• Nenhum resultado encontrado

Redes de compadrio da população indígena

Por outro lado, a rede formada pela compilação desses 68 registros, que apresentamos abaixo, mantém uma característica de intensa fragmentação, apresentando um total de 53 componentes distintos. Diante deste quadro, arriscamos dizer que as oportunidades que se colocavam para estas populações passavam, em certa medida, por sua integração a outras redes locais, que possibilitariam o acesso a um conjunto de relações mais articuladas dentro daquela sociedade. Mas nos parece que essa questão precisa ser matizada: ainda que pudesse ser assim para algumas famílias que permaneceram na sede de Viamão, seria necessário analisar o comportamento dessa população de forma mais ampla, especialmente a partir dos registros da Freguesia dos Anjos, para se ter uma ideia melhor de como se construíam suas relações de sociabilidade, especialmente entre o estrato livre desta população55.

Grafo 15: Redes de compadrio da população indígena Fonte: AHCMPA - Livro 1 de Batismos da Freguesia de Viamão

55 Para a população indígena da Aldeia dos Anjos nas décadas seguintes (especialmente após 1770), ver o

trabalho já mencionado de Sirtori e Gil (2012), e também a dissertação de Bruna Sirtori (2008) e a tese de Elisa Garcia (2007).

128 A insistência das relações verticais entre senhores e estratos menos abastados nos leva a pensar como, por um lado, interessava aos senhores e donas dessa sociedade criar vínculos com indivíduos alegadamente subalternos, mas que lhes serviam de base social e clientela, contribuindo para o acúmulo de prestígio, poder e capital relacional. Por outro lado, as pistas deixadas pelas relações de parentesco espiritual apontam para estratégias que beneficiavam também esses índios e índias, ao constituir relações ‘pra cima’ que poderiam resultar em proteção e benefícios, de ordem econômica ou não.

Ao trabalhar com os registros batismais da freguesia de Nossa Senhora dos Anjos, recém-emancipada de Viamão, Bruna Sirtori identificou a realização de 1162 batismos de crianças indígenas no período entre 1765 e 1784, ou 70% dos registros daquela localidade (SIRTORI, 2008, p. 154), o que nos dá uma boa pista de onde estavam sendo batizadas aquelas crianças após 1765. Neste contexto, Sirtori encontrou indícios consistentes de uma aliança entre as famílias da elite local, ligadas à Conquista, e agrupamentos indígenas da região, como estratégia para garantir a ocupação daqueles territórios (Idem, p. 165). Entretanto, diferente do que encontramos para Viamão, onde as relações de compadrio se davam, majoritariamente, de forma direta entre indígenas e livres, Sirtori identificou uma presença maior de homens cativos negros entre os padrinhos, especialmente aqueles oriundos da escravaria do capitão Antônio Pinto Carneiro, então administrador do Aldeamento dos Anjos e conhecido aliado da família Pinto Bandeira, de modo que as relações entre indígenas e a liderança política local poderia ter sido mediada por relações de compadrio com seus escravos.

A presença maciça de padrinhos oriundos da senzala do Capitão do Aldeamento pode indicar uma estratégia dos casais indígenas de trazer para suas relações pessoais um integrante do óikos daquele que era responsável por administrá-los, e que, portanto, tinha o poder de mando e justiça no aldeamento. (SIRTORI, 2008, p. 185)

Além disso, Sirtori identifica uma tendência inicial de endogenia na escolha das madrinhas nos registros por ela estudados, o que também os diferencia daquilo que encontramos para a freguesia de Viamão na década de 1750 (Idem, p. 192).

Essas diferenças poderiam estar relacionadas à forma como estas populações indígenas estavam sendo incorporadas àquela sociedade em formação – seja como aldeados, seja como agregados ou administrados. Maicon Marcante (2012), ao estudar as relações de compadrio e as formas de inserção social no aldeamento indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná, em meados do século XIX, demonstra as diferentes formas

129 de utilização do compadrio pelas diferentes etnias presentes naquela comunidade. Conforme demonstra o autor, as três etnias presentes apresentaram padrões bastante distintos de inserção social e econômica naquela comunidade, o que parece ter se refletido em suas relações junto a pia batismal. Os índios Guarani-Kaiowá da região, aponta Marcante, colocaram em prática uma inserção mais pessoalizada, buscando nas relações de compadrio tecidas com outros grupos étnicos, especialmente brancos, a obtenção de benefícios, principalmente de ordem material. Por outro lado, os índios Guarani-Ñandeva, diferentemente, tiveram uma inserção mais marginalizada, o que se refletiu na construção de relações de compadrio com setores menos abastados daquela sociedade. Finalmente, a etnia Kaingang levou a cabo uma inserção mais independente, e esta forma de inserção se refletiu na escassez das relações de compadrio que teceram com os não índios de São Pedro de Alcântara (MARCANTE, 2012, p. 110).

