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4 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES DAS EXPERIÊNCIAS E

4.1 Experiências e sentimentos – relatos das mães envolvidas em práticas de abandono e

4.1.3 Regras e práticas, a ordem moral e o vivido – uma análise das experiências e

Nos relatos de Monique e Laura podemos observar os dois níveis de análise propostos por Sahlins, o nível da estrutura prescritiva e o nível da estrutura performativa. O nível da

estrutura prescritiva (regras) corresponde ao ideal de maternidade, formado por valores tidos

como inalienáveis. Enquanto que o nível da estrutura performativa (práticas) corresponde às estratégias e aos significados vividos pelas mulheres.

A partir da coleta e análise dos dados verificamos que existe um imperativo moral sobre a maternidade, como se a maternidade possuísse uma regra quase que absoluta que funciona como um valor. Esta regra enuncia a obrigatoriedade de ser uma boa mãe e quais os requisitos que as informantes acham necessários para serem mães, por exemplo, casar, ter boa relação com o marido, ter uma/um filha/o que tenha pai (não ser mãe solteira), negando no plano do discurso e da opinião a possibilidade de comportamentos e experiências contrárias as que são ditas. Isso acontece porque a supervalorização da maternidade desvaloriza outros componentes do ser mulher, o reconhecimento do ser mulher se dá por meio de ser mãe, o que é bem aceito quando o ser mãe está acompanhado do ser casada ou ter um companheiro.

Entretanto, os dados coletados sugerem, cada vez mais, a recorrência de comportamentos maternos destoantes do desejado. A mulher quando vivencia uma gravidez em “segredo”, como foi o caso de Monique, vemos que a idéia de assumir socialmente a gravidez pode ter a significação de delito ou pecado e pode levar à prática do abandono. Nesse sentido, a prática do abandono aparece como uma estratégia para velar a gravidez biológica. Esta noção também aparece quando fala: “eu fiz, eu mesma, tenho que

simplesmente arcar com minhas responsabilidades”. A idéia de assumir a criança nos remete

ao jogo de papéis e projetos familiares incutidos na representação da maternidade em que a mulher define sua identidade com a maternidade. Neste caso, o abandono e o infanticídio indicam o não tornar público, o não adotar uma construção de maternidade que foi desejada e idealizada por se perceberem como impossibilitadas a atingir este modelo.

Vemos que há uma dinâmica entre a regra (valores) e as estratégias (práticas). No primeiro nível da análise, a regra moral do assumir imprime uma noção de ontologia substancialistas que reconhece a criança como pessoa desde a concepção, porém o que percebemos no cotidiano são práticas que revelam que enquanto a gravidez não for assumida socialmente não há criança, pois não se dá importância as mudanças corporais da mulher76. Para que a mulher assuma a gravidez biológica, tornando-a social é necessário um conjunto de elementos tais como o pai da criança assumir, a família da mulher compartilhar o assumir, condições materiais, uma unidade doméstica estabelecida, etc. O desequilíbrio entre esses elementos pode acarretar a rejeição, a exemplo o caso de Monique, o que nos faz perceber que a idéia de assumir é relacional.

“o meu caso porque eu não tava tendo o apoio de mãe, mesmo no tempo que eu tava grávida dele eu não tava tendo amor de pai, nem de mãe, nem de irmão e nem do pai do meu filho, eu tava tendo só amor a si mesma. Tinha dia que eu chegava a entrar em desespero... ia pro bar e cachaça... e é assim no meu pensamento cachaça ia trazer algum... alguma coisa pra mim, só que não trazia, não trazia nenhum futuro pra mim... acabou acontecendo o que aconteceu, né...” (Monique).

O imperativo moral da maternidade designa que a mulher sempre tem que assumir a criança, entretanto, em alguns momentos os valores individuais podem se sobrepor a esta “obrigação”, caracterizando o segundo nível da análise: a estratégia. Desta forma, as duas mulheres entrevistadas e outras envolvidas nos casos divulgados77, não encontraram nenhum respaldo na sua rede de apoio (condições morais e econômicas), irá utilizar a prática do abandono ou infanticídio como meio de não assumir a maternidade.

Outra forma de estratégia é conceber o abandono e o infanticídio como forma de romper com os vínculos afetivos. Após o nascimento do bebê as mulheres, em sua maioria, estão expostas a experimentarem sentimentos contraditórios à imagem ideal materna, as mudanças nas relações interpessoais podem acarretar conflitos na identidade feminina devido às expectativas quanto ao papel social de mãe e mulher. O conflito entre o idealizado e o vivido pode acarretar sofrimentos profundos na mulher, podendo deixa-la exposta a desenvolver um comportamento depressivo, por exemplo, o caso de Laura.

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Pedro (2003) explicita que o corpo feminino é percebido como produtor de diversas coisas, não necessariamente um bebê, pois o útero pode produzir: bolas brancas, molas, bolas de sangue. Sendo possível inferir um tipo de representação de corpo que não permite o reconhecimento de práticas de aborto ou infanticídio.

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A ausência de uma rede de apoio estabelecida para compartilhar a chegada da criança também pode ser observada na fala de uma mãe ao ser indagada pelos motivos que a levaram a abandonar sua filha, no seguinte endereço: <http://www.youtube.com/watch?v=PcbDWB7smKo&feature=geosearch>

Laura não desejava mais manter o seu casamento, ao mesmo tempo em que pensava em se separar do marido, tinha vergonha de criar a filha sozinha, sem a presença do pai. A dificuldade, exposta por Monique e Laura, em enfrentar sentimentos complexos e tomar decisões que “romperiam” com a ordem moral fez com que as informantes encontrassem como única alternativa a prática de abandono ou infanticídio.

As análises realizadas apontam que a não “efetivação” do modelo afetivo/normativo da maternidade intensiva gerou contradições, conflitos e dilemas nas experiências destas duas mulheres. Este modelo pode ser evocado por nossa sociedade e reforçado diante da prática de abandono e infanticídio através do discurso normatizador e naturalizante das representações

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