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3. Da Quinta da Holandesa ao Bairro do Armador: realojamento, integração ou ambos para a comunidade indiana?

3.4 Reflexão crítica

Os bairros, embora territorialmente implantados, são, antes de tudo, construções sociais. (Cachado, 2012: 30). Quantas pessoas da comunidade hindu do bairro do Armador têm acesso à cidadania plena? Da escola, instituição que melhor pode integrar na cidade etnicamente diversa em que vivemos, recebemos ecos de duas jovens (cujas origens eram de Diu) sobre a impossibilidade de frequentar as aulas de Português Língua Não Materna (PLNM), por falta de vagas. E assim a escola perpetua a ideia de que aulas para estrangeiros são para os alunos oriundos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), ideia essa errada, e dos países de Leste. E consequentemente, prevalece uma boa vontade de multiculturalismo, em vez de interculturalismo. Se observarmos e lermos a imagem com a explicação da entrada no Bairro do Armador, uma das “armas” sedutoras do bairro é mesmo essa, a de uma multiculturalidade, referida como característica quase “exótica” do bairro:

Figura 15: Parte da sinalética com explicação histórica Figura 16: Ampliação da parte explicativa da população que habita no bairro

Parece-nos haver alguma confusão nestes conceitos e por isso é relevante referir alguns apontamentos sobre este assunto. Numa aula de O Espaço das Migrações, o professor Malheiros colocou-nos a refletir sobre o contexto multicultural (no sentido pluralista), no qual a cultura é um conceito estático e isolado, onde existe a representação da minha própria cultura em contraponto à cultura específica do outro.

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Reconhece-se a diferença e a coexistência de várias diferenças num espaço, mas a verdade é que a diversidade não tem propostas concretas para ser lidada. Ao contrário, o contexto intercultural reconhece a cultura como um conceito dinâmico e relacionado, para além e fora da minha própria cultura. Promove a interação de diferenças e vai mais além: procura compreender pela diferença a forma como o outro se nos apresenta. Não nos iludamos com as respostas dos entrevistados de origem portuguesa: muitos falam sobre o conhecimento que possuem da cultura indiana, todos elogiam a comunidade hindu e alegam lidar bem com a diversidade... mas quantas situações efetivas de interação existem de verdade? Poderiamos questionar sobre as mudanças que ocorreram quer nos autoctones que moram no bairro do Armador, quer nos imigrantes. Sinais de alguma integração a esse nível poderiam ser referidos: a participação das famílias portuguesas nos casamentos hindus dos jovens do bairro, a mesma participação ao contrário nas festas de primeira comunhão... mas é uma taxa ínfima de autêntica mistura. “La plasticité désigne la capacité qu’ont certains composants à s’in-former (recevoir une forme) et à se dé- former, tout en gardant unité et cohérence. La plasticité est donc une condition nécessaire pour que la vie apparaisse, se maintienne et puisse évoluer » (Dominique Lambert). Acreditamos que esta plasticidade do Bairro do Armador tenderá a surgir mais tarde, quando as pessoas estiverem menos tempo em movimento, entenda-se, que se fixem por períodos mais longos, e consigam entrar em diálogo. Foi igualmente nosso parecer, decorrente das observações que fomos fazendo ao longo dos últimos dezoito meses, que apenas o conhecimento do outro poderá fazer desbloquear o caminho para a integração que leve à participação na vida do bairro. A construção de atividades e bens comuns através de forças individuais que atuam em conjunto tem de entrar nas prioridades de um bairro que, apesar de já se encontrar numa fase adolescente, parece ainda estar numa etapa embrionária.

Verifica-se também a presença de preconceitos quanto a quem não parece português, com a tentativa de uniformizar, como se a beleza do bairro fosse posta em causa pelas diferenças que se observam no dia-a-dia. O desconhecimento leva à ignorância de continuar a chamar de “minoria étnica”, “imigrantes”, “indianos”, quem muitas vezes já nasceu, cresceu, estudou, casou aqui.

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Outro dos aspetos relevantes observados e que nos surpreendeu, uma vez que viamos a boa-vontade de todos no que respeitava ao desejo de ser parte ativa das decisões, foi quanto ao direito de participação, o qual é disforme: vem de cima para baixo. Não há representante da comunidade hindu no grupo comunitário. Ex.: a comunidade paroquial S. Maximiliano Kolbe quer convidar alguém da população indiana, do bairro do Armador, para falar na sua festa sobre um elemento da cultura e não sabe a quem recorrer. Isso poderá ser fruto de algum desenraizamento (ou de alguma desestruturação, sobretudo ao nível mais formal), já referido na caracterização que fizémos da comunidade hindú, e que se terá acentuado em consequência da crise, que levou muitos dos realojados a partir novamente.

Surpreendeu-nos ouvir que alguns moradores acreditavam que não havia forma de comunicar por causa da língua, mas em cada casa indiana, há sempre alguém que percebe um pouco de português.10

Deixa-nos igualmente perplexos a questão das instituições no bairro, em particular a empresa municipal que gere o património habitacional. Há dois anos deu- se o encerramento da loja da Gebalis no bairro e a transferência dos seus serviços para a Loja do cidadão, no Bairro da Flamenga (serviços mais centrais e pouco ou nada personalizados, sem a presença de mediadores). As pessoas queixam-se deste funcionamento. Falam da mudança dos técnicos, do desconhecimento que as pessoas têm face aos bairros onde trabalham e que nós próprios pudemos constatar quando nos dirigimos à Loja do Cidadão da Bela Vista, acreditando que seria o sítio ideal para pedir as informações que necessitavamos, e onde fomos surpreendidos pela pessoa que dizia desconhecer de todo o Bairro do Armador.

Alguns encontros mais informais vão acontecendo: o rito religioso hindu na escola primária, alguns encontros na mercearia indiana (a única do bairro) que tem uma divisão tapada com um pano indiano, onde se sentam os “patriarcas” que tertuliam sobre uma futura Casa de Diu, à semelhança da Casa de Goa. Foi do interesse da investigadora que este trabalho de investigação promovesse uma reflexão sobre o realojamento da comunidade indiana no Bairro do Armador, procurando estabelecer

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algumas considerações sobre esse processo, seu acompanhamento e a integração desta etnia no quadro das relações sociais do bairro e, também, na rede de eventos, instituições e projetos com intervenção relevante neste espaço geográfico. Afinal, passaram-se quase 20 anos desde a atribuição dos fogos de habitação social a estas famílias.

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