Em outro estudo, Max Ribeiro e Leandro Fontella (2015) apresentam uma comparação quanto ao uso do compadrio por populações indígenas em dois contextos meridionais, ambos no século XIX: a Freguesia de São Francisco de Borja, uma das antigas missões anexadas aos domínios portugueses no século anterior, e a Capela de Santa Maria, localizada na região central do Rio Grande; ambas as regiões com forte presença nativa em sua povoação. Neste trabalho, os autores demonstram uma tendência endógena na escolha de padrinhos nos dois locais, havendo uma preferência por parte das populações indígenas pela escolha de compadres da mesma etnia. Essa tendência é reafirmada por Max Ribeiro em sua tese de doutorado, onde o autor identifica o mesmo padrão de endogenia nas relações de compadrio entre os índios Guarani da região do Vale do Jacuí, em fins do século XVIII (RIBEIRO, 2017, p. 163).

A leitura destes estudos sugere que o acesso e a utilização do instituto do compadrio por aquelas populações indígenas era bastante influenciada por elementos externos ao próprio compadrio, em especial pela inserção social e econômica daquelas populações na sociedade que a circundava. Desta forma, como se viu, diferentes etnias poderiam fazer uso desta instituição de acordo com sua conveniência, conforme aponta Marcante; por outro lado, como apontam Ribeiro e Fontella, a composição demográfica de uma localidade poderia, também, influenciar na construção das relações sociais de uma comunidade, entre outros fatores.

130 Dos batismos de indígenas realizados em Viamão, descritos anteriormente, o corpus selecionado para este trabalho reuniu os registros de sete indivíduos ao todo, administrados pela senhora Ana da Guerra. Esta ‘dona’, já mencionada anteriormente, era viúva do fazendeiro Diogo da Fonseca Martins e filha do capitão-mor da vila de Laguna, Francisco de Brito Peixoto, além de ser tia do também já mencionado Francisco Pinto Bandeira. Os róis de confessados da década de 1750 dão conta que o número de administrados sob sua tutela ultrapassava o número de 20 indivíduos. A escolha desse recorte se justifica, portanto, pela sua representatividade: essa fazenda possuía, de longe, o maior número de administrados da região, além destes terem comparecido frequentemente frente a pia batismal - talvez pela intercessão da própria senhora no sentido de batizar os nascituros, como veremos56.

Importante notar, conforme mencionado acima, que a própria Ana da Guerra era também filha de uma índia livre, a carijó Severina Dias, que por sinal não foi a única companheira de origem indígena do capitão-mor da vila de Laguna; Ana era, portanto, uma mestiça, embora isso jamais seja mencionado nas fontes paroquiais. Isso também não foi impedimento para que ela arranjasse um bom casamento, ou se tornar-se senhora de um plantel bastante avantajado para os padrões daquela localidade.

Por outro lado, foi possível notar que Ana da Guerra não foi uma madrinha muito solicitada na região de Viamão, embora possuísse extensa parentela radicada ali; ela só aparece em três registros, todos durante a década de 1750, onde contrai relações de compadrio quase sempre com pessoas de baixo status social, entre elas duas mulheres negras (uma escrava e outra forra) e um índio, além de uma mulher de origem mestiça, assim como ela. Assim, ao contrário de alguns de seus primos57, que desempenharam papel importante nas redes de compadrio da região, podemos notar que Ana da Guerra teve uma participação mais discreta como madrinha. Ao invés disso, foi através dos indígenas por ela administrados que se estabeleceram relações com outras famílias destacadas da região, como mostrado a seguir.

56 A análise de um recorte que abrangesse as relações de indígenas livres mostrou-se bastante prejudicada pela fragmentação dessas relações, bem como pela sub-representação desse estrato nas fontes. Mas pode- se afirmar que o corpus analisado manteve a tendência geral, mencionada inicialmente, de associação com o extrato livre da região.

57 A senhora Ana da Guerra era aparentada de diversas famílias lagunenses que tiveram papel social e econômico importante na formação de Viamão, como já comentado. Entre estas, podemos citar os Pinto Bandeira, os Guterres e os Magalhães, todos descendentes do Capitão-Mor Francisco de Brito Peixoto, além de famílias vicentinas, como os Leme Barbosa.

131 Dito isto, cabe apresentar a rede de relacionamentos forjada pelos índios administrados por esta senhora, que pode ser conferida no grafo abaixo:

Grafo 16: Redes de compadrio dos administrados de Ana Guerra58