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Reflexões em torno da relação entre história e literatura

2. O processo metodológico

2.3 Reflexões em torno da relação entre história e literatura

Ao reinventar, simular, imaginar, construir o real, a produção literária gera, determinadas vezes, um conhecimento particular e que contribui para o desvendamento da essência mesma do processo histórico brasileiro. (SEGATTO,1999, p. 219).

A obra graciliânica produzida na primeira metade do século XX, embora alguns textos tenham sido publicados depois desse período, revela um grande potencial como documento, não apenas por referir-se a uma determinada época, ou a acontecimentos históricos fundamentais na história brasileira, mas como fonte para se traçar um retrato da sociedade representada por homens, mulheres e crianças, brancos e negros, ricos e pobres, letrados e iletrados. Da ficção à memória e do cruzamento entre as duas, há na obra do escritor uma preocupação em revelar um modo de vida das pessoas mais simples, menos favorecidas, menos ouvidas, menos reveladas.

A literatura deve apenas deleitar ou precisa de alguma utilidade? Desde Horácio vem se discutindo se a arte deve ser “doce” ou “útil” ou “doce” e “útil”. De modo geral, os tratados de Estética e de Poética não se alteram quanto a esses aspectos. Parece que a conclusão mais sensata é a de que a arte, e, no caso específico, a literatura, é doce e útil para

seus usuários. Doce, porque dá prazer pela habilidade com que articula os elementos da imaginação; útil pela promoção da reflexão e da libertação, fruto de uma boa articulação de seus elementos. (WELLEK e WARREN, 1962, p. 32-3).

Por mais que a obra de arte esteja relacionada ao prazer e seja fruto da imaginação e da criatividade, há um outro elemento que a caracteriza: seu condicionamento ao contexto histórico e social em que o produtor está inserido e do qual não sai ileso. Esse elo com a realidade é que permite transformar um texto literário em documento para estudar a história, a educação, a educação da mulher e outros aspectos da sociedade.

Entre as concepções que Le Goff (1994) apresenta para o termo história, destacamos o de história com o sentido de narração, isto é, história é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na realidade histórica ou puramente imaginária – pode ser uma narração histórica ou uma fábula. Essa definição traz à tona a discussão que começou a ocupar o discurso dos historiadores: a validade das fontes narrativas e a narrativa como instrumento do historiador.

Essa preocupação dos historiadores, a tentativa de aproximação da história com a literatura, tem a ver com o interesse em recuperar “uma categoria perdida com o recrudescimento da narrativa, a categoria da experiência na fonte histórica, bem como no discurso historiográfico” (REINATO,1998, p. 46-7).

A preocupação com o desaparecimento da narrativa é trazida por Benjamim (1993), que aponta como uma das causas para esse fato a desvalorização da experiência pessoal, transmitida por via oral, de pessoa para pessoa. Em seu lugar está a informação que apresenta fatos imediatos e prontos, que não deixam margem à imaginação e ao esforço individual de completá-los. Recebemos os fatos já digeridos, sem precisarmos realizar qualquer esforço para compreendê-los. Por outro lado, eles geralmente se voltam para acontecimentos atuais e próximos ao leitor, conseqüentemente a notícia de lugares distantes passa a ser negligenciada em favor do imediatismo. Há uma necessidade de se provar e comprovar tudo o que se ouve

ou se lê. Em todo esse processo, o surgimento da imprensa, com a edição diária de jornais, deu grande contribuição.

A arte de contar histórias, desde os tempos mais remotos, ligou-se a atividades profissionais de caráter artesanal que promoviam no ouvinte o auto-esquecimento, a facilidade de gravá-las na memória e a capacidade de recontá-las. Com a industrialização, o trabalho manual foi sendo substituído pelo trabalho com as máquinas, e uma série de fatores fez com que os homens já não tivessem tempo para se reunirem em torno de alguém que tivesse algo para contar. A troca de experiência começou a perder o seu valor, porque cada um passou a se preocupar com o seu rendimento no trabalho e, assim, as pessoas que tinham algo para contar foram esquecendo como isso era feito, pois não tinham mais a quem contar. A retomada da narrativa e a revitalização da experiência é uma forma de contrapor-se à tecnologia e à massificação da mídia que têm silenciado a memória e a história dos vencidos.

