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Redemocratização e federalismo fiscal após 1988: breve contextualização

CAPÍTULO 2. FPM: o protagonista que compromete a cena

2.1. Redemocratização e federalismo fiscal após 1988: breve contextualização

Após 21 anos de regime militar, o Brasil voltou a viver um período de garantias democráticas com a eleição de um presidente civil, ainda que indireta, em 1985, e com a instauração da Assembleia Constituinte, em 1987. A força que solapara a presença de representantes das Forças Armadas no comando da nação aglutinara-se anos antes, com vitórias de candidatos do PMDB para os governos de importantes estados, como Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Esses governadores, que, juntamente com outros líderes, como Ulysses Guimarães, que viria a ser o principal artífice da formulação da nova Constituição, conduziram o clamor pela redemocratização em um movimento das extremidades político-federativas para o centro. Os representantes dos estados na Constituinte defenderam a transformação institucional em favor de um país menos centralizado e, naquele momento, atuaram para promover a quase coincidência semântica entre democratização e descentralização.

A centralização de poder político, administrativo e fiscal em Brasília depois de duas décadas, para as emergentes lideranças democráticas, demandava mudanças tanto em termos de restrições a direitos individuais quanto na partilha de poder territorial. E foi a conjugação desses princípios o que dominou o esforço de redesenho das instituições políticas brasileiras: na Constituinte, garantias sociais foram acompanhadas de autonomia subnacional, o direito de participação de grupos da sociedade fundiu-se ao movimento centrífugo favorável ao fortalecimento das bases da federação.

Desse processo de repactuação institucional e territorial ganhou status de ente federativo o município, uma situação ainda rara no mundo (SOUZA, 2005). O fortalecimento da municipalização contagiou áreas importantes das políticas públicas – vide a saúde – que viviam momentos de redefinição de parâmetros de cobertura e metas de acessibilidade. Gomes e MacDowell (2000) comentam que, embora o país não conte com uma Câmara congressual para representar os municípios, a defesa dos interesses de das esferas infrafederativos foi conduzida em favor daqueles novos entes, seja por meio de representantes de setores da sociedade ou dos estados que participaram da elaboração da Constituição. Em boa medida, a resultante de forças promovidas por essas lideranças sedimentou-se no entendimento de que o movimento pela descentralização seria o melhor caminho para a administração pública brasileira no novo contexto democrático.

40 E o princípio da descentralização nos âmbitos político, administrativo e fiscal, no que tange ao desenho institucional da federação, foi o substrato patente no texto constitucional promulgado em 1988. Foram consagradas as diretrizes, “fortemente descentralizadas” nas palavras de Prado (2006), em garantia do acesso dos entes subnacionais à receita nacional e à autonomia tributária.

Conjugado àquela conjuntura pró-democracia, o desenho da federação fiscal brasileira que se propunha assumia uma nova fase no histórico pendular entre descentralização e centralização (REZENDE, 2007). Também se repetia, no novo momento de repactuação fiscal, outra rodada de “barganha político-constitucional” entre as esferas de poder por bases tributárias e acesso à receita arrecadada. E, por influência do “humor” político daquele contexto, “a beneficiária líquida do processo de partilha” foi a esfera municipal (PRADO, 2006, pp.187). Em termos líquidos, de 1985 a 1996, isto é, na primeira fase do período de redemocratização, a participação agregada dos municípios na receita disponível nacional passou de 11,11% para 17%. Já a do governo federal sofreu retração de 62,67% para 56,45%, enquanto a parcela correspondente aos estados manteve-se praticamente inalterada, próxima de 26% (VARSANO, 1997).

Além do melhor acesso dos entes locais aos recursos tributários, o arranjo fiscal foi concebido com um viés de “municipalização das despesas”, situação que guardou algumas contradições. A ampliação das responsabilidades dos municípios na oferta de bens e serviços foi a outra face da moeda da promoção de status e, na nova Carta, esse ônus acompanhou o ganho proporcional na partilha do bolo tributário nacional. Entretanto, as atribuições de despesa não foram acompanhadas da capacidade de tributar, ou seja, de obter receita própria, e a ampla autonomia administrativa dos governos locais só se tornaria possível por meio da garantia dos recursos transferidos das esferas superioras (REZENDE, 2007; MENDES et ali., 2008).

Autores como Gasparini e Melo (2003) sustentam que a revisão do sistema tributário brasileiro, na Constituinte, foi “tímida” na tentativa de se obter uma equalização entre capacidade tributária e atribuições fiscais das esferas subnacionais, até mesmo em razão da força política dos representantes dos interesses de estados e municípios naquela arena, que acabaram por não enfrentar esse debate. Da mesma forma, a preocupação na definição dos critérios atinentes às transferências intergovernamentais (tigs) constitucionais, visando a uma partilha mais equilibrada da receita tributária nacional, foi eminentemente vertical. Por outro lado, as disparidades regionais e locais brasileiras, ou seja, as inequações horizontais, que já constituíam um

41 dos maiores desafios do país a serem enfrentados pela gestão pública, não foram devidamente equacionadas na Constituinte (COELHO, 2007).

As transferências intergovernamentais, em síntese, saíram consagradas daquele processo de repactuação da federação como instrumentos necessários à garantia de um acesso mais equitativo à receita tributária agregada, como compensação à limitação de tributar de estados e, principalmente, municípios. O governo central, em especial no período imediatamente posterior à redemocratização, passou a assumir uma função mais ativa de arrecadador e repassador de recursos (PRADO, 2006). Esse papel foi uma consequência da prevalência do caráter mais claramente vertical das tigs constitucionais, em destaque, do Fundo de Participação dos Municípios.

Se o FPM resultou de imediato num aumento significativo da participação da municipalidade na receita do país e se foi preservado e fortalecido com o propósito de se compensar o hiato entre demanda por bens públicos de padrões básicos e arrecadação própria, não se mostrou – e ainda não se mostra – capaz de reduzir as disparidades horizontais entre as unidades locais. Não à toa, os constituintes preservaram os mesmos critérios, instituídos durante o regime militar, para o fundo, transferência obrigatória que se mantém como a principal via das jurisdições locais ao bolo tributária nacional.