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REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES CIVIL-MILITARES NO BRASIL RECENTE

No Brasil, a questão das relações civil-militares ocupou-se, fundamentalmente, do estudo da autonomia/dependência das Forças Armadas em relação à Sociedade e ao Estado. A questão fundamental e complementar da efetividade foi e, em grande medida, continua sendo uma questão estudada e definida pelos próprios militares.

Desse ponto de partida, formaram-se duas correntes principais de estudo sobre os militares nacionais: a concepção instrumental, tradicional, e a abordagem institucional- organizacional, mais recente.

Dentro da tradição instrumental, desenvolveram-se diversos trabalhos que podem ser enquadrados em três segmentos representativos69:

a. instrumentalidade oligárquica, em que os militares atuam em proveito das classes dominantes, sejam agrárias, econômicas ou comerciais, fazendo do militar seu agente repressor;

b. identificação de classes médias, em que os militares representariam as aspirações dos segmentos médios da sociedade, considerando a importância fundamental das características do recrutamento dos oficiais, particularmente; e

c. moderadora, que se fundamenta na idéia de que os militares vão atuar de acordo com as demandas predominantes da opinião pública.

Não sem motivo, buscava-se entender e traduzir a natureza do grupo social e da instituição que, pela força, dominava ou mantinha uma influência capital sobre Estado brasileiro, sendo ator destacado em todos os fatos políticos relevantes, ao longo da República. A partir do início da Dec de 1960, com mais motivo, estudava-se a natureza da ação militar como uma questão fundamental, inclusive, para entender a natureza de seu envolvimento

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político após 1964, caracterizado pela maneira considerada inédita em relação à forma de intervenção militar adotada até então, na história republicana brasileira.

Buscando uma nova abordagem da questão, no início da década de 70, surge um trabalho fundamental à análise da rationale militar em sua manifestação política: “Em busca de Identidade”, de Edmundo Campos Coelho, um autor fundamental na linha institucional- organizacional. As tendências intervencionistas das Forças Armadas, no Brasil, estão vinculadas, segundo Coelho70, ao que ele chamou de identidade difusa: na falta de oportunidades de desempenhar seus papéis tradicionais, no campo externo, o Exército, particularmente, dedicou-se a outras tarefas e identidades. Isso começou a mudar durante o regime militar (1964-1985), quando, em razão de uma formidável expansão da economia e da diversidade de interesses organizados, por um lado, e pela sensação de incompetência em suas tarefas prioritárias, profissionais, por outro, inviabilizou-se, gradualmente, a interferência direta dos militares na política. Para Coelho, razões corporativas marcaram tanto o desencadeamento do golpe em 1964, como a volta aos quartéis, em 1984.

O Brasil serviu, ainda, de objeto de estudo para trabalhos fundamentais ao entendimento das circunstancias políticas na América Latina, desenvolvidos pelo pesquisador norte-americano Alfred Stepan71.

Alfred Stepan sugeriu que a análise das relações civil-militares deveria ser, principalmente, função de duas variáveis: o grau e abrangência das prerrogativas militares e o grau e nível de contestação militar às ordens civis.

Stepan entende as prerrogativas militares como72:

70

COELHO, Edmundo C. Em Busca de Identidade: O Exército e a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2000

71

Repensando a los militares en política. Cono Sur: un análisis comparado. Planeta: Buenos Aires, 1988;. Os Militares: da Abertura à Nova República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984; Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.Os militares na política: mudanças de padrões na vida brasileira. São Paulo: Artenova, 1975.

72

Repensando a los militares en política. Cono Sur: un análisis comparado. Planeta: Buenos Aires, 1988; Pg 116 e seguintes

àqueles espaços sobre os quais, existindo ou não contestação, os militares, como instituição, pressupõem que adquiriram o direito ou privilégio, formal ou informal, de exercer um controle efetivo. Neste sentido, se consideram no direito de controlar sua organização interna, de desempenhar um papel nas áreas extramilitares dentro do aparelho de Estado, ou mesmo de estruturar as relações entre o Estado e a sociedade política ou civil.

Assim, seria possível verificar a situação das relações civil-militares na concorrência de dois eixos: o das prerrogativas militares e o do grau de contestação militar ao governo civil. Teríamos, graficamente, a conjunção desses dois vetores estabelecendo quatro quadrantes principais que, em maior ou menos medida, definiriam a situação de uma dada sociedade, num dado momento, quanto ao critério de qualidade das relações civil-militares.

Quadro 4 – Matriz de Stepan para relações civil-militares

alta Q4 (acomodação civil desigual)

Q3 (posição praticamente insustentável para líderes

políticos) Prerrogativas

militares

baixa Q1 (Controle civil entre os militares) Q2 (posição insustentável para líderes militares)

baixa alta

Contestação militar

Suas proposições serviram de base para o desenvolvimento do estudo das relações civil-militares no continente, procurando, a partir de evidências empíricas colhidas na conjuntura brasileira, formular um modelo analítico para as relações civil-militares naquelas sociedades ou similares, ajustando princípios do modelo huntingtoniano73.

São inúmeros os trabalhos posteriores que se baseiam nas premissas do modelo de Stepan74.Esse modelo, na conjuntura em que foi apresentado, mais do que meramente uma ferramenta de avaliação parece ter servido de base a um processo sistematizado das políticas desencadeadas em diversos países da América do Sul em seus processos de redemocratização.

73

HUNTINGTON (1999) Op cit.

