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Reflexões sobre a relação psicoterapêutica

CAPÍTULO II Corporeidade, esquema corporal e autoimagem: eixos para a discussão

2.1 Reflexões sobre a relação psicoterapêutica

Diante de tal proposta, devemos perguntar de que forma esta definição, proposta por Merleau-Ponty (2006a) pode oferecer à prática do (a) psicoterapeuta que, diante de si, vivencia relações com pessoas que convivem com dores diariamente.

As relações perpassam mudanças que podem remeter ao tom de voz e na execução de gestos e olhares por parte do terapeuta, o que pode desencadear mudanças fisiológicas no paciente, como a ocorrência de espasmos, choros, tremores, calafrios, suores. A fisionomia do (a) paciente pode assumir um aspecto mais ou menos rígido, sua respiração pode ser tornar mais ou menos profunda, na medida em que a psicoterapia acontece.

Ao mesmo tempo, o (a) psicoterapeuta e o (a) paciente ao construírem uma relação terapêutica, naturalmente rompem com ideais de cientificidade do paradigma moderno quando percebe que o desencadeamento de mudanças fisiológicas e fisionômicas estão intimamente conectadas a este processo de construção da relação, o que distancia

significativamente a consideração de uma postura neutra do (a) pesquisador (a) e terapeuta no contexto psicoterápico. Até por que estes conjuntos de movimentações ganham sentido no mundo vivido9 de ambos os construtores do cenário terapêutico, sendo perpassados por referenciais de espacialidade, temporalidade, materialidade, causalidade e relações com os outros (Ellenberger, 2004).

Dessa forma, a proposta do olhar médico revela as limitações epistemológicas da proposta científica moderna quando do estudo do corpo tendo como foco a dor crônica, a começar pelo método científico de estudo desta temática conforme ilustramos, citando os moldes de avaliação do especialista em dor. Aliado ao processo de dessubjetivação da pessoa que vive e convive com as dores, ilustrado pelo próprio manejo da investigação sintomatológica que pode acessar a vida íntima do paciente sem temer o desencadeamento subjetivo desta proposta, há as contradições inerentes à tentativa de objetivação do corpo como uma máquina biológica. Isto encontra-se não apenas pela presença irrefutável da cultura em sua constituição, como da subjetividade do (a) pesquisador (a) no processo de construção do conhecimento científico, pois a objetividade só pode vir de um sujeito, o que seria inacreditável para quem subjetivamente nega toda existência ao sujeito (Morin, 2012).

Nesses termos, a psicoterapia revela-se como um cenário de pesquisa. Tratar do tema da corporeidade como pesquisadores (as) implica a inclusão de nós mesmos (as) como corpos em ação. Ao observarmos a reação dos nossos pacientes, estabelecemos um contexto relacional cujos corpos interagem entre si, como uma dança em que o ritmo e a cadência fluem conforme a condução dos dançarinos que somos.

O processo psicoterapêutico pode evocar percepções conscientes, como imagens, sensações, emoções, ideias tanto no terapeuta quanto no paciente. No entanto, cabe ressaltar

9O conceito de mundo vivido refere-se à estrutura das relações significativas onde as pessoas existem e

que elas não operam sobre o corpo, elas são o corpo (Maturana & Varela, 1995; Merleau- Ponty, 2006, 2011). Na mesma proporção, estas percepções conscientes participam do processo de conhecer como conhecemos. Neste sentido, é inevitável a concordância com esses autores de que este processo também é um ato de questionar a nossa experiência de mundo.

Portanto, considero que diante de um processo de pesquisa não apenas é a subjetividade do (a) pesquisador que está implicada e o corpo enquanto construção subjetiva e social, mas o corpo em uma totalidade existencial. Maturana & Varela (1995) no livro “A árvore do conhecimento” ressalta que através da linguagem não apenas conseguimos dizer quem somos, pois nós somos nela, num contínuo existir linguístico e semântico que produzimos com os outros em um contínuo vir a ser no mundo linguístico. Apesar de reconhecer o papel da linguagem na nossa experiência de mundo e no processo de construção do conhecimento, percebo como desafio o nosso encontro, enquanto pesquisadores com aquilo que pode ser “sermos o corpo”.

Isto corresponde a um desafio epistemológico de estudo do corpo: a superação do pensamento dicotômico no processo de construção do conhecimento, no qual Merleau-Ponty (2011) ressalta:

Temos a experiência de um Eu, não no sentido de uma subjetividade absoluta, mas indivisivelmente desfeito e refeito pelo curso do tempo. A unidade do sujeito ou do objeto não é uma unidade real, mas uma unidade presuntiva no horizonte da experiência... Não devo em primeiro lugar definir os sentidos, mas retomar contato com a sensorialidade que vivo do interior. (p. 296).

A superação do pensamento dicotômico permeia esta indivisibilidade entre sujeito e objeto, desfeito e refeito ao longo do tempo justamente por ser uma unidade presuntiva no

horizonte da experiência, onde a relevância é dada primeiramente à sensorialidade, ao caráter pré-operante de nossa existência, a expressão desta superação “sendo um corpo”.

A relação não dicotômica entre os polos sujeito e objeto representam esta justa inclusão do (a) clínico (a) no processo psicoterápico, na medida em que a construção da relação terapêutica evidencia esta consideração do (a) paciente enquanto sujeito que participa ativamente da condução terapêutica, ao invés de ser um objeto de análise ou de aplicação de técnicas.

Por isso, considerar as trocas humanas inerentes ao contexto psicoterápico será um dos caminhos para esta superação. Além disso, a própria posição de sujeito evoca esta superação, o qual será considerado na seção seguinte como uma categoria importante para pensar a experiência da dor a partir destes dois eixos: autoimagem e esquema corporal.

Estes eixos serão refletidos tendo como autor principal os trabalhos de Merleau-Ponty (2006, 2011), apresentando como base a sua primeira tese intitulada “A Estrutura do Comportamento”. Considera-se também o desenvolvimento dado à categoria do sujeito da percepção em sua segunda tese intitulada “Fenomenologia da Percepção”. Portanto, havendo um recorte interpretativo das obras deste autor na consideração de suas contribuições para o entendimento da experiência da dor e do modo de condução psicoterapêutica a este público.

2.2 Contribuições de Merleau-Ponty para pensar a psicoterapia a pessoas com dores