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REGULAÇÃO PELO FINANCIAMENTO: ABORDAGENS DE HARVEY (1978)

As abordagens de Harvey (1978) e de O'Connor (1977) sobre regulação dos serviços públicos de infra-estrutura são de origem marxista. A justificativa para a regulação desses setores está associada às finalidades que eles cumprem no processo de reprodução econômica (acumulação de capital) e social (reprodução da força de trabalho) e na legitimidade do sistema capitalista.

Harvey parte das leis de acumulação da economia capitalista desenvolvidas por Marx nos volumes I, II e III de O Capital e nos Gundrisse. A racionalidade de intervenção do Estado (regulação pelo financiamento), em sua abordagem, surge a partir de uma análise específica da natureza dos investimentos que compõem tanto o "ambiente construído" (capital fixo e fundo de consumo) quanto as despesas

16Lowe ressalta a afirmativa de Trebing (1984, p.237, citado por LOWE, 1998, p.184) de que a efetividade das comissões americanas foi melhorada pela maior participação dos consumidores, mediante a criação dos conselhos de consumidores.

sociais (investimento em educação e saúde), que garantem a reprodução social da classe trabalhadora.

Para Marx, segundo Harvey (1978), o capital fixo requer uma análise especial em função das peculiaridades de seu modo de produção e de realização.

Os itens que compõem o capital fixo são mais usados como apoio do que como insumos diretos do processo de produção e, além disso, podem ser utilizados por um período de tempo relativamente grande. Harvey distingue os itens que compõem o capital fixo em capital fixo utilizado no processo de produção e capital fixo que funciona como uma estrutura física para a produção. Esses últimos ele denomina

"ambiente construído para a produção".

Do lado do consumo, o raciocínio é o mesmo. Um fundo de consumo é formado por mercadorias que funcionam mais como apoio do que como objeto direto de consumo. Há itens que estão diretamente ligados ao processo de consumo (por exemplo, fogões, máquinas de lavar) e outros que atuam como estrutura física para o consumo (casas, passeios). Esses últimos são denominados "ambiente construído para o consumo".

Por outro lado, há itens no "ambiente construído" que funcionam tanto para a produção como para o consumo (rede de transportes) e itens que podem ser transferidos de uma categoria para outra mediante mudança em seu uso. Além disso, o capital fixo presente no ambiente construído é imóvel no espaço: o valor incorporado nele não pode ser movido sem que ele seja destruído.

Os fluxos de capital que irão formar o fundo de consumo e os ativos fixos são denominados de "circuito secundário de capital". Segundo Harvey (1978), deve haver um superávit de capital e de trabalho em relação às necessidades correntes de produção e de consumo (circuito primário de capital), a fim de facilitar o movimento de capital para a formação de ativos de longo prazo, particularmente para os que compreendem o "ambiente construído". A tendência para a superacumulação na economia capitalista produz tais condições dentro do circuito primário.

Entretanto, como os investimentos no "ambiente construído" tendem a ser de longo prazo e estão abertos ao uso coletivo pelos capitalistas individuais, há dificuldade para estabelecer um preço para os mesmos, resultando em barreiras ao levantamento de recursos junto aos capitalistas individuais para financiá-los.

Em razão disso, se esses investimentos fossem de responsabilidade dos capitalistas individuais, as necessidades coletivas de produção dos capitalistas ficariam insatisfeitas:

os capitalistas individuais tenderiam a superacumular no circuito primário e a sub-investir no circuito secundário.

Assim, segundo Harvey, uma condição para que haja fluxo de capital para o circuito secundário é a existência de um mercado de capitais e de um Estado desejoso de financiar e garantir os projetos de longo prazo e de grande escala relacionados ao "ambiente construído".

Na hipótese de superacumulação, o fluxo de recursos do circuito primário para o secundário só pode ocorrer se as várias manifestações de superacumulação puderem ser transformadas em capital monetário que possa vir a ser movimentado livremente e sem obstrução para essas formas de investimento. Esse levantamento de recursos só pode ser completado se houver uma oferta de moeda e um sistema de crédito que crie "capital fictício" no avanço real da produção e do consumo. Isso se aplica tanto para o fundo de consumo como para o capital fixo. Para Harvey (1978), como a produção de moeda e de crédito é um processo relativamente autônomo, é necessário que existam instituições financeiras e do Estado controlando a produção e a oferta de moeda como um "nervo coletivo central que regula e media as relações entre os circuitos primário e secundário".

Em sua opinião, a natureza e a forma de atuação das instituições financeiras e do Estado e as políticas adotadas podem assumir um papel importante no controle e no levantamento de fluxos de capital para o circuito secundário do capital ou para certos setores específicos (transporte, habitação, serviços públicos). Por outro lado, uma alteração nestas estruturas de mediação pode afetar o volume e a direção do fluxo de capital.

As despesas sociais que garantem a reprodução social da classe trabalhadora estão incluídas no "circuito terciário de capital". Esse circuito compreende, primeiro, o investimento em ciência e tecnologia, e segundo, a ampliação das despesas sociais que se relacionam principalmente ao processo de reprodução da força de trabalho. Essas últimas compreendem investimentos dirigidos para a melhoria qualitativa da força de trabalho do ponto de vista do capital (investimento em educação e saúde, que intensificam a capacidade dos trabalhadores no processo de produção) e investimentos em cooptação, integração e repressão da força de trabalho por meio ideológicos, militares etc.

Para Harvey (1978), a despeito de quão desejáveis sejam esses investimentos, os capitalistas individuais normalmente acham difícil fazê-lo.

Entretanto, como esses investimentos são necessários para "moldar uma base social adequada para a acumulação", a alternativa passa a ser, então, constituir (através de uma agência do Estado) meios para canalizar investimentos para pesquisa e desenvolvimento e para a melhoria quantitativa e qualitativa da força de trabalho.

O'Connor (1977), por outro lado, justifica a provisão de serviços públicos por parte do Estado dada a "natureza contraditória" que este tem de exercer na sociedade capitalista com vistas a garantir a "acumulação" e a "legitