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4.2 Características morfossintáticas e semânticas das CIs

4.2.2 Recursos morfossintáticos e semânticos que integram as CIs

As CIs que ocorreram no PE e no PB também apresentaram características

semelhantes, no que diz respeito ao uso de recursos morfossintáticos e semânticos –

intervenientes ou não – acompanhando as construções perifrásticas.

Como elementos intervenientes, encontramos SNs na função de sujeito, alguns dos quais apresentamos a seguir:

100 Almeida (1980) utiliza exemplos do PE arcaico para mostrar algumas das preposições que ocorriam na CI,

(49)“Ia para casa rezar estações, impunha-se penitencias de muitas corôas á Virgem;

mas apenas as orações findavam, começava o temperamento a latejar.”

(QUEIRÓS, 1878, grifo nosso)

(50)“Não tem coragem p’ra nada: começam as mãos a tremer-lhe, a seccar-se-lhe a bocca... É mulher, é muito mulher!” (QUEIRÓS, 1878, grifo nosso)

(51)“Agora sim, começará nosso telégrafo a trabalhar, disse eu comigo mesmo

erguendo-me para tornar-me mais saliente.” (MACEDO, 1844, grifo nosso)

(52)“E desde então começou o nosso estudante a demorar seus olhares naquelle rosto, que com tanta injustiça taxára de irregular e feio.” (MACEDO, 1844, grifo nosso)

Foram poucas as ocorrências desse tipo de material interveniente: duas no PB escrito do século XIX, duas no PE escrito do século XIX, uma no PB escrito do século XX, uma no PB oral também do século XX, duas no PE escrito do século XXI e duas no PE oral também do século XXI. A diferença que notamos nas ocorrências da oralidade é que o SN sujeito apareceu como pronomes resumidores; de qualquer maneira, a referência do sujeito foi dada anteriormente no discurso, sendo o sujeito, portanto, pré-verbal, conforme se pode ver no exemplo a seguir:

(53)“garantido é que / logo a seguir de jantar / nove e tal / dez / pá / o pessoal começa-se todo a encontrar na / na / praça / pá //” (C-ORAL-ROM, 2000–, grifo nosso)

O SN sujeito interveniente ocorreu, em nossas amostras, apenas com a CI canônica começar a V2. Essa posposição do SN sujeito pode ser resquício da construção inacusativa na qual o verbo começar pleno pode figurar. Em construções inacusativas, o processamento de elementos pós-verbais, como o SN sujeito, acontece de maneira um pouco mais rápida do que com os elementos prepostos ao verbo, conforme verificado pela pesquisa de Souza et al. (2014). Dessa maneira, com a gramaticalização do verbo começar, o traço inacusativo pode ter permanecido nas construções mais gramaticalizadas (como é o caso das construções aspectuais), o que permite a esse verbo intercalar o sujeito na perífrase. Faz-se importante citar esse fato, pois ele endossa a chamada rede de construções: as construções linguísticas formam uma grande rede construcional, dentro da qual há diversas relações de herança de traços (GOLDBERG, 1995, 2006). Não estamos assumindo, contudo, que essa seja uma

característica exclusiva da referida CI canônica, pois nossos corpora não nos forneceram dados das CIs não-canônicas suficientes para fazermos esse tipo de generalização. Além disso, ressaltamos que o SN sujeito também ocorreu na posição pré-verbal na grande maioria das CIs, tanto canônicas quanto não-canônicas (97,3% do total dos dados), o que parece indicar que o SN sujeito interveniente não é uma configuração sintática produtiva nas CIs do português contemporâneo.

Além dos SNs, verificamos, em nossos dados, outros tipos de material interveniente,

como certos adjuntos adverbiais (ex.: “E passaram então a fallar de estudos [...] E passaram de

novo a fallar de estudos” (AZEVEDO, 1884, grifos nossos) e uma ocorrência de oração

intercalada (ex.: “deram não se sabe porque em chamal-o – Ubirajára.” (BARRETO, 1915, grifo nosso). Entretanto, da mesma maneira que ocorreu com os SNs sujeitos, essas configurações sintáticas não foram produtivas em nossas amostras: os advérbios ocorreram em diversas posições, devido à sua flutuação de posicionamento nas orações, e a sentença intercalada foi a única ocorrência que encontramos em nossas amostras.

Outros tipos de material que integraram as CIs, tanto as canônicas quanto as não- canônicas, foram os clíticos, intervenientes ou não. Houve ocorrências de clíticos acusativos, dativos, reflexivos e apassivadores. Vejamos, abaixo, alguns exemplos dessa configuração morfossintática:

(54)“O urubú, que tem um genio do diabo, ficou bravo e entrou a me picar feio e forte...” (ARANHA, 1911, grifo nosso – acusativo)

(55)“Um calor molle continuo cahia do forro; começou a faltar-lhe o ar.”

(QUEIRÓS, 1878, grifo nosso – dativo)

(56)“Começava então a servir-se a sobremesa.” (MACEDO, 1844, grifo nosso – apassivador)

(57)“Começou a fazer-se timida, e depois triste, como o gemido da rola.”

