• Nenhum resultado encontrado

Reflexos da Migração para as Cidades e o Aprofundamento da Condição de

Todos os fatores que até aqui tratamos são uma tentativa de traçar o caminho econômico, social e político percorrido até os dias atuais, para compreendermos de maneira mais abrangente a constituição das classes marginalizadas e suas expressões.

Quando as transformações geradas pela Revolução Industrial chegaram ao Brasil com maior peso, gradativamente, foi-se agravando o empobrecimento da maioria das populações urbanas. Por isso, este período é importante para nosso estudo. É o momento histórico que, em decorrência de uma série de estratégias elaboradas pela classe dominante, desencadeou um processo que culminou nos anos 1960, com a passagem da população brasileira eminentemente rural para majoritariamente urbana. Durante este movimento muitos braços deixaram de ter ocupação fixa e passaram a ser sobrantes – sendo caracterizados como empecilhos

para o progresso – de acordo com a visão de parte da população integrada ao

sistema produtivo.

A quantidade de pessoas chegando às cidades não parava de aumentar. Os centros urbanos latino-americanos e brasileiros não tinham estrutura para acolher tamanha quantidade. Como resultado, com os espaços centrais ocupados pelas classes altas, os migrantes passam a se alojar na periferia da cidade, onde a terra é barata ou não tem dono. São diversas pessoas, que sem dinheiro para habitação digna, vivem em barracos, apertados e com estruturas físicas comprometidas devido

à qualidade do material12.

As questões relacionadas ao aumento das habitações precárias e da população urbana foram pautadas, em 1996, na IV Reunião Anual do Conselho Interamericano Econômico e Social, realizada no mês de março do mesmo ano. No relatório final desta reunião consta que:

12

Devido à falta de recursos financeiros para a compra de materiais em quantidade e qualidade ideais, muitos utilizam sobras de materiais encontrados nos lixos e materiais recicláveis.

Todos os principais centros urbanos da América Latina se viram ante a urgente necessidade de encarar a proliferação de favelas e habitações precárias. A população urbana cresce duas vezes mais rapidamente do que a população total, mas os habitantes das favelas crescem em ritmo ainda mais rápido. Os cálculos indicam que [esse ritmo] é cinco ou seis vezes superior. O fluxo das famílias para as zonas urbanas nesta década é de tal magnitude que a necessidade de novas unidades de habitação para abriga- las é da ordem de 400 mil. Ao mesmo tempo, a formação anual de famílias na população urbana se calcula em umas 600 mil, o que faz elevar as necessidades em torno de 1 milhão por ano (GUIMARÃES, 2008, p.245- 246).

Isto é, as favelas estão presentes no cenário brasileiro desde a constituição dos centros urbanos. A cidade já foi concebida com a divisão territorial por classe social. Periferias repletas de ex-escravos e pessoas de baixa renda, que com a crença de encontrar habitação e trabalho decentes, vem para a cidade. O Rio de Janeiro, por exemplo, um dos centros urbanos que desde a chegada da Família Real intensificou seu processo de urbanização, demonstra que a cidade recebe, mas não acolhe. Como podemos observar na tabela abaixo, a cada dia um número alarmante de pessoas migrava para o Rio de Janeiro.

Tabela 1 – Expansão dos núcleos de favelas no Rio de Janeiro (1950-1980)

Censos Favelas Domicílios População (hab.)

1950 58 --- 169.305

1960 147 69.690 335.063

1970 165 112.710 530.626

1980 192 143.869 628.170

Fonte: GUIMARÃES (2008, p. 247)

O censo de 1950 registra, na capital carioca, a quantidade de 58 favelas com 169.305 habitantes, já em 1980, 30 anos depois, o crescimento triplicou, contabilizando 192 favelas com 628.170 habitantes. Nesses dados estão implícitas as condições precárias, nas quais se constituiu o povo brasileiro nos centros urbanos. Milhares de famílias dividindo uma pequena quantidade de terra de um lado, e do outro, a classe latifundiária monopolizando cada vez mais o direito a cidade.

Desde a abolição da escravatura o latifúndio foi severamente centralizado nas mãos da classe latifundiária, como demonstra o primeiro censo agrícola realizado em 1920, abordado abaixo. Para Guimarães (2008) todos esses censos mostram que mais da metade das terras agricultáveis permaneceu sempre em mãos dos proprietários dos estabelecimentos agropecuários de dimensões iguais ou superiores a quinhentos hectares, considerando-se como esta a dimensão mínima para caracterizar o latifúndio dentro das condições brasileiras (GUIMARÃES, 2008).

