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Capítulo II: Por uma sócio-antropologia do Direito: delimitando noções e definições teóricas

2.2 A construção da realidade social e o campo jurídico: o direito socialmente construído

2.2.2 Reflexões sobre o campo jurídico

Para Bourdieu (2004), dentro da ciência jurídica existem duas maneiras de se encarar o Direito: a doutrina tradicional, que é por ele classificada como uma “... ideologia profissional do corpo dos doutores...” (Bourdieu, 2004, p. 210), e uma espécie de doutrina alternativa, que se opõe à doutrina tradicional caminhando em uma direção inversa, visualizando o Direito como “... um reflexo directo das relações de forças existentes, em

que se exprimem as determinações econômicas e, em particular, o interesse dos dominantes, ou então, um instrumento de dominação...” (Bourdieu, 2004, p. 210). Bourdieu chama estas visões, respectivamente, de internalista e externalista, sendo que ambas pecam em sua análise do Direito na medida em que ignoraram “ ... a existência de um universo social, relativamente independente em relação às pressões externas...” (Bourdieu, 2004, p. 211). Assim, para o autor, essas visões ignoraram o fato de que o Direito se configura como um cenário de disputa que sofre influências de pressões diversas, tanto internas como externas, especialmente da realidade social como um campo de disputa. Entre essas pressões podem-se alocar as influências das disputas sociais, econômicas, políticas, regionais tanto internas como externas.

Dessa forma, Bourdieu evidencia que no interior dessa disputa “... se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência de violência simbólica legítima, cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física” (Bourdieu, 2004, p. 211). É assim que o autor introduz a noção de poder simbólico dentro da temática do Direito, possibilitando a utilização de diversas outras noções para análise do mesmo.

Dentre essas noções está o campo jurídico. Segundo Bourdieu, o funcionamento do campo jurídico seria responsável pela construção de uma prática e um discurso jurídico, ao passo que a lógica específica deste campo está duplamente determinada:

por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas (Bourdieu, 2004, p. 211).

Assim, mais uma vez Bourdieu chama a atenção para a influência que a estrutura social exerce na construção da realidade jurídica de uma maneira geral, mais especificamente a influência que as relações de força dentro do próprio campo exercem na estrutura e funcionamento do mesmo, evidenciando os conflitos de competência existentes dentro dele mesmo. O autor também demonstra como a lógica interna do campo jurídico acaba por delimitar o seu espaço de atuação, ou seja, “o universo das soluções propriamente jurídicas” (Bourdieu, 2004, p. 211).

o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social (Bourdieu, 2004, p. 212).

Esta formulação abre a possibilidade de se construir algumas reflexões. Uma delas refere-se ao fato de que mais uma vez o autor em pauta chama a atenção para como a sociedade é produto dela mesma, encontrando-se em um eterno processo de reconstrução. No caso do campo jurídico, Bourdieu observa que este é relativamente independente, ou seja, sofre influências externas e internas na constituição da sua estrutura organizacional, consequentemente, no produto que resulta deste campo. Assim, o ordenamento jurídico sofre influência não somente das disputas e conflitos sociais de maneira geral, mas também das disputas e conflitos dentro do próprio campo jurídico, na eterna e mutável “concorrência pelo monopólio de dizer o direito” (p. 212).

Nessa linha argumentativa, Bourdieu lança mão das noções de profanos e profissionais dentro do campo jurídico, explicando que um campo, para se manter, deve sempre gerar a ilusão de que é totalmente independente das relações de força que ele regulamenta, construindo barreiras simbólicas que impedem outros agentes de adentrarem seu espaço.

No caso do campo jurídico, esta ilusão de autonomia é gerada através de uma linguagem específica, denominada por Bourdieu de retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, sendo a expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e a própria chave de entrada para o mesmo. Assim, o capital específico do campo jurídico constitui-se nessa postura universalizante que seus agentes e suas práticas devem assumir. Nas palavras de Bourdieu

A elaboração de um corpo de regras e de procedimentos com pretensão universal é produto de uma divisão do trabalho que resulta da lógica espontânea da concorrência entre diferentes formas de competência ao mesmo tempo antagonistas e complementares que funcionam como outras tantas espécies de capital específico e que estão associadas a posições diferentes no campo (Bourdieu, 2004, p. 216-217, grifo meu).

Aqui vale ressaltar que esse antagonismo entre os agentes do campo jurídico, como explicitado no próprio texto, não exclui a complementariedade dos mesmos, terminando por servir de base de uma divisão do trabalho de dominação simbólica (Bourdieu, 2004, p. 219), que irá garantir a competência dos agentes no sentido de terem o monopólio da produção de capital jurídico, logo, terão o monopólio do acesso e da possibilidade de transformação desse campo. Para Bourdieu, é a competência que garante aos agentes jurídicos o poder de “... controlar o acesso ao campo jurídico, determinando os conflitos que merecem estar nele” (p. 233).

Talvez uma das principais mensagens passíveis de se apresentar como sendo o centro das reflexões de Bourdieu, seria a afirmativa de que o Direito constrói-se como uma espécie de campo, no qual existem disputas e conflitos de toda ordem (econômica, social, etc), tanto internamente (dentro do próprio campo) como externamente (advinda de outros campos e da realidade social de uma maneira mais geral).

