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É manifesto o sucesso do conceito de reforma na literatura sobre administração pública das últimas décadas. De certo modo, no campo científico da administração pública, a popularidade do conceito de reforma administrativa deve muito ao modelo gestionário, nomeadamente o NPM e Reinventing Government, surgido nos anos 80 e 90, como já se analisou10. O conceito traduz, por um lado, a (velha) procura incessante de o Estado e a administração pública atingirem a “administrativíssima trindade”: legitimação política e democrática (sobretudo, no pós-crise do Estado social e na sociedade do conhecimento e

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Planearam-se os actos e processos preparatórios pertinentes da entrevista, desde a comunicação da entrevista ao estudo do perfil dos entrevistados.

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Tenta-se não cair nem no interpretativismo ou pragmatismo epistemológico, nem naquilo que chamaria de “computacionismo” da análise de conteúdo, pois este intermezzo, ante o pendor teórico- prático do trabalho, e na impraticabilidade temporal de se fazer ambas, entende-se que não prejudica o resultado final.

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Para Carvalho, o NPM provocou uma quase equiparação das políticas de reforma administrativa (políticas institucionais que visam promover mudanças deliberadas nas estruturas e processos das organizações do sector público) às políticas de gestão pública (2008: 15).

da tecnologia), responsabilização pública e cívica (pelos actos e omissões concitados com os fins – constitucionais - que lhe subjazem) e sustentabilidade das funções públicas, hoje, intimamente relacionadas com a qualidade progressiva da performance e produtividade da actividade e capacidade de atingir “resultados”, uma espécie de santo graal da “nova administração” pública. Qualquer processo ou acção governamental de mudanças, racionalização, modernização ou simplificação do sector público de vocação nacional se torna, com raras excepções e diversas nuances, uma reforma administrativa.

Por inerência, o mesmo tem acontecido no nível do discurso e da retórica política, ou seja, nas agendas políticas e governamentais (Carvalho, 2007). Por este caminho, parece que nada pode passar pela administração pública, que não passe também pela reforma administrativa. Como se aos programas políticos e governamentais, se confrontasse um cardápio de apenas duas opções políticas estratégicas: ou prevêem uma reforma ou mantêm a continuação da última reforma. A mudança das forças politizadas e a força das mudanças sociais e económicas assim o exigem também. E sempre que o sistema político se sente ameaçado, novas ideias e modelos de organização e gestão emergem das teorias reformistas (Peters, 1997: 266).

No último quarto do século XX, o instituto da reforma administrativa adquire uma nova semântica no discurso político e científico de diversas disciplinas, culminando num estatuto científico quase incontornável nos domínios das ciências e das políticas da governação e da administração. Propulsionado pelas respostas intelectuais e políticas às forças da crise do Estado-Providência (Mozzicafreddo, 2000; Rocha, 2001; Kettl, 2000; Madureira, 2004), provenientes sobretudo do desequilíbrio e insustentabilidade orçamentais e económicas dos Estados sociais, o conceito de reforma administrativa torna-se um instrumento político e jurídico simultaneamente simbólico, responsivo e modernizador da organização e actividade do sector público, com grande valor político, do ponto de vista da legitimidade e eficácia (Pollitt e Bouckaert, 2004: 6). As graves crises económicas, fiscais e orçamentais dos anos 70 justificam e propulsionam a tónica das mudanças político-administrativas, na qual se destaca o pertinente discurso da redução de custos nacionais e minimização do sector público que ainda hoje permanece na generalidade dos países ocidentais, apesar de algumas matizes temporais11 e externas (como as pressões demográficas, ecológicas e comunicacionais).

Nesta linha, as reformas administrativas popularizadas por diversos países ocidentais nos finais do século passado, nomeadamente os anglo-saxónicos e os norte-europeus, por

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Pollitt e Bouckaert (2004) consideram que a estratégia política dominante das reformas dos meados dos anos 90 centrava-se na performance, eficiência e qualidade do Estado e da administração pública.

necessidade real e doutrina conforme, como se assinala no primeiro capítulo, contribuem para a generalizada assimilação das mesmas na acção e nos marcos da governação, presidencial ou de primeiro-ministro, não obstante não poder fazer-se correspondência directa de causalidade entre os movimentos ou modelos teóricos da reforma administrativa e as agendas governamentais. Portugal não é excepção, havendo inclusive quem conteste a racionalidade técnica dos processos de formação de políticas públicas, como sustenta consistentemente Carvalho (2008a). Este tendencial afastamento da abordagem governamental ou empírica diante dos modelos de reforma, por múltiplos factores de ambiguidade e complexidade12, constitui per se um factor de dificuldade de harmonização dos métodos de identificação e caracterização de uma reforma para além da retórica política e jurídica. Num mundo novo de poderes redistribuídos, instruído de novos valores, embebido de conhecimento e de comunicação reticulados, comprometido com mutáveis tecnologias, promotoras de novas liberdades e sucessivos funerais (nomeadamente da distância e do fatalismo social), assim como a maior consciencialização dos (novos) direitos e deveres, tanto dos cidadãos, como dos demais actores sociais e políticos, pressionam ao contínuo aperfeiçoamento do modo de governação e de nova teorias ou modelos de administração ajustados à evolução, desafios e trajectórias da contemporaneidade.