Ao propor um estudo histórico de textos literários, acredito na sua potencialidade como documento, concordando com a afirmação de Morais (2002, p. 29.): “Ainda que se considere o estatuto próprio do texto literário, ele é uma produção social válida porque revela, de uma outra forma, o que a análise social revela através de outros processos de investigação”. Concordo também com o que diz Gonçalves Filho (2000), quando afirma que a presença de elementos históricos, biográficos e literários numa obra literária não podem ser considerados simples acaso, mas fazem parte do entrelaçamento entre fatores artísticos e culturais.

O exclusivismo literário praticado na suposição de que a literatura é tão somente produto da imaginação criadora, anula os fatores que dão vida e justificam essa imaginação – são as relações tensas entre indivíduo e sociedade. Um mundo que o homem não consegue, pela razão, tornar familiar, a literatura surge, pela

imaginação, como um meio de compensar essas “rachaduras” metafísicas e existenciais deixadas pelas práticas “racionais”, religiosas e políticas. (GONÇALVES FILHO, 2000, p. 36).

Escolher o romance para investigar a representação de uma época, demanda a consciência de que existe uma zona de contato entre este, a vida corrente e a ideologia. Tal qual o homem e sua realidade, o romance é um gênero inacabado, em construção, com possibilidade de representá-los, pois na evolução do romance, constata-se que “as fronteiras entre o artístico e o extraliterário, entre literatura e não literatura, etc., não são mais estabelecidas pelos deuses” (BAKHTIN, 1988, p. 422).

Essa afirmação remete-nos à revolução epistemológica realizada pela Nouvelle

Histoire, ao promover uma mudança no conceito de tempo histórico. Afastando-se da

teologia e da filosofia e aproximando-se das ciências sociais, altera o conceito de história que deixa de ser uma “construção linear e acelerada do futuro, da utopia, da liberdade” (REIS, 2000, p. 31), rejeita a abordagem teleológica e humaniza o tempo histórico. Dessa forma submete a sociedade “à representação do tempo da física e da matemática [...] procura encontrar no mundo humano regularidades, estabilidades, reversibilidades”. Permanências, continuidades, interdependências e simultaneidades. Essa nova visão implica também uma alteração de técnicas, métodos e fontes. Fonte histórica passa a ser todos os documentos que tratem da vida cotidiana do homem comum, de suas idéias, seus feitos, seus valores, suas formas de representação da realidade. “Agora, a história poderá ser feita com todos os documentos que são vestígios da passagem do homem.” (REIS, 2000, p.37).

Veyne (1988) afirma que “a história é um conto, uma narração, mas um conto de acontecimentos verdadeiros” e mais adiante compara a história com um romance, pois é feita de intrigas. Le Goff, ao retomar essa definição, chama a atenção para o perigo que esta noção representa para a história, pois pode levar a pensar que o historiador tem a mesma liberdade que o romancista, e assim sendo a história não seria ciência. Se não concorda com Paul Veyne, Le Goff também discorda dos positivistas que pretendem banir toda a imaginação do

trabalho histórico. Para este autor, o historiador pode recorrer a dois tipos de imaginação: “a que consiste em animar o que está morto nos documentos e faz parte do trabalho histórico e a imaginação científica, que se manifesta pelo poder de abstração” (LE GOFF, 1994, p. 40).

A coincidência que desde muito tempo houve entre história e narrativa tem gerado afirmações classificadas, muitas vezes, como incongruentes. Decca (2000, p. 18), por exemplo, chama a atenção para a definição de White (1992): “história é uma narrativa que pretende prefigurar aquilo que aconteceu, tomando como referência o campo das ações humanas”. Para Decca, essa definição coloca a história e a ficção num “mesmo universo de comunicação e de funcionamento lingüístico”. O autor alerta para o fato de que mesmo que ambas pertençam ao campo das narrativas e se construam tomando como base as ações humanas, o modo de enunciação para uma e para outra é diferente.