74

A adaptação das premissas de Stepan para as condições brasileiras teve em Jorge Zaverucha seu mais divulgado implementador, em várias obras ao longo da década de 1990. SANTOS, Maria Helena de Castro em seu trabalho The brazilian military in post-democratic transition ( ver Revista Fuerzas Armadas y Sociedad, n. 3-4, jul/Dez 2004) nomeia, inclusive, o chamado modelo HUNTINGTON-STEPAN de relações civis militares.

Assim, no processo de “retorno aos quartéis” movidos na Argentina, Uruguai e, em menor grau, no Brasil e Chile, podem-se verificar ações diretas no sentido de agir sobre os pontos presentes nesses indicadores, buscando seu enquadramento nas áreas avaliadas como de prerrogativas militares baixas.

Intrínseco a esse processo de afirmação da supremacia civil no quadro pós- autoritário, como “procedimento”, está a exclusão gradual dos militares dos assuntos referentes à sociedade, para que estes passem a ocupar-se de assuntos internos e/ou institucionais75.

São, assim, inúmeros os trabalhos locais, posteriores, baseados nas proposições de Stepan. Essas proposições foram aplicadas, por exemplo, por Jorge Zaverucha, em inúmeros trabalhos76, sobre as condições apresentadas no processo de transição democrática e nos governos pós-autoritários, no Brasil, tendo como base os dois vetores de Stepan: o grau e abrangência das prerrogativas militares e o grau e nível de contestação militar às ordens civis. Para Zaverucha, ainda em 2000, ao término do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, a combinação que melhor se adaptaria à realidade brasileira seria a existência de baixa contestação militar e altas prerrogativas militares, situação que teria persistido desde a chamada redemocratização.

Considerou como prerrogativas preservadas pelos militares:

- Forças Armadas garantem os poderes constitucionais, a lei e a ordem;

- Potencial para os militares se tornarem uma força independente de execução durante intervenção interna;

- Militares controlam principais agências de inteligência, com parca fiscalização parlamentar;

- Polícia Militar sob parcial controle das Forças Armadas; - Bombeiros sob parcial controle das Forças Armadas;

75

Entre outros autores, esta perspectiva é trabalhada por Juan J. Linz e Alfred Stepan, em A Transição e Consolidação da Democracia: a Experiência do Sul da Europa e da América do Sul. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 89 e sgs. Apud Fuccille (2003)

76

ZAVERUCHA, Jorge. São obras do autor, alem de inúmeros artigos, os livros: Rumor de sabres : controle civil ou tutela militar. São Paulo : Ática, 1994; Democracia e Instituições Políticas Brasileirasno final do séc XX. Recife: Bargaço, 1998; Frágil Democracia: Collor, Itamar, FHC e os Militares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000;

- Alta possibilidade de civis serem julgados por tribunais militares, mesmo que cometam crimes comuns ou políticos;

- Baixa possibilidade de militares da ativa serem julgados por tribunais comuns; - Falta de rotina legislativa e de sessões detalhadas sobre assuntos de defesa

nacional;

- Ausência do Congresso na promoção de oficiais-generais;

- Forças Armadas são as principais responsáveis pela segurança do Presidente e Vice-Presidente da República;

- Presença militar em áreas de atividade econômica civil (indústria espacial, navegação, aviação etc.);

- Militares da ativa ou da reserva participam do gabinete governamental; - Inexistência do Ministério da Defesa;

- Forças Armadas podem vender propriedade militar sem prestar contas totalmente ao Tesouro;

- A política salarial do militar é similar a existente durante o regime autoritário; e - Militar tem o direito de prender civil ou militar sem mandado judicial e sem

flagrante delito.77

Em que pese o autor interpretar a questão do controle civil dos militares como um aspecto fundamental da democracia, o próprio autor desloca o eixo da discussão desde as relações civil-militares para a qualidade possível das novas democracias, em razão de aspectos variados, que fogem ao escopo desse trabalho. Essa situação se explicita quando, em 2006, Zaverucha declara:

É preciso distinguir governo de regime democrático. Regime é um conceito mais amplo. Envolve instituições que não são submetidas ao crivo eleitoral. Por exemplo, Judiciário, Ministério Público, Forças Armadas, polícia etc. Governo, por sua vez, está associado a eleições democráticas diretas.

Eleição é condição necessária, mas não suficiente para definir uma democracia como consolidada.

A Constituição de 1988 conservou a falta de uma das principais características do Estado moderno: a clara separação entre a força responsável pela guerra externa (Exército) e a Polícia Militar, encarregada da manutenção da ordem interna. Chegou-se ao ponto de apagar do texto constitucional a expressão "policial militar", sendo substituída por "militar estadual".

A diplomacia brasileira acaba de patrocinar um golpe no processo eleitoral haitiano; a ABIN está sendo militarizada; as polícias se encontram desacreditadas; a Defensoria Pública funciona pifiamente; o sistema prisional... etc. Lamentavelmente, o que está consolidada é a não consolidação da democracia brasileira.78

Fica claro em sua abordagem que a qualidade da democracia remete a questões culturais e políticas, nas quais o concurso dos militares, tal como o entendemos, passou a ter, na década de 90, uma importância bastante reduzida.

77

ZAVERUCHA, Jorge. Frágil Democracia: Collor, Itamar, FHC e os Militares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; pg 37

78

Ao longo de diversos exemplos e reflexões, o mesmo autor entende que a presença dos militares é fruto do medo da instabilidade política, ou ingovernabilidade, remetendo-nos à discussão da dialética entre liberalização e democratização79, evocada no período de transição

dos governos militares para os governos civis, em meados dos anos 80. “Prefere-se a estabilidade política ao aprofundamento da democracia”80.