No ano de 1920, o sistema latifundiário dominava 63,4% da área agrícola, em 1950, dominava 62,1%; em 1970, o percentual era de 50,8% e em 1975 o domínio

era de 54,0%13. A concentração de terra desencadeia a acumulação de alimento,

renda e postos de trabalho. A proliferação das favelas e habitações precárias é saldo de um crescimento baseado no desigual acesso à terra e na injusta distribuição de renda.

Tabela 2 – Distribuição de renda no Brasil.

1960 1970 1976 50% mais pobres 17,72 14,91 11,80 30% seguintes 27,92 22,85 21,20 15% seguintes 26,66 27,38 28,00 5% mais ricos 27,70 34,96 39,00 Total 100,00 100,00 100,00 Fonte: GUIMARÃES (2008, p.202)

A tabela mostra que 50% dos mais pobres, em 16 anos diminuíram sua participação na renda em quase 6%, enquanto os 5% mais ricos, de 1960 a 1972 aumentaram a concentração de renda em 11,30%. Em 1960, os 50% mais pobres eram representados por cerca de 9 milhões de pessoas remuneradas e nas proximidades dos anos 1980 esse número aumentou para 25 milhões. Isto é, em

13

Dados retirados do livro Classes Perigosas banditismo urbano e rural de Alberto Passos Guimarães, editora UFRJ, 2008, página 201.

Participação (%) População Remunerada

1960, 9 milhões podiam distribuir entre si 17% da renda nacional, no final dos anos

1970, 25 milhões podiam distribuir entre si, apenas 11% da renda nacional14.

Assim, podemos observar que a concentração de renda é uma consequência do latifúndio e da concentração industrial.

Segundo se vê, a concentração da renda, um evidente reflexo da concentração da propriedade agrária e da concentração industrial, não só significa uma acumulação crescente da produção da riqueza e da renda para uma minoria da população, como significa, ao mesmo tempo, um crescente empobrecimento da maioria da população: acumulação, de um lado, em benefício de uma minoria; empobrecimento, de outro lado, em prejuízo de uma imensa maioria. (GUIMARÃES, 2008, p. 202).

Todos estes fatores ocorreram simultânea e sucessivamente nas diferentes regiões brasileiras, liberando uma quantidade cada vez maior de mão-de-obra no campo e não as incorporando nos novos postos de trabalho na cidade ou nas novas funções agrárias. Enquanto tínhamos força de trabalho sendo dispensada, o setor industrial criava cada vez mais corpo, consolidando um novo setor produtivo. Esse regime gerou “dois movimentos, por um lado, um processo de marginalização da força de trabalho e de deterioração de seus meios de subsistência; e por outro, o crescimento de um setor modernizado na economia, estruturado em novas bases” (RIBEIRO, 1978, p.87).

Para o setor modernizado expandir, conforme os planos da classe alta, era necessário que as classes marginalizadas, enquanto produto do sistema desigual que se consolidava cada vez mais, não atrapalhassem (via greves, reivindicações de direitos, protestos e revoltas populares) seu desenvolvimento. Um exemplo disso foi que, nos países centrais, as classes dirigentes ao se depararem com a expansão da miséria, incentivaram, através de subsídios ofertados pelo poder público, a imigração em massa. Deslocaram um contingente significativo de pessoas para colonizar as áreas virgens e também para as guerras. Buscaram soluções que agisse no efeito e não na causa. Basicamente, repassaram o problema.

Os governantes brasileiros não agiram muito diferente. Ao não saberem lidar com os problemas provenientes do aumento exponencial de suas massas

14

Dados retirados do livro Classes Perigosas banditismo urbano e rural de Alberto Passos Guimarães, editora UFRJ, 2008, página 202.

marginalizadas, recorrem a estratégias em conjunto com os Estados Unidos, com a

finalidade de controlar o aumento dessa população indesejada15.

É neste momento que a contenção demográfica passa a ser tema nos países latino-americanos. Com recomendação e subsídios dos Estados Unidos, iniciaram-

se campanhas de contenção artificial da natalidade16. Essas campanhas tão

almejadas pelos interesses externos passaram a ser levadas tão ao pé da letra, que sua implementação passou a ser “uma condição indispensável para o recebimento de qualquer ajuda e até mesmo de um tratamento econômico menos espoliativo no intercâmbio internacional” (RIBEIRO, 1978, p.82).

Essas ações impactam com maior intensidade os segmentos sociais que tornam a olhos nus o desamparo do sistema perante suas vidas, em especial, as crianças, os idosos e as mulheres; negros, índios e caboclos. As mulheres pobres, principalmente negras e mestiças, por carregarem os marginalizados em potencial, são alvos de esterilização involuntária e vítimas de abortos clandestinos.