Como tendências e trajectórias13 do contexto das novas políticas públicas, e numa abordagem de governance, a literatura aponta para os aspectos da qualidade de vida dos cidadãos e do “ambiente sistémico” das organizações e do sector público em geral, bem como ainda para o aparecimento de novos actores sociais, novas lideranças, diferentes expectativas na prestação e exigências de responsabilização e coordenação relativas ao serviço público e renovadas formas de legitimidade (Bovaird e Loffler, 2003: 8-12; Bresser- Pereira, 2004; Kettl, 2005; Lynn, 2006; Pollitt, 2000; Pollitt e Bouckaert, 2004; Rhodes, 1997). À medida que estas novas tendências ou trajectórias vão sendo atendidas pelo poder político, tanto assim mais claro fica o rasto das políticas públicas reformistas da administração, indispensável para a caracterização das reformas no nível dos princípios e instrumentos da gestão pública.

Do exposto, se depreende que as reformas administrativas podem ter vários fins, razões e contextos, espaciais e temporais, de realização, sob determinados valores, forças e princípios múltiplos e cruzados (como se verificará no terceiro capítulo). As reformas administrativas constituem um género de reforma ao dispor do poder político, com objecto,

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Para maior desenvolvimento, consultar Carvalho (2008). 13

Sobre a diferença entre tendência e trajectória veja-se Pollitt e Bouckaert (2004: 65-66). Em resumo, a trajectória não se esgota na tendência, pois esta corresponde somente a um dado padrão numa data predefinida; trajectória, segundo Pollitt e Bouckaert, é um padrão intencional, voluntário, dirigido a um determinado fim, num cenário contextualmente estratégico.

sujeitos, poderes e limites específicos, que acresce ao topoi da acção pública transformadora. Além disso, são utilizadas também outras palavras de conteúdo semelhante ao de reforma, cuja variação é condicionada pela tradição nacional (ou falta dela), influências intelectuais ou marcos de mudanças políticas assaz personalizados por efeito da liderança governamental (“reinvenção” ou “transformação” em versões anglo-saxónicas, “modernização” na continental europeia), sem prejuízo do generalizado uso de todas estas palavras (Pollitt e Bouckaert, 2004: 15-18).

Por definição, as reformas administrativas pretendem melhorar o serviço público prestado pelos diversos e distintos serviços e organismos do Estado, na perspectiva de quem a concebe e a ela adere. Um problema notório que se coloca é o que significa “melhorar”, no programa e na implementação deste. O alinhamento entre os contextos e as camadas das reformas administrativas, bem como as ideias e os interesses dos intervenientes, é deveras polissémico, quer na abordagem analítica, quer na política, quer ainda na operacional. Neste âmbito, a literatura procura mapear esta problemática através de modelos de “variáveis

dependentes” comuns da governação administrativa14. Parece consensual que os objectivos

perseguidos por cada reforma são assaz homogéneos (redução da despesa pública, desburocratização, modernização do funcionamento e interface dos serviços, regulação, execução e avaliação das políticas públicas defendidas, desempenho dos serviços e trabalhadores), a diferença está antes no sistema político e cultural, na estratégia e no universo multicontextual da afectação dos trabalhadores e cidadãos. Sejam problemas novos ou antigos, as teorias das reformas administrativas parecem não prejudicar a (largamente defendida) concepção simoniana de que os problemas nas reformas são cíclicos, sendo novos somente na exacta medida que são contra-ciclo, ou seja, a não realidade actual ou a realidade do dever-ser. Segundo esta concepção, crítica das teorias estruturalistas, o que varia são as soluções, os poderes dos actores e o sistema ou contexto ideológico, comportamental ou tecnológico (Peters, 1996:Cap.6). Como pergunta Peters, sustentando perspectivas diferenciadas e contingentes dos problemas e prospectivas da governação, “when and where is each reform’s perspective of the greatest utility and how can we choose in advance” (Peters, 1996: 125).

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