• Nenhum resultado encontrado

A POESIA NEGRA BRASILEIRA: “NOVIDADE QUE PERMANECE NOVIDADE”

REFLEXÃO Noite passada,

passada em claro me martelou a cabeça uma questão de ordem semântica.

Não será que quando se diz „democracia racial‟ na verdade se quer dizer

„hipocrisia social‟?(LIMEIRA, 1988: 114)

A ausência de reconhecimento das relações raciais intrinsecamente desiguais no Brasil, fruto da política da cegueira, engendrada também pela academia, encontra neste poema uma forte contestação. Há neste poema a utilização de um tom irônico para abordar tanto a falácia do mito da cordialidade quanto a manipulação teórica instrumental de uma

de uma introspecção, desenvolve um questionamento acerca dos problemas raciais brasileiros. Não nos parece precipitado afirmar que o eu lírico representa neste poema o ativista anti-racista em seu primeiro estágio: o despertar de um sono profundo, seguido de indagações que anseiam por respostas. Utilizando um jogo de palavras, Noite passada,/passada em claro, „democracia racial‟/‟hipocrisia social‟, o eu narrador subverte o código lingüístico do vocabulário racista convencional.

O vocábulo noite, por exemplo, historicamente representou algo negativo no mencionado código, pois remete à escuridão, às trevas, ao negro. Ao ouvir a palavra Noite, a mente racista faz a declinação sinonímica, utilizando-se de seu idioleto específico, até chegar neste último sema, negro; aí a psique afetada pelo racismo secreta sua repugnância pelo termo. No entanto, no contexto em que é usada a palavra Noite, o eu narrador atribui outra conotação ao termo, uma vez que ela representa o seu momento do despertar da consciência racial, ao passo em que o claro, que sempre foi sinônimo de brancura, de nitidez, de pureza, neste contexto, representa, a cegueira, o tormento, a agonia, o “martelar a cabeça”. Mas o eu lírico, apesar de não ter “dormido”, desperta ao descobrir o engodo ideológico do mito do auto-engano mantido por uma sociedade falsa, socialmente hipócrita. Em decorrência disso, ao deixar o último verso na forma interrogativa, o eu narrador convida seu leitor a operar uma reflexão que poderá construir criticidade mesmo naqueles cujo racismo eliminou a sensibilidade diante dos problemas raciais enfrentados pela parcela negra da sociedade.

As conseqüências do racismo genocida provocado via mestiçagem compulsória, além de toda perversidade de assassinato do fenótipo alvo, dissemina na sociedade de forma rápida, tanto horizontalmente quanto verticalmente conceitos que vão sendo

do mencionado vocabulário, que se manifestam sutilmente nas relações pessoais entre

indivíduos racialmente dissimiles. ESCADA DA VIDA

São cinco degraus E em cada um Se ganha graus

Conseguindo o primeirinho Bem de levinho...

Te chamam de neguinho Dando uma de tolo Atinge o segundo E ouve-se crioulo O terceiro você

Se procura num “gueto” E o novo grau

É preto

O quarto é triste,

Uma conquista no sereno E o sistema te chama de moreno O quinto é o mais difícil

Porém encanta Condecorando-se Preto de alma branca (ALBERTO, 1988: 152)

No poema “Escada da vida”, o eu poético, num tom irônico, faz uma descrição verticalizada das nomenclaturas estereotipadas utilizadas pelo discurso hegemônico brasileiro, nesse caso, em especial o da mestiçagem, para qualificar o negro numa espécie de escalada hierárquica de grau e importância. Ao resgatar essas nomenclaturas, o eu lírico, através da ironia, acaba repugnando-as, pois ele demonstra que essas são frutos da política eugênica da mestiçagem compulsória, que estereotipa o negro e que tanto visa extirpar o

sua coerência grupal enquanto segmento racialmente lesado. No primeiro verso, o eu poético quantifica os estágios que o negro brasileiro deve percorrer no sentido de conseguir a “aceitação” no sistema social-racial brasileiro, “São cinco degraus”.

Nesse sentido, ele frisa que o negro, à medida que vai obtendo êxito na escalada social, vai recebendo condecorações, ou seja, “Se ganha graus”. Numa linguagem direta, o lírico, ao passo em que sistematiza o ordenamento pigmentocrático do país, denuncia os “eufemismos” criados para disfarçar a repulsa pela negrura. È importante ressaltar que, mesmo atingindo o topo da escalada social, ou justamente porque atingiu o topo, é que o homem de cor não é adjetivado em sua essência como um negro, porém, um “Preto” cuja “alma” é “branca”. O que nos parece perceptível na descrição do eu poemático é fundamentalmente a tentativa de revelar o quanto ainda persiste, na sociedade brasileira, de resquícios dos mitos raciais e seus desdobramentos, à medida que palavras e expressões corriqueiras utilizadas pela dicção racista para se referirem aos negros são amplamente utilizadas.

A utilizar um termo no diminutivo, “neguinho”, algo que para os que insistem em sustentar o mito de democracia racial no país, pode soar como uma possibilidade de adjetivar carinhosamente alguém qualquer. Nesse sentido, “a harmonia racial” no Brasil estaria “garantida” justamente em função da suposta delicadeza utilizada para qualificar o negro. O eu lírico ao construir um verso dessa natureza, utilizando-se de um termo do cotidiano brasileiro, nos permite, um primeiro momento, hierarquizar, se é que isso é possível, o mito de democracia racial como a primeira barreira a ser enfrentada pelo homem de cor. Num segundo momento, suscita uma reflexão acerca do por quê não se percebe, pelo menos na mesma proporção e nem na mesma acepção da palavra, na

perspectiva diminutiva: branquinho.

No desfecho do poema, o eu lírico denuncia que a condição para que o negro seja socialmente “aceito” na sociedade brasileira ocorre justamente através da internalização compulsória de um ideal de ego branco, ou seja, na epidermização da inferioridade, na repulsa pela cor oposta à brancura, justamente para transcender o determinismo geográfico do “gueto” que fabrica “preto”, e desembocar na condecoração maior que um homem de cor pode “conseguir” no Brasil - ser um “preto de alma branca”. Seguindo a mesma linha de utilização de expressões populares que refletem o racismo brasileiro encontraremos o seguinte poema:

PRETO DE ALMA BRANCA: