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Não há, na arte, nem passado nem futuro. A arte que não estiver no presente jamais será arte.

Pablo Picasso

Amparados pelo estudo benjaminiano, percebemos o quanto a alegoria apresenta um modo privilegiado de interpretação, momento a momento, como tentativa de restauração da continuidade em instantes heterogêneos e desconexos. Ela é a representação de cifras do passado esquecido, da história enquanto história dos sofrimentos do mundo, que se torna mais significativa nas etapas de sua decadência, ou enquanto ruína.

Por meio desta ferramenta interpretativa e em nome da curiosidade, encontramos vários sentimentos e olhares dentro da caixa de Pandora que é o Ensaio

sobre a Cegueira. Em meio à profusão dos sentimentos, da emoção, da observação e

do rigor, não necessariamente nesta ordem, fomos, assim como tantos outros, arrastados pela obra de arte: de peito aberto, com a curiosidade sobre o que encontraríamos lá dentro daquele baú.

Se bem que a escolha dessa obra não foi impulsionada pelo nobel de literatura, uma vez que a curiosidade surgiu antes do prêmio. Queríamos saber o que o livro tinha a dizer sobre a cegueira. Por que ensaiar sobre a cegueira? Que tipos de cegueira o leitor encontraria lá dentro? Seria possível uma identificação com o perfil de um dos cegos? Valia mesmo se deixar vagabundear dentro do enredo. Este ensaio é

quase um diário de bordo, violado para um público leitor que deseja não só olhar para dentro de si, mas para a humanidade.

Na busca de um EU, encontramos uma civilização com sua opulência aparente e realidade miserável oculta sob este nome “civilização” em plena atividade na “cadeia alimentar” capitalista – e pensar que estamos todos nela; na busca do civismo, encontramos a transgressão; na busca do respeito, encontramos o sentimento de culpa da mulher do médico ao simplesmente “invadir” – sem escolha – a privacidade de todos os personagens; na busca dos discursos, encontramos a ausência da palavra em alguns momentos.

Depois vieram todos os discursos de uma só vez e vimos com quantas vozes se faz um romance-ensaio com a estética saramagueana de ser. Encontramos o discurso personificado em cada cego, cada um à sua maneira, mostrando que existem as elipses, as fraturas, as impossibilidades de nomeação, a imprecisão.

Vimos, também, a pantomima da linguagem porque eram vários eus narrando para nós. O que nos faz pensar no quanto lemos atravessado. Lemos “por meio de”, lemos “através de”, lemos “atravessadamente”, mas lemos e essa experiência é única, por isso afirmamos que, para entrar no discurso labiríntico de Saramago, cada olho deverá se educar para ver o que lá existe, tendo o cuidado e a sensibilidade de não só “reparar” como, principalmente, ouvir e se deixar levar pela linguagem melodiosa.

Tudo o que conseguimos no período curto de dois anos foi dedilharmos algumas palavras, numa luta desigual contra o tempo, ao menos, registrada aqui. Foram as carnes que se fizeram verbo, sobressaltadas pelas angústias, após olhar para o que eram, foram e, quiçá, serão aqueles cegos cada vez que alguém decidir olhar

para eles e abrir um diário de bordo sobre a nau dos loucos. Porque, quando lemos, pensamos no que fomos, nos que somos e no que nos tornamos a cada dia.

Não sei onde vamos parar, sei somente que a nossa obrigação é pelo menos falar, escrever e fazer com que as pessoas tomem conhecimento das coisas que as aflige. O ensaísta, assim como o romancista, ou o poeta têm de expurgar os infortúnios abrigados dentro de si sobre si, sobre o outro, sobre o mundo.

E se escrever parece fácil, somos obrigados a desmistificar. O escritor é de carne e osso e experimenta a árdua materialidade de se fazer nascer idéias escritas sobre fenômenos observados, sentidos, demonstrando que a escritura é angustiante tanto quanto viver e refletir sobre si, sobre o outro e sobre o mundo – coisas igualmente reconhecidas pelo próprio Saramago.

Dar voz às discussões sobre melancolia, loucura, ordem, entre outros temas tão fecundos e não menos inquietantes é se arredar da loucura e do vôo da experimentação. Sim, loucamente, você e eu devaneamos com Saramago. Dormimos e sonhamos com a cegueira saramagueana, mas jamais poderemos fechar nossos olhos quando acordamos deste “sonho”, escrito sob a forma da experiência ensaística do pensamento sobre nossa própria essência que, sob as vestes da civilização camufla nossas inclinações à ira, à transgressão, aos oscilantes estados de humor e de estética. O estado de humor, um dia será silenciado, mas a obra de arte, jamais! É assim que o artista se eterniza.

Concluímos a leitura com a sensação de que o Ensaio sobre a Cegueira é um convite à reflexão sobre temas específicos que mantêm estreita relação com o comportamento humano, quando o indivíduo experimenta suas dores – sozinho e coletivamente.

A saga dos portadores do mal branco que nos é apresentada denuncia os modelos de comportamento apregoados por uma coletividade abstrata. Para isso não há uma lei que obrigue a humanidade a ser igual ou ver igual a todos, mas, ao negarmos a nossa identidade, estimulamos a criação de uma imagem de nós para os outros. Não passamos de uma imagem ideal a serviço de uma visão coletiva forjada. Contra isso, o romance é implacável, já que cada cego, embora, não tenha nome, apresenta um ethos de si, em nome da identidade, mesmo que essa identidade seja um cheiro ou uma voz.

Sendo assim, o resultado desse EU forjado desencadeia os horrores que vimos proporcionados pelos homens quando submetidos a uma situação de caos. Nesse momento, caem as máscaras que eles usam no dia-a-dia para se enquadrarem num padrão de normalidade. Além disso, a expiação de não se ter um mesmo olhar gera, nos personagens, depressões, sentimento de culpa, dúvidas. Não é tão simples o desapego dessas exigências sociais fictícias. Ter olhos é fazer pacto com os riscos de viver.

Finalmente, esperamos termos aberto as portas da percepção para um estudo sobre a vasta riqueza da obra de Saramago, provocando os leitores para que venham “passar seus olhos” por este ensaio com a vontade de sonhar novamente, mas desta vez, escrevendo à sua maneira.