(MACEDO, 1844, grifo nosso – reflexivo)

Os clíticos são materiais previsíveis, principalmente se considerarmos as normas de colocação pronominal nas construções verbais, que preveem a ocorrência do complemento clítico tanto em posição enclítica quanto proclítica ao verbo principal (com exceção do particípio). Em nossos dados, além da ocorrência do clítico com V2 (ex. (54) a (57)), também encontramos próclises e ênclises ao V1 (com exceção de pôr-se a V2 e de meter-se a V2, em

que o clítico já faz parte das CIs), com as funções descritas no parágrafo anterior, além da chamada partícula de realce, conforme os exemplos abaixo indicam:

(58)“Deus me perdoe!.. nem eu sei... – e d’ahi começou-me a crescer, a olhar para mim com aquelles olhos...” (GARRETT, 1844, grifo nosso – partícula de realce) (59)“Sou hoje mais assiduo do que era ha um mez, e a razão é que ha um mez que

começas-te101 a fazer-lhe corte.” (ASSIS, 1863, grifo nosso – partícula de

realce)

(60)“Não tarde por aí... Já se começam a acender os lampiões da estrada.” (BRANDÃO, 1923, grifo nosso - apassivador)

(61) “Lá no Redondo tá lá uma senhora que é precisamente a cara dum homem: muitas barbas e um bigode grande! E já duro! Porque ela começou-o a tirar, quer dizer, ainda não usavam aqueles processos [...]” (CRPC, 1970, grifo nosso -

acusativo)

Com exceção da CI pôr-se a V2 e de meter-se a V2, não identificamos esse posicionamento do clítico junto do auxiliar em outras CIs não-canônicas; contudo, conforme dissemos anteriormente, nossas amostras não forneceram dados em profusão para que fizéssemos observações mais aprofundadas nesse sentido.

Os adjuntos adverbiais de tempo, dentre todas as estruturas que mencionamos até agora, foram as mais recorrentes em nossos dados (aproxim. 27,7% do total). Essas estruturas adverbiais, que ocorreram tanto na escrita quanto na oralidade das variedades do português comparadas, assumiram, em nossos corpora, funções que vão desde o licenciamento da marcação do aspecto inceptivo (no caso das perífrases de futuro e do modo subjuntivo) até a delimitação da situação, segundo os objetivos discursivo-pragmáticos do falante, tal como ilustram os excertos a seguir:

(62)“Agora sim, começará nosso telégrafo a trabalhar, disse eu comigo mesmo,

erguendo-me para tornar-me mais saliente.” (MACEDO, 1844, grifos nossos)

(63)“Hontem de tarde não: mas ésta noite começava a raiar-lhe no espirito alguma falsa luz d’essa van esperança.” (GARRETT, 1844, grifos nossos)

101 O hífen de “começas-te” consta na edição da obra que consultamos. No trecho, não há indicação de que esse

item gráfico é utilizado para separar a grafia do verbo “começaste” (o hífen não se encontra no final da linha, e,

Na primeira sentença, devido ao uso do tempo futuro, os adjuntos adverbiais são condições necessárias para que o aspecto inceptivo seja marcado, já que o futuro do presente pertence a um campo temporal em que não se pode ter certeza de que as situações irão ocorrer; o adjunto, portanto, funciona como um marco temporal a partir do qual parece certo que a situação irá se concretizar, o que constitui condição para que o aspecto inceptivo se manifeste. Já na segunda sentença, mesmo não havendo a necessidade de se dar certeza à concretização da situação (ela, de fato, já ocorreu), o enunciador valeu-se dos adjuntos adverbiais para chamar a atenção do leitor para o seu ponto de vista em relação à narração dos fatos (não foi ontem, mas hoje que a situação ocorreu). Percebemos, com isso, que os adjuntos adverbiais de tempo, nos contextos do aspecto inceptivo, podem ser utilizados com finalidades outras, além da função de determinar a marcação aspectual, sendo, por isso, bastante recorrentes. Não descreveremos aqui todos os advérbios de tempo que ocorreram em nossos dados, um a um, em suas especificidades comunicativas. Mesmo assim, é interessante de se observar o quanto essa classe gramatical é produtiva em contextos aspectuais, mesmo

que, a priori, os adjuntos adverbiais não sejam papéis exigidos pelas CIs102.

Como última observação desta subseção, voltamo-nos para a própria constituição da CI. Encontramos, em nossos corpora, CIs em que os verbos principais se encontram em coordenação com um único V1, tanto canônico quanto não-canônico, no PE e no PB (ex.: “Desandou a chorar, a berrar, a arrancar os cabellos, como se tivesse perdido a mulher ou um filho [...]” (BARRETO, 1915, grifos nossos)). Na coleta dos dados, optamos por considerar tais tipos de construção como uma única CI; mesmo assim, consideramos válido mostrar essa configuração sintática das CIs, no intuito de acrescentar dados à descrição das CIs nos estudos sobre o aspecto.

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