(...) não sabemos contar os números espantosos dessas brasileiras, morrendo ou se inutilizando no esforço de não ter mais filhos. Quem assume a culpa de suas mortes e do sofrimento de tantíssimas delas que, malcuidadas, levam, vida afora, suas genitálias rotas e estropiadas? Não há aqui um feio crime de conivência de quantos condenam o aborto à clandestinidade? [...] Pior ainda que esse genocídio, mil vezes pior para o destino de nosso povo, é o caso daquelas mulheres, milhões delas, induzidas a esterilizar-se em programas sinistros de contenção da natalidade. Está em curso, em nossa Pátria, todo um enorme e ricamente financiado programa internacional clandestino de controle familiar pela esterilização das mulheres pobres, sobretudo das pretas e mestiças. Seu êxito é tamanho que se avalia já, oficialmente, com números do IBGE, em 44% as mulheres brasileiras em idade fecunda já esterilizadas (RIBEIRO, 1995, p 35).

Na década de 1960, com o amadurecimento da indústria, foram lançadas novas tecnologias de controle da fecundidade, que possibilitavam a interferência no ciclo hormonal das mulheres via métodos contraceptivos hormonais. O que estava em evidência não era a saúde e o bem-estar da mulher, mas sim o controle da população que estava sendo formada e viria a definir a identidade racial do povo brasileiro.

15

Indesejada até certo ponto, pois o sistema necessita de um contingente de braços livres e sem ocupação fixa para que essa população, com receio de não ter outro meio de subsistência, se submeta as condições precárias de trabalho.

16Para Ribeiro (1978), os porta-vozes dos Estados Unidos “justificam esta política em termos de

sentimentos piedosos em face da ameaça de fome que fatalmente recairá sobre as camadas marginalizadas se elas continuarem a crescer em ritmo atual” (RIBEIRO, 1978, p.82). Como se a contenção demográfica fosse a única alternativa para a resolução deste problema.

O controle da natalidade, nada mais é do que um domínio sobre o direito à reprodução. A implementação dessas políticas exemplifica o grau de controle da vida privada do pobre pelas elites dirigentes, que prefere investir milhões a dar condições dignas à população. Como exemplo disso, Darcy Ribeiro cita um discurso de Lyndon Johnson, proferido às Nações Unidas, no qual o presidente dos Estados Unidos afirma: “cinco dólares gastos no controle da natalidade são mais rentáveis que cem dólares aplicados no crescimento econômico” (RIBEIRO, 1978, p.82).

Outro instrumento de controle social e demográfico são os genocídios da população jovem, principalmente negra, através da justificativa da guerra contra crime, que com o passar do tempo se tornou guerra contra a infância e a juventude

pobre por aparatos para-policiais17. Também há mortes de inocentes crianças que,

cotidianamente, seja pela via de doença ou da falta de recursos, morrem inúmeras18.

Além do mais, elas que são umas das primeiras a sentirem as consequências dos precários postos de trabalho no mercado industrializado. De acordo com Edmar Bacha (1976)

O declínio dos salários da mão-de-obra urbana menos qualificada foi acompanhado por uma deterioração das condições de vida dos pobres nos maiores centros urbanos brasileiros. As favelas foram removidas para longe dos locais de trabalho e as condições de saneamento e provisão de água potável pioraram consideravelmente. A desnutrição e os ataques de diarréia se agravaram em consequência, a mortalidade infantil que já era alta, aumentou continuadamente ao longo da década (BACHA, 1976, p.26).

Essas estratégicas mortes em massa foram e são, fundamentais para a implementação e manutenção do capitalismo. Desde o período pós-colombiano até os dias atuais a política econômica é genocida. As violações e execuções, como ferramentas de trabalho das elites governantes, em nenhum momento deixaram de existir, pelo contrário, assim como as indústrias, elas se modernizaram, tanto no sentido da indústria bélica, como também do setor ideológico reinante em nossos meios de comunicação e instituições educacionais.

17

São grupos que não pertencem à polícia, porém agem como tal. Uma espécie de polícia clandestina, não reconhecida formalmente pelo Estado.

18“Quantas crianças brasileiras morrem anualmente de fome, de inanição ou vitimadas por

enfermidades baratas, facilmente curáveis? Estatísticas estrangeiras, cautelosas, falam de meio milhão. Estatísticas nacionais, menos cautelosas, contam mais de oitocentas mil. Quantas serão essas crianças que poderiam viver, e morreram? Cada uma delas nasceu de uma mulher, foi amada, acariciada numa família, deu lugar a sonhos e planos, nos dias, nas horas, nas semanas, nos meses, nos breves anos de sua vida parca. Seguindo a tradição, muita mãe chorou resignada, achando que melhor fora que Deus levasse sua cria do que a deixar aqui nesse vale de lágrimas” (RIBEIRO, 1995, p.26).