As artes, de um modo geral, passaram a ser utilizadas pelo historiador, possibilitando- lhe a compreensão da mentalidade de uma época.

Se antes a documentação era relativa ao evento e seu produtor, o grande personagem histórico em suas lutas históricas, agora ela é relativa ao campo econômico-social-mental: ela se torna massiva, serial, revelando o duradouro, a permanência, as estruturas sociais. Os documentos se referem à vida cotidiana das massas anônimas, à sua vida produtiva, à sua vida comercial, ao seu consumo, às suas crenças coletivas, às suas diversas formas de organização da vida social.[...] Todos os meios são tentados para se vencer as lacunas e silêncios das fontes, mesmo, e não sem risco, os considerados antiobjetivos. (REIS, 1994, p.18-9).

Nesse ínterim, a ficção literária representa

[...] uma estrutura simbólica, isto é, como uma outra narrativa que, seguindo outras estratégias, organiza, a partir de um outro referencial, os mesmos eventos humanos, sem precisar se valer da prova empírica ou da evidência, prerrogativas indispensáveis de uma narrativa que se pretende científica, como é o caso da história. (DECCA, 2000, p.19).

Sendo assim, todos os documentos que representam marcas da passagem do homem pelo universo são fontes para a história. A literatura como forma de expressão e representação do mundo pode constituir-se em instrumento valioso para dar conhecimento de fatos, muitas vezes omitidos, ou mostrar uma outra visão desses mesmos fatos. Concordo com Pesavento (2004) quando diz que a literatura é uma fonte especial para o historiador, que tem nela uma opção de ver a realidade como outras fontes não lhe permitirão, uma vez que a literatura lida com sensibilidades e valores, trazendo à tona o imaginário de uma dada realidade.

A Literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Porque se fala disto e não daquilo em um texto? O que é recorrente em uma época, o que escandaliza, o que emociona, o que é aceito socialmente e o que é condenado ou proibido? Para além das disposições legais ou de códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que fornece os indícios para pensar como e por que as pessoas agiam desta e daquela forma. (PESAVENTO, 2004, p. 82-83).

Neste trabalho, a utilização da fonte literária está associada a outras que considero importantes, para estabelecer comparações, inter-relações e complementações. Para isso recorro a documentos oficiais como a Constituição Brasileira de 1934, a Constituição Brasileira de 1937, o Código Civil Brasileiro de 1917, discursos e mensagens oficiais por ocasião de posse de cargos, além da literatura voltada para a história da educação no Brasil, no período escolhido para enfoque.

A cada releitura das fontes, novas perguntas surgem, outros olhares são lançados, as categorias escolhidas se abalam. Percurso natural de uma pesquisa, pois, concordando com Duby (1993), a leitura das fontes vai desvendando os mistérios, mas também suscitando dúvidas.

As primeiras categorias escolhidas para análise são as de gênero, estado civil e escolaridade (educação), porque foram as que inicialmente se apresentaram durante a leitura dos romances selecionados. São também as categorias que eu procuro logo estabelecer uma definição. Porém as várias releituras que se sucederam apontaram para a necessidade de enfocar outras categorias, como: domínio da linguagem, sexualidade, educação da mulher, casamento, família, tipos de leitura, mulher ideal, mulher e trabalho. Para essas, à medida em que forem aparecendo na pesquisa, vou comentando o que entendo das mesmas.

Essas categorias não são estanques e nem exclusivas de um único romance, entre os escolhidos. Por vezes, são recorrentes em um e outro romance analisado; outras vezes está mais enfatizado em um que em outro. Mas, de maneira geral, perpassam as narrativas fonte deste estudo.

