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Na dissertação O aspecto rítmico na tradução de cinco poemas de Ingeborg Bachmann busquei desenvolver uma reflexão tradutológica que tocasse certos pontos fundamentais: que partisse de uma breve consideração acerca da diferença entre prosa e poesia (I.2) e chegasse a uma proposta de trabalho tradutório propriamente dita (II.4), passando antes por considerações acerca dos metros lusófono (I.3.i) e germanófono (I.3.ii), algumas questões centrais da tradutologia (de I.4 a II.4) e uma apresentação da autora ao público brasileiro (III) – e que todo esse caminho fosse justificado, ou exemplificado, com cinco traduções que fossem sua prática (de IV.1 a IV.5).

Na primeira parte da dissertação procurei recorrer no capítulo I.2 às noções de poesia e prosa de autores tão diversos quanto Quintiliano, Flaucher, Massaud Moisés, Antonio Candido, Paulo Henriques Britto e os textos de base da Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, de modo a delimitar aquilo que se tomaria como pressuposto na definição de poesia nesta dissertação, a saber: a função verdadeiramente estrutural das células métricas na escrita de poesia. Dada uma (sempre parcial) definição de poesia, detive-me no modo como tal gênero textual se realizou estrutural e historicamente nos contextos lusófono e germanófono, que são aqueles que mais nos interessam. Apresentados os modos de funcionamento das duas poéticas, surge a necessidade de, apoiado na definição de poesia já apresentada, conferir ao tradutor certo método na tomada de decisões do traduzir – que é, como apontado por Jiří Levý e Werner Koller, um processo decisório. Em seguida foi apresentada aquela que talvez seja a mais visada linha teórica de tomada de decisões em tradução de poesia (ao menos no contexto universitário brasileiro): a transcriação de Haroldo de Campos. Apontei as diversas premissas que me são caras no pensamento teórico de Campos, mas – apoiado principalmente em Paulo Henriques Britto – tracei uma recusa clara a duas delas: à quebra da hierarquia original-tradução e a aquilo que chamo de imposição de horizontes haroldiana. Por fim, recuperei em algumas páginas as linhas centrais de minha proposta tradutória: o predomínio do aspecto formal do poema numa tradução de poesia, a manutenção da hierarquia original-tradução, o emprego de um trabalho poético

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consciente da função estruturante das células métricas (mesmo em português) e a atenção a todo o poema no processo tradutório, inclusive às últimas sílabas átonas.

Na segunda parte, já dadas as bases de minha proposta tradutória, escrevi uma brevíssima introdução à obra e ao projeto poetológico de Ingeborg Bachmann, passando em seguida à tradução propriamente dita dos cinco poemas escolhidos: “Die gestundete Zeit” (“O tempo postergado”), Alle Tage (“Todo dia”), “Anrufung des Großen Bären” (“Invocação da Ursa Maior”), “Erklär mir, Liebe” (“Me explica, Amor”) e “Was wahr ist” (“Verdade”).

Ao meu ver, um pesquisador que se arrisca a falar sobre teoria da tradução precisa ter em mente pelo menos duas coisas: que muito já foi dito sobre o assunto e também que esse muito nunca será o suficiente. É preciso despender tempo e atenção na leitura daquilo que já se disse sobre o traduzir – sobre a tradução de poesia, sobre a tradução de prosa, sobre a tradução de textos não literários – em cada grande época do pensamento tradutório desde pelo menos a Alta Idade Média, de preferência desde antes. No entanto, creio ser preciso também se dar certa liberdade no pensamento teórico, na aproximação de autores, na dessacralização das grandes figuras da teoria e na inventividade própria.

Esse último ponto, em especial, foi o que desencadeou aquilo que viria a se tornar esta dissertação: na tentativa de mostrar três ou quatro poetas germanófonos que admiro a amigos que não falam português, deparei-me com diversas traduções que apresentavam claro mérito nas escolhas tradutológicas do campo semântico, ou seja, apresentavam opções em português muito adequadas àquilo que se dizia num poema; no entanto, pareciam-me poemas mortos, cujas opções tradutórias só se atinham àquilo que se dizia

sem atentar a como aquilo se dizia54; parecia-me que lhes faltava algo estrutural e que eu

não sabia ainda nomear. Eram textos belíssimos, mas não passavam disso: belíssimos

textos em prosa com linhas quebradas na página55.

Essa primeira experiência basicamente organizou a estrutura da presente dissertação: não bastaria simplesmente apresentar traduções dos poemas, já que essas traduções partiriam de premissas absolutamente diversas, de premissas que apoiaram as traduções que não me agradavam. Era preciso, então, que eu primeiro aprendesse quais eram e alargasse as minhas premissas, para depois poder apresentá-las junto das

54 “Mas, Degas, não é com ideias que se fazem versos, é com palavras.” Atribuído a Stéphane Mallarmé

por Paul Valéry (VALÉRY, 1960).

55 O que pode também ter seu valor como prosa: vide o belíssimo romance O peso do pássaro morto

(Editora Nós, 2017) de Aline Bei, que exibe linhas quebradas durante toda a narrativa e continua sendo – segundo a própria autora – um romance.

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traduções. Não se trata, portanto, de uma proposta melhor ou mais correta para a tradução de poesia, mas simplesmente de uma proposta: que mais me atrai e que dá um melhor suporte aos meus objetivos tradutórios. Objetivos e premissas estruturais diversos geram propostas diversas. Como pesquisador que rechaça toda e qualquer noção essencialista e para o qual todo fenômeno cultural é necessariamente social, creio no fim e ao cabo que não há nem pode haver uma proposta melhor em essência: há propostas. Discorde-se de uma de minhas premissas, e já se tem a necessidade de fazer uma proposta outra.

Afinal, desde pelo menos Schleiermacher e Humboldt56, no século XIX, já se aponta o quão saudável e positiva aos leitores e ao mercado editoral é a existência de diversas traduções de um mesmo texto – feitas por tradutores contemporâneos, por tradutores através dos séculos e até por um mesmo tradutor no decorrer de sua vida: ganha o leitor, ganha o autor e ganha a poesia. Apresento, assim, mais uma.

56 “Além disso, aquela parte da nação que não pode ler os antigos por conta própria irá conhece-los melhor

por meio de várias tradições do que pelo recurso a uma única. São, pois, outras tantas imagens do mesmo espírito, cada qual reproduzindo aquilo que foi capaz de conceber e representar: mas o verdadeiro espírito repousa somente no texto original”. (HUMBOLDT, 2001, p. 117. Tradução de Susana Kampff Lages). Nota do autor: quase desnecessário repetir que não partilho da ideia de que haveria o “verdadeiro espírito” do texto. Vide capítulo I.4.

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