes pares dicotómicos, a interrogação que aqui se coloca é justamente a de saber como enfrentar os conflitos, quando queremos desde cedo educar a criança para a autonomia. Dir-se-ia, portanto, que as educadoras, no tempo presente, não se confrontam com desafios novos, antes sim com desafios e limites transfigurados ciclicamente em função dos contextos socio-históricos em que são produzidos.