• Nenhum resultado encontrado

Reflexões iniciais: espaços formativos da contemporaneidade

A temática central deste texto é a educação e os espaços onde ela ocorre na contemporaneidade. O termo “educação”, embora amplo, indica invariavelmente práticas de formação humana. Eis alguns dos seus sentidos: instruir; produzir comportamentos, identidades e subjetividades; moldar; impor significados, visando o preparo para a vida individual e social. Tal preparo pode apontar para a adequação ou para a transformação.

Atualmente vivemos um momento histórico no qual a palavra educação está de tal maneira agregada à palavra escola, que é muito comum serem utilizadas como sinônimas, desconsiderando-se a amplitude de lugares onde acontece o ensino e/ou a aprendizagem. A escola não é o primeiro e nem o único lugar onde se educa. Percebendo a educação de maneira ampla e, por consequência, os espaços onde ela ocorre, surge uma questão básica, que aqui acho cômodo inserir e responder com as palavras de Alves (2000, p. 21):

Quando e onde se ensina e se aprende? A única resposta que posso dar a essa pergunta é: em todos os tempos e todos os espaços. Isto porque entendo o ser humano como sendo: social – se formando de modo gregário; histórico – suas relações com os iguais e diferentes estão sempre em mudança; e cultural – se organiza em torno de certas características que lhe dão identidade e realidade.

O fragmento de texto supracitado colabora com a compreensão da amplitude dos espaços e tempos educativos ao falar de um ser humano que é social, histórico e cultural, e faz lembrar que, independente do espaço escolar, as pessoas sempre se educaram ao longo do processo histórico. Outro intelectual importante nessa discussão é Saviani (1994), que numa perspectiva neomarxista, defende a indissociabilidade entre trabalho e educação e esclarece que educação não se articula somente com escola.

Para tanto, é suficiente lembrar que no modo de organização comunal os homens, a

partir do trabalho, produziam a sua existência e se educavam nesse fazer produtivo. “Lidando

com a terra, lidando com a natureza, se relacionado uns com os outros, os homens se educavam e educavam as novas gerações.” (SAVIANI, 1994, p. 152). Até então não havia escolas, mas seguramente acontecia educação nos mais variados espaços onde as pessoas se

relacionavam e produziam os seus modos de vida: nas cozinhas e quartos, nos becos e avenidas, na missa e na procissão, na classe, na cantina e no pátio, na prisão e na liberdade, no trabalho e nas greves, nas festas e nos funerais, no mar e no sertão, cedo na vida e tarde na vida; a todo tempo as pessoas estão se educando, seja no sentido de transformação ou de adaptação. Devido às características social, histórica e cultural do ser humano, ninguém, escapa da educação, pois “[...] é um fenômeno social e universal, sendo uma atividade humana necessária ao funcionamento de todas as sociedades [...]. Não há sociedade sem prática educativa e nem prática educativa sem sociedade.” (LIBÂNEO, 1994, p. 16-17).

Isso ocorre porque o ser humano – social, histórico e cultural – tem a possibilidade constante de transformar seu comportamento, a sua situação socioeconômica e o seu próximo. Ele educa e se educa, através das interações com o meio e com os outros (iguais e diferentes), inserido ou não em espaços específicos para tal fim. Essa é a característica de uma educação não-intencional, que se refere às influências do contexto social e das condições objetivas que incidem sobre os indivíduos.

Além da educação não-intencional há também a intencional. Essa modalidade, que delimita um pouco a amplitude do termo, embora ocorra, geralmente, em espaços sociais criados para tal fim, é anterior à sua criação e pressupõe uma ação pedagógica realizada, tendo em vista o alcance de objetivos previamente definidos.

A ação pedagógica depende menos de uma pedagogia, como área específica da ciência da educação e como atuação do pedagogo e mais de uma intencionalidade prévia a ser atingida junto aos educandos, independente da formação de quem age. O ato pedagógico pode ser realizado pela mãe analfabeta, pela costureira, pelo artesão, pelo agricultor, pelo pescador, pelo caçador, pelo traficante, pelo ator, pelo carcereiro, pelo publicitário, pelo cineasta, pelo cantor, pelo professor, entre outros. É a intencionalidade da ação educativa, ou o propósito de ensinar algo a alguém que caracteriza o ato pedagógico, não havendo assim, ato pedagógico na educação não-intencional.

Os objetivos da educação intencional são normalmente gerados a partir do ideal de ser humano válido em determinado tempo e lugar e/ou das necessidades de sobrevivência; e tais objetivos são definidores do currículo e da metodologia de tal ação educativa. Ao longo do percurso histórico da humanidade os processos educativos intencionais cambiaram seus objetivos de acordo com as transformações que a sociedade e os diferentes grupos humanos experimentam. Para exemplificar alguns modelos existentes e suas transições, na Antiguidade grega idealizou-se, através da educação, a formação do guerreiro; na Idade Média, a educação

ascética prezava pela formação do cristão temente a Deus preparado para “viver após a

morte”; com o advento da Modernidade, da Revolução Industrial e a emergência do sistema

capitalista, outros objetivos foram traçados como função da educação: formar o cidadão civilizado, o trabalhador domesticado, o ser racional não mais guiado pelas crenças.

