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Regras e regulamentos específicos no mercado de cartões

2.3 A estrutura dos mercados de cartões de crédito e débito

2.3.3 Regras e regulamentos específicos no mercado de cartões

A existência de regras e regulamentos específicos definidos pelo proprietário do esquema ou pelo regulador tem por objetivo a construção de padrões que promovam as externalidades positivas e limitem as negativas, e possam ainda trazer benefícios para o conjunto dos usuários finais.

No Brasil, o mercado de cartões até então tem-se apoiado em quatro regras: não- sobrepreço; honor-all-cards em sua “versão fraca”; vínculo a instituição financeira (supervisionada pelo Banco Central); e uso de tarifa de intercâmbio do credenciador para o emissor definida unilateralmente pela bandeira.

A regra do não-sobrepreço é uma interpretação sobre o Código de Defesa do Consumidor que proíbe (e pune com multa) a diferenciação entre os preços de bens e serviços em função dos custos dos instrumentos de pagamento utilizados. Embora proibida, a prática do sobrepreço (no caso, para uso de cartões de crédito) é adotada em diversos setores da economia, sendo justificada pelos

comerciantes pela necessidade de compensar as perdas de margens oriundas das elevadas taxas de desconto e da demora no recebimento do pagamento por parte do credenciador (média de 30 dias no Brasil, contra média de 2 dias no exterior).

Reforçando a discussão apresentada no tópico anterior, sobre o grau de competição entre estabelecimentos e as implicações de regras como a do não- sobrepreço, Wright (2003) mostra que, caso os estabelecimentos sejam monopolistas, a possibilidade de sobrepreço diminui o bem-estar social, pois os estabelecimentos podem cobrar um sobrepreço maior sem sofrer redução na demanda, e uma consequência possível seria a sub-utilização de cartões, por conta do aumento excessivo no preço. Caso haja competição de oligopólio na forma de Bertrand, o resultado esperado é a especialização. Estabelecimentos que vendem bens e serviços a preços baixos aceitariam somente dinheiro e estabelecimentos que vendem bens e serviços a preços altos, somente cartão. Nessa configuração, o lucro dos participantes e o bem-estar social seriam independentes tanto da tarifa de intercâmbio quanto da regra de não-sobrepreço. A regra honor all cards, em sua “versão fraca”, é a exigência de aceitação de cartões pertencentes a um mesmo esquema de pagamentos, independentemente do banco emissor, da modalidade e do produto. Em sua “versão forte”, a regra obriga lojistas e prestadores de serviços que desejem ser credenciados para a aceitação de um determinado produto de uma bandeira a aceitarem todos os produtos desta, particularmente seus cartões de crédito e de débito, o que caracteriza venda casada (tying) entre mercados distintos. No Brasil, a regra é usada apenas na sua “versão fraca”.

Sobre a “versão forte” da regra honor all cards (ou seja, incluindo atrelamento entre as funções crédito e débito), Rochet e Tirole (2006) concluem que a presença ou ausência de tal regra pode repercutir de formas distintas sobre a tarifa de intercâmbio e o bem-estar social. Tomam-se como hipóteses iniciais a concorrência nas transações de débito e a substitubilidade entre as funções de crédito e débito, e depois flexibiliza-se essa segunda hipótese. O primeiro resultado é que a ausência da regra honor all cards faz com que a tarifa de intercâmbio dos cartões de débito tenda a ser inferior ao valor socialmente ótimo,

enquanto a tarifa de intercâmbio dos cartões de crédito tenda a ser igual ou maior que o valor socialmente ótimo (dependendo do poder de mercado de emissores e de credenciadores). Nesse sentido, a venda casada das duas funções seria uma maneira de se estruturar as tarifas de intercâmbio de modo a beneficiar o bem- estar social. No entanto, apenas flexibilizando-se a hipótese de substitubilidade entre as funções de crédito e débito, chega-se ao resultado de que a presença da regra honor all cards poderia levar a uma redução do bem-estar social.