Entre os fatores internos pode-se citar o capital social45 de seus agentes (Bourdieu 2004, p. 223), a influência do ordenamento hierárquico do próprio campo jurídico, a posição dentro da hierarquia que cada agente ocupa, a profissão em si que o agente exerce (advogado, jurista, juiz, etc) (Bourdieu, 2004, p. 217-221), qual a região dentro do cenário nacional que o agente reside (Bourdieu, 2004, p. 219), qual a tradição jurídica que o campo se filia e a posição de cada agente perante esta tradição (Bourdieu, 2004, p. 217-219), etc. Entre os fatores externos pode-se citar as pressões sociais, econômicas e políticas de maneira geral (Bourdieu, 2004, p.210-211), como por exemplo, problemas sociais46 que demandam uma posição do campo jurídico (Bourdieu, 2004, p. 213), agentes do campo político que demandam novas interpretações, etc.

Vale ainda ressaltar a reflexão que Bourdieu apresenta sobre a questão do monopólio do capital jurídico como forma de preservar e dar manutenção ao campo

45 Capital social como o conjunto de recursos efetivos ou potenciais ligados à detenção de uma rede mais ou

menos durável de relações, mais ou menos institucionalizadas, de interconhecimento e interreconhecimento. (Bourdieu, 1980).

46 No sentido colocado por Bourdieu (1989), pensando problema social como algo produzido em um “trabalho

coletivo de construção da realidade social e por meio desse trabalho; e foi preciso que houvesse reuniões, comissões, associações, liga de defesas, movimentos, manifestações, petições, requerimentos, deliberações, votos, tomadas de posição, projetos, programas, resoluções, etc. para que aquilo que era e poderia ter continuado a ser um problema privado, particular, singular, se tornasse num problema social, num problema público, de que se pode falar publicamente – pense- se no aborto ou na homossexualidade – ou mesmo num problema oficial, objeto de tomada de posições oficiais, e até mesmo de leis e decretos” (p.37)

jurídico. Nesse sentido, o autor demonstra que o monopólio desse capital constitui-se como uma ferramenta de manutenção desse campo, assim como uma barreira tanto para a troca de agentes dominantes dentro do campo na inserção de novos agentes. Este monopólio também permite que a ilusão de autonomia e independência que este campo passa se perpetue com mais eficácia na medida em que limita os seus detentores.

Com efeito, Bourdieu demonstra como o campo jurídico pode ser socialmente construído e como ele está submerso nas disputas e conflitos da realidade social e da própria realidade de seu campo específico. O autor também evidencia como esse campo acaba por exercer sua influencia em outros campos da realidade social, configurando-se como uma estrutura estruturante47.

Dentre estes campos da realidade social da qual o campo jurídico exerce influência encontra-se a ideia de região, que exerce igualmente influência na produção do campo jurídico. Nesse sentido, Bourdieu (1989) observa como a ideia de região, tal como outros componentes do mundo social, é construída socialmente. Nas palavras do autor (1989):

a realidade, neste caso, é social de parte a parte e as classificações mais naturais apoiam-se em características que nada tem de natural e que são, em grande parte, produto de uma imposição árbitrária, quer dizer, de um estado anterior da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima (p.115).

Consequentemente, a idéia de região e o campo jurídico irão influenciar-se, fazendo com que as delimitações de uma região sejam produtos de um ato jurídico “que produz a diferença cultural do mesmo modo que é produto desta” (Bourdieu, 1989, p. 115), fazendo com que se tenha em mente o fato de que

O regionalismo (ou o nacionalismo) é apenas um caso particular das lutas propriamente simbólicas em que os agentes estão envolvidos quer individualmente e em estado de dispersão, quer coletivamente e em estado de organização, e em que está em jogo a conservação ou a transformação das relações de forças simbólicas e das vantagens correlativas, tanto econômicas como simbólicas; ou, se se prefere, a conservação ou a transformação das leis de formação dos preços materiais ou simbólicos ligados às manifestações simbólicas (objetivas ou intencionais) da identidade social. Nesta luta pelos critérios de avaliação legítima, os agentes empenham interesses poderosos, vitais por vezes, na medida em que é o valor da pessoa enquanto reduzida socialmente a sua identidade social que está em jogo. (p. 124)

47 Para mais detalhes consultar o livro de Bourdieu “O poder Simbólico”, mais especificamente em seu primeiro

Em outras palavras, como a ideia de região se constitui em algo socialmente construído, esta mesma ideia estará submersa em disputas e conflitos sociais, fazendo com que o monopólio de delimitar as regiões e fronteiras48 demonstre que o que

está em jogo é o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de divisão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo (p. 113).

Assim, através da ideia de região, pode-se refletir acerca da construção do campo jurídico no sentido de que este será influenciado na medida em que considera a ordem hierárquica existente dentro da ideia de região e vice-versa. Desta forma, uma região que é nacionalmente identificada como pouco influente dentro da arena de disputa nacional, pouca influência terá no campo jurídico ou, nas palavras de Bourdieu, no “direito de dizer o direito”, assim como o agente social dentro do campo jurídico que estiver ocupando um lugar raso na ordem hierárquica, pouca influência terá no processo de ditar as fronteiras e identidades regionais. Dito isso, passa-se para uma breve discussão sobre o conceito de sensibilidade jurídica de Geertz (1997) e seu exercício de relativização da noção de Direito segundo os moldes da sociedade ocidental.