Mas, voltemos o olhar à escola e aos espaços educativos contemporâneos, conforme objetivo inicialmente anunciado neste texto. A complexificação social, cultural e econômica da sociedade que ocorre especialmente a partir do advento da propriedade privada, marca o surgimento da escola como uma instituição social destinada exclusivamente à prática educativa intencional. Como esclarece Barguil (2006, p. 30): “O espaço escolar foi socialmente construído com atributos e qualidades próprios, destinada inicialmente, a permitir que sua clientela aprendesse o que no espaço tradicional – o mundo – não era possível.” Assim é que esse espaço adquire a função, por excelência, de formar as gerações mais novas para a vida em sociedade, preparando-as para atuarem nos sistemas produtivos, políticos, econômicos e culturais, adaptando-as, moldando-as e transformando-as de modo que evite ou minimize os distúrbios ou a fuga às regras pré-estabelecidas. A escola é pensada como o lugar da perpetuação das tradições e da propagação da “verdade”, um lugar permeado por relações de saber e poder que, de acordo com o supracitado autor, se refletem também na arquitetura do seu espaço.

Esse, porém, não era o único espaço socialmente destinado à educação intencional. A escola é somente um dos lugares imediatamente identificados com a formação humana deliberada. Historicamente, outras instâncias surgiram para complementar a função da escola. Entre elas é possível citar, além da família: quartéis, igrejas, sindicatos, clínicas, bibliotecas, fábricas e hospitais como espaços normativos de aprendizagem, e de formação. Quando as suas ações normatizadoras não são suficientes para minimizar a anormalidade ou evitar os distúrbios, ou as insubordinações às regras socialmente impostas por indivíduos ou grupos, apela-se para outros lugares mais dramáticos, que podem ser manicômios, reformatórios, prisões e, no extremo, o cemitério.

Tais espaços são devidamente marcados no imaginário coletivo com mensagens implícitas e explícitas, transmitidas desde a fachada externa até a mais recôndita área interior. A intencionalidade das suas práticas é previamente estabelecida e socialmente comungada, sendo observável inclusive na arquitetura. Afinal, como afirma Frago (1998, p. 110):

O espaço comunica, mostra a quem sabe ler, o emprego que o ser humano faz dele mesmo. Um emprego que varia em cada cultura; que é um produto

cultural específico, que diz respeito não só às relações interpessoais – distâncias, território pessoal, contatos, comunicação, conflito de poder – mas também a liturgia e ritos sociais, à simbologia das disposições dos objetos e dos corpos – localização e postura –, a sua hierarquia e relações.

Aqui é preciso retornar, então, ao intento deste texto, anunciado no título, que é refletir sobre os espaços de formação da contemporaneidade, tendo em vista práticas pedagógicas intencionais. Para atualizar a discussão até aqui empreendida se faz necessário considerar um importante processo histórico que teve início em 1456 – quando Gutenberg inventou a imprensa – e prosseguiu nos séculos seguintes com a invenção da fotografia, do cinema, do rádio e da televisão, sendo acelerado em patamares nunca antes visto na segunda metade do século XX e na entrada do século XXI, com o desenvolvimento tecnológico e das telecomunicações.

Esses fatos, coadunados com o modo capitalista de consumo, vêm proporcionando transformações culturais sem precedentes que são nomeadas como sociedade do conhecimento, cibercultura (LÈVY, 1999); era dos simulacros (BAUDRILLARD, 1995), pós- modernidade ou modernidade fluida, caracterizada como um tempo líquido, de ethos

cambiante (BAUMAN, 2004).

É característica marcante desse tempo o fato de, ao lado e dentro de instituições formativas tradicionais, historicamente elaboradas, tendo em vista uma identidade fixa e a formação de um sujeito centrado, baseado nos ideais da Iluminista (escola, igreja, fábricas, sindicatos e outros) presenciar a multiplicação de espaços midiáticos de aprendizagem com projetos educativos que ao mesmo tempo podem divergir e convergir com aqueles.

Graças ao desenvolvimento tecnológico utilizado em proveito da ampliação do consumo, os espaços formadores se ampliam e se materializam de diversas maneiras. Objetos como rádio, televisão, computadores, CDs, DVDs, pen drives, outdoors, webcams, câmeras fotográficas, telefones celulares, videogames, MP4, MP5, iPods, revistas, jornais e lugares como casas de shows, boates, bares, restaurantes, parques de diversão, salas de cinema, teatros, museus, bibliotecas, locadoras, livrarias, lan houses, agências de viagens, shoppings centers fornecem constantemente uma gama de conteúdos e se afirmam como espaços de formação contemporâneas, por excelência. Entre outras coisas, objetivam a formação do sujeito consumidor.