As classes dirigentes, devido ao nível de interesse no capital, são incapazes de aumentar a incorporação das massas marginalizadas na produção moderna e de reduzir o elevado ritmo do crescimento demográfico, sem prejudicar seus interesses. Dessa maneira, empregam projetos ordenadores e fazem parecer que o fenômeno de superpopulação só é redutível mediante a execução. Por conseguinte, a postura do Governo e da Justiça consente com essa desproporcional guerra. Os pequenos empresários e a população insegura, fomenta a formação de combatentes, que cessam a vida de milhares de crianças e jovens julgados como perigosos.

Apesar disso, as massas marginalizadas crescem aceleradamente. A mecanização das atividades agrícolas e a incorporação das terras ao sistema produtivo moderno induzem a mudança da população rural para vilas e pequenas cidades localizadas ao redor do campo. Nas cidades se deparam com baixo nível de oferta de emprego e a dificuldade de se adequar ao padrão de consumo. Ali, encontram precárias condições de subsistência e se tornam dependentes de serviços ocasionais, que por vezes, o fazem em troca de um prato de comida. Os alimentos distribuídos gratuitamente por instituições filantrópicas ou governamentais e a merenda dada as crianças nas escolas públicas têm enorme relevância, visto que, por vezes, é única refeição com que contam. Elas parecem sobreviver por milagre, ninguém consegue explicar como sobrevivem com tão pouca renda. Como consequência experimentam altas taxas de mortalidade infantil e geral, e padecem de espantosas condições de fome crônica (RIBEIRO, 1978).

Essas massas, ao não serem incorporadas ao mercado de trabalho, utilizam de formas irregulares de ocupação para conseguir subsistir, através dos chamados “bicos” e práticas ilegais. Nos centros urbanos, é através de diversas modalidades que os marginalizados sobrevivem e estabelecem interação econômica com os integrados no sistema.

Na interação com os integrados na matriz do sistema as relações econômicas se estabelecem através do engajamento dos homens nos setores menos qualificados e pior pagos da força de trabalho como assalariados de pequenas indústrias arcaicas, de empresas artesanais e de oficinas de reparação, como operários da construção civil, vendedores ambulantes ou carregadores eventuais ou como biscateiros para qualquer serviço subalterno. As mulheres se engajam principalmente como serviçais domésticas, lavandeiras, costureiras pobres ou dedicando-se às formas mais baixas de prostituição. As crianças trabalham como pequenos engraxates, vendedores de jornais, de frutas ou de comidas e doces caseiros ou outros artigos de fácil colocação. Os velhos se ocupam também no microcomércio urbano como vendedores ambulantes, na coleta de garrafas ou de papel usado, na guarda de carros, na cata de lixo; na

mendicância ou engajando-se no escambo precaríssimo das próprias áreas marginais em que se vende e se troca toda a sorte de restos; e, ainda, plantando e criando galinhas, cabras e porcos ou fabricando pequenos objetos artesanais nos terrenos baldios onde se alojam (RIBEIRO, 1978, p.69).

As massas marginalizadas não são reservas de mão-de-obra. Não são desempregadas, porque não são empregáveis, elas não incorporam os “exércitos de reserva”, pois o sistema não tem perspectiva alguma de absorvê-las. Enquanto reinar a estrutura social vigente, elas estarão à margem do sistema de produção e por não conseguirem trocar sua força de trabalho por salário, encontram dificuldades de se reproduzirem. Para Ribeiro (1978)

A causa fundamental desta conscrição está na estreiteza do projeto das classes dominantes que regeram e sucessivamente modernizaram a ordenação sócio-econômica por via da incorporação histórica, renovando e consolidando a dependência e com ela o subdesenvolvimento porque isto correspondia a seus interesses classistas. Não é de admirar, pois, que esta mesma classe olhe hoje sobranceiramente para as massas marginalizadas, procurando culpá-las de seus fracassos (RIBEIRO, 1978, p.88).

Desta forma se constituiu e consolidou uma estrutura socioeconômica que exclui parcelas da população do sistema modernizado de produção e de consumo, esse movimento gera mais marginalizados do que integrados, mais subemprego e desemprego que condições estáveis de trabalho. O mesmo processo histórico é que produz tanto os contingentes integrados quanto os marginalizados (RIBEIRO, 1978). Na medida em que o sistema avança, ele propicia melhores condições de vida aos setores integrados e, consequentemente condena um maior número de pessoas a uma maior pauperização. Alargando o antagonismo, ao invés de reduzi-lo.

Documentos relacionados