A exigência de que o emissor e, em geral, o credenciador sejam instituições financeiras supervisionadas pelo Banco Central é comum entre proprietários de esquemas de cartões, como forma de gestão de risco. No Brasil, ainda está sendo formalizada a responsabilidade do BC sobre a fiscalização dos participantes no mercado de cartões.

Chama-se, ainda, net issuer acquirer a regra que limita a participação no credenciamento aos emissores da plataforma. Uma justificativa para essa regra é evitar que credenciadores selecionem apenas poucos estabelecimentos de alta rentabilidade, sem contribuir de fato para a expansão do sistema (prática conhecida como cherry picking).

Por fim, tem-se o uso de tarifa de intercâmbio, que pode ser acordada de forma multilateral, bilateral ou definida pelo proprietário do esquema. No Brasil, ela é paga pelo credenciador ao emissor e definida unilateralmente pelo proprietário do esquema (o que coloca as tarifas praticadas no Brasil no mesmo patamar das praticadas internacionalmente). As variáveis que refletem a diferenciação entre tarifas são segmento de mercado, número de parcelas, forma de captura e tipo de produto.

Quanto ao portador de cartão, ele pode ter cobrada anuidade, taxa de reposição do plástico e de uso de programa de recompensas, mas nenhuma dessas cobranças é comumente observada na prática. Ao contrário, é mais comum ao portador receber do emissor bônus em programas de recompensa.

Especificamente sobre o mercado de cartões de débito no Brasil, uma regulamentação importante definiu que, a partir de dezembro de 2007, o Banco

Central tornou obrigatória a emissão de cartões de débito gratuitos associados às contas correntes pelos bancos comerciais26.

Para finalizar a discussão teórica sobre mercado de dois lados em geral e mercado de cartões em particular, ressaltemos dois outros resultados relevantes da literatura.

O primeiro (Evans e Schmalensee, 2005b) diz que a estrutura e o tamanho de um mercado de dois lados dependem de cinco grupos de fatores: externalidades de rede; ocorrência de congestionamento; presença de economias de escala; possibilidade de diferenciação de produtos (tanto vertical quanto horizontal, favorecendo o multihoming); e possibilidade de participar em mais de uma rede ao mesmo tempo (multihoming).

O segundo (Katz, 2001) conclui que existem dois mecanismos capazes de internalizar a externalidade de rede existente no mercado de cartões de pagamento: a tarifa de intercâmbio e a possibilidade de sobrepreço. O problema da tarifa de intercâmbio é poder trazer distorções ao mercado de cartões, já que pode afetar as decisões de entrada e utilização por consumidores e estabelecimentos. A depender da estrutura do mercado, a tarifa de intercâmbio pode ser posta em nível que acarrete efeitos adversos sobre a eficiência econômica e o bem-estar social. Assim, a tarifa de intercâmbio seria um mecanismo promotor da internalização das externalidades de rede ao custo de possíveis ineficiências e perdas de bem-estar. Já a possibilidade do sobrepreço neutraliza possíveis efeitos negativos da tarifa de intercâmbio, permitindo a internalização das externalidades de rede.

A supressão da regra do não-sobrepreço permitiria que os estabelecimentos sinalizassem, através de seus preços, os custos de cada instrumento de pagamento, promovendo maior eficiência econômica. Além disso, aumentaria o consumo de consumidores que não possuem cartão, já que eles pagariam um preço menor, corrigiria a quantidade de transações realizadas com cartões em direção a um nível socialmente ótimo e aumentaria o número de estabelecimentos que aceitam cartões de pagamento.27

26 Resolução 3.518 do Conselho Monetário Nacional (art. 2º, inciso I, alínea a), dezembro de 2007. 27 Banco Central do Brasil; Secretaria de Acompanhamento Econômico; Secretaria de Direito

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