Os conteúdos que chegam até nós através daqueles objetos e espaços, como filmes, novelas, minisséries, peças publicitárias, músicas, shows, notícias jornalísticas, jogos

eletrônicos, brinquedos, desenhos animados, histórias em quadrinhos, entrevistas, documentários, sites, fotografias, exposições, panfletos, banners, desfiles de moda, os mais diversos acessórios trazendo as marcas da moda, videoclipes, programas de auditórios, eventos esportivos, reality shows, são mercadorias culturais, que se apresentam com tamanha diversidade, sustentando a ideologia da liberdade de escolha, própria do modo de pensamento liberal. Tem para todos os gostos, todos os estilos, todas as faixas etárias, todos quantos possuírem o mínimo poder aquisitivo estão, de algum modo, incluídos. Provocar sentimento de liberdade e renovação é uma das estratégias de tais ações pedagógicas.

Nessa lógica, o supermercado deixou de ser somente espaço onde adquirimos suprimentos para necessidades básicas, como o antigo ou desatualizado armazém. Nas lojas das grandes redes do ramo, cada detalhe é cuidadosamente projetado com base em estudos psicológicos realizados pela área de marketing, tendo em vista a satisfação do cliente e o aumento do consumo: fachada, cores internas, temperatura, disposição das mercadorias nas prateleiras, som ambiente e até o modo de atendimento dos funcionários são um grande texto audiovisual pedagogicamente montado para garantir a vontade de consumir e a venda. Tais estratégias se estendem a bares, restaurantes, lojas de shoppings e demais espaços adaptados à pedagogia da mídia.

Programas de televisão são produzidos minuciosamente, tendo em vista a satisfação do receptor e sua adesão, baseando-se no seu prazer e na sua identificação. Tomando o exemplo de uma ficção seriada endereçada à juventude, como a Malhação, realizei uma pesquisa (SOUZA, 2007) que constatou que todo o seu texto tem como objetivo a adesão da faixa etária entre 14 e 18 anos: enredo, personagens, trilha sonora, cenário, horário de apresentação, figurino e temáticas abordadas.

A prova de sua eficácia junto aos consumidores almejados é inconteste: mantém-se no ar nos finais de tarde desde 1995. Durante esse tempo, de maneira sutil e eficaz, esse programa vai colaborando decisivamente na constituição do habitus juvenil brasileiro. Além das roupas e acessórios da moda juvenil, vestidas nos personagens, a Malhação oferece, através do prazer da ficção seriada, aulas que atuam nos modos de se relacionar afetivamente, nos valores, nas atitudes e comportamentos junto à família e aos amigos. Assim, a televisão se afirma como um espaço pedagógico virtual, que conta com amplo alcance espacial e atua através de uma metodologia da repetição, da sedução e do prazer. Como explica Sabat (2003, p. 1):

Muito mais do que seduzir o/a consumidor/a, ou induzi-lo/a a consumir determinado produto, tais pedagogia e currículos culturais, entre outras coisas, produzem valores e saberes; regulam condutas e modos de ser; fabricam identidades e representações; constituem certas relações de poder.

Essa gama de conteúdos chega até nós com ares de anonimato, ignorando-se com muita frequência quem é o produtor ou, nos termos deste texto, quem é o agente pedagógico. Afinal, quem são os agentes pedagógicos que atuam através da vasta produção da mídia? Eles podem ser: o locutor da rádio comunitária, o editor do jornal ou revista de pequena circulação, o cinegrafista amador, ou o grupo de jovens que possui uma banda de rock com ensaios no quintal de casa. Todos são sujeitos que produzem e divulgam bens simbólicos através da mídia. Entretanto, Moreira (2007, p. 3) alerta para algo mais amplo, distante e objetivado: a atuação mercadológica de

[...] oligopólios midiáticos, que produzem, distribuem e organizam, em escala global, a maior parte da informação e das atividades culturais como música, cinema, filmes, shows, livros, revistas, bem como entretenimento, esportes, jogos, lazer, o mercado das artes e a indústria da fantasia infantil e juvenil. [...] As dez gigantes globais do setor são: Time-Warner, Disney, Bertelsmann, Viacom e News Corporation, Sony, TCI, Universal, Polygram e NBC.

No Brasil, alguns desses agentes são: organizações Globo, Grupo Abril, Grupo Silvio Santos, grupos Folha e Estado de São Paulo e Igreja Universal do Reino de Deus, do pastor Edir Macedo. Compreender a lógica de produção cultural desses e de tantos outros agentes, percebendo-os antes de tudo como empresas, que fazem da cultura o seu comércio, é algo fundamental para professores que desejam realizar uma contraposição pedagógica às suas intencionalidades em seu trabalho docente. Após essa discussão inicial serão tecidas considerações que elucidam o percurso teórico que se aproxima do conceito de currículo cultural ou pedagogia da mídia.