Em relação a gênero, entendo-a não como resultado de diferenças biológicas que determinam antecipadamente os papéis a serem exercidos na sociedade, mas como algo que vai se construindo gradativamente no contexto histórico e sociocultural, forjando identidades masculinas e femininas que nortearão a definição de funções e posturas típicas de homens e de mulheres. Essa noção de gênero apóia-se em Faria e Nobre (1987) como também em Saffioti (1976).

Tomo como definição para a escolaridade a freqüência de um indivíduo à escola e sua permanência nessa instituição por um tempo suficiente para que ele domine duas habilidades básicas: ler e escrever. Quanto mais o indivíduo permanece na escola, mais se espera que ele domine bem as habilidades da linguagem.

Para fins de coerência com o limite temporal escolhido para essa pesquisa, quando o acesso à escola não era algo tão simples, procuro migrar dessa noção de escolaridade para a de educação em sentido mais amplo. A intenção é alcançar as pessoas que não foram à escola, mas que sabem ler e escrever, ou são capazes de desenvolver outras habilidades que a

integram com as pessoas de seu meio. Diante da realidade da sociedade brasileira, ainda hoje, início do século XXI, onde o acesso à escolarização formal é limitado, penso ser importante considerar essa modalidade de apropriação do saber. Nesse aspecto, compartilho com a interrogação:

[..]não seria importante que os historiadores da educação procurassem trabalhar com um conceito de educação mais amplo, que permitisse captar as diferentes estratégias desenvolvidas pelos grupos sociais para incorporarem suas crianças e adolescentes (acrescentamos: seus adultos) à vida moderna? (DEMARTINI, 2000, p.70).

Quanto a estado civil, tomo como significado inicial o apresentado no Novo

Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, que diz o seguinte: estado civil refere-se à

“situação jurídica de uma pessoa em relação à família ou à sociedade, considerando-se o nascimento, filiação, sexo, etc. (solteiro, casado, desquitado, viúvo, filho natural, etc.)” (HOLANDA, 1986, p. 714).

A segunda parte deste trabalho é onde me detenho mais nas categorias escolhidas tentando relacioná-las umas com as outras. Embora possa parecer que cada seção da segunda parte trabalhe mais com uma(s) categoria(s) do que com outra(s), se o leitor se limitar apenas ao título, na verdade não há esse limite tão definido. Por exemplo, quando trato da Escola Normal estou tratando também de trabalho, de mulher ideal, entre outras. A divisão por seções se deu muito mais por uma questão de organização para não deixar o texto muito longo e, conseqüentemente, cansativo, do que pela tentativa de ir vencendo um assunto e passando para outro. Outro fato que é possível ser constatado facilmente é que há uma categoria mais explorada do que outra. Isto se deu por dois motivos: ora porque a própria fonte assim determinava, ora por meus próprios limites teóricos.

No intuito de contribuir para a história da educação no Brasil, com ênfase na educação das mulheres, na década de 1930, busco explicitar os papéis atribuídos à mulher; identificar a

função social a ela destinada, de acordo com o seu grau de escolaridade; destacar a visão da sociedade sobre a formação da mulher em escola normal; identificar as leituras femininas e o modo como o tipo de leitura define a posição social dos indivíduos na sociedade da época.

Como se inscrevem esses seres na história? De que modo a educação formal ou informal contribuiu ou não para sua inserção na trama da história? Como a mulher é representada e o que essa representação pode nos informar sobre a educação e a atuação da mulher na década de 1930? Para responder a essas e outras perguntas, é que desenvolvo este trabalho de investigação.

Queremos a fusão dessas idealizações loucas. Somos criaturas medíocres, nem deuses, nem diabos. E não nos interessa, fora das obras eternas feitas por degenerados extraordinários, a representação de anomalias. Leitores comuns e perfeitamente equilibrados, buscamos na arte figuras vivas, imagens de sonho; tipos que se comportem como toda a gente, não nos mostrem ações e idéias que brigam com as nossas. (RAMOS, 1984b, p.257).

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