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enfrentamento da crise

3. Modos de apropriação dos recursos do mangue

3.5. O regime de livre acesso aos manguezais

Como já foi ressaltado na introdução deste trabalho, os recursos naturais de uso comum são caracterizados com base nos princípios da exclusão e da subtração (subtractability). O princípio da exclusão faz referência à dificuldades de se controlar o acesso aos recursos, ou de excluir usuários potenciais. Por sua vez, o princípio da subtração está relacionado ao problema do uso compartilhado (jointness problem), ou seja, cada usuário subtrai uma parte

xcviii daquilo que pertence a todos os demais. Da mesma forma, o uso seqüencial e acumulativo por parte dos usuários interfere na capacidade que o recurso tem de gerar benefícios.

Os recursos existentes nos manguezais estão incluídos nesta categoria. As características físicas do ecossistema e a tecnologia necessária para o extrativismo do caranguejo dificultam a exclusão de usuários potenciais pelo fato da área (18 mil hectares de florestas de mangues) estar incluída na Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba, que ocupa mais de 300 mil hectares. Além disso, a navegação é problemática nos labirintos internos às florestas de mangue, e os deslocamentos no interior dos manguezais também, devido ao emaranhado de galhos retorcidos, e ao solo lamacento. Some-se a isso a dominância de práticas extrativistas realizadas com petrechos rudimentares e, em sua maioria, de fabricação caseira e proibidos.

O problema do uso compartilhado passa a ser um problema na medida em que os usuários começam a perceber a diminuição da capacidade de renovação do recurso e de manutenção em prover os benefícios usuais. Os conflitos surgem com a responsabilização de atores pelos benefícios decrescentes do extrativismo. No caso da APA de Guaraqueçaba, os conflitos giram em torno da presença de extrativistas oriundos principalmente dos Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, e de outras localidades do Estado do Paraná; ao aumento do número extrativistas na região de Guaraqueçaba; ao adensamento de pessoas interessadas na captura de caranguejos no período conhecido como “andada” (por parte dos caranguejeiros); à utilização de tecnologias predatórias como a redinha, o lacinho e a foice (por parte dos não-caranguejeiros); e, finalmente, ao descumprimento da legislação nos períodos de defeso.

As regras instituídas pelas portarias do IBAMA e do IAP sobre o extrativismo do caranguejo não contribuem para a proteção do ecossistema, e tampouco para o controle do acesso e dos usos que são feitos dos recursos. Elas não levam em conta certos princípios básicos da atividade extrativista na área, distanciando-se assim da realidade cotidiana dos caranguejeiros e dos demais usuários. A principal causa está na falta de informações, tanto científicas como daquelas fornecidas pelos próprios usuários, no processo de elaboração das leis. A captura do caranguejo por meio do braceamento dificulta e torna pouco rentável esta

xcix atividade, uma vez que os caranguejeiros afirmam, e que já é reconhecido por parte dos reguladores, que as tocas nesta região são muito profundas. No caso do grupo dos reguladores, as informações obtidas por meio dos usuários dos recursos precisa ser complementada por estudos científicos.

“E aqui eles não têm a cultura do braço, de se pegar no braço, como tem na Bahia, no

Espírito Santo. Aqui não se pega talvez até... não tem estudo sobre isso que eu saiba, porque talvez aqui, não sei se por temperatura ou salinidade, mas talvez aqui o caranguejo afunde mais do que lê, por conta de temperatura lá...” (gerente do IBAMA).

Por outro lado, seria importante ressaltar que a legislação brasileira fundamenta-se numa representação distorcida desse ecossistema, entendido como um ambiente estrutural e funcionalmente homogêneo. Estudos produzidos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), por intermédio do Centro de Estudos do Mar (CEM), mostraram que, assim como em outras localidades, os manguezais da Baía de Paranaguá apresentam unidades bastante heterogêneas (Lana, 2003; Miranda; 2004). Os instrumentos jurídicos que incidem sobre o extrativismo nos manguezais da região não prevêem estratégias diferenciadas de uso face à heterogeneidade desses ambientes.

Outros instrumentos jurídicos impõem sérias restrições ao acesso e à utilização dos recursos ambientais numa área dotada de um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado do Paraná. Ali, as condições de reprodução material e social são historicamente dependentes de atividades como a pesca, a agricultura, o extrativismo vegetal, a pecuária e o extrativismo de recursos animais dos manguezais.

As características físicas dos recursos dos manguezais, a tecnologia disponível e necessária para o extrativismo do caranguejo, os arranjos institucionais desconectados do cotidiano dos usuários e as carências do sistema de gestão alimentam a persistência do condição de livre acesso na região. Isto não impede que outras formas de apropriação possam se impor na área da APA, a exemplo da apropriação comunitária (Miranda, 2004).

Como vimos, o regime conhecido como livre-acesso é definido pela “ausência de direitos de propriedade bem definidos. O acesso aos recursos não é regulado, sendo livre e aberto a

c qualquer pessoa” (Feeny et al., 2001: 20). Isto significa que os direitos de propriedade dos recursos podem estar definidos, bem como as regras que regulam o acesso e os usos, mas na medida em que esta definição não é compartilhada pela maioria dos atores envolvidos, as regras não são consideradas politicamente legítimas.

Some-se a isso o reconhecimento de que o perfil do sistema de gestão da APA continua a refletir a adoção de um viés preservacionista e autoritário, que tende a excluir a população local das tomadas de decisão. A existência de um aparato institucional excessivamente restritivo sob a tutela de órgãos públicos responsáveis pela gestão dos recursos de uso comum favorece a persistência do regime de livre-acesso.

Apesar desta situação de crise institucional na APA de Guaraqueçaba, a partir de 2001 foi criado um novo espaço de gestão que sinaliza mudanças importantes no cenário local. A criação do Conselho Deliberativo da APA de Guaraqueçaba (CONAPA) apresenta-se atualmente como uma alternativa promissora de enfrentamento da crise, na medida em que pela primeira vez a participação autêntica da população no sistema de gestão está sendo efetivada. No próximo capítulo, este tópico ocupa um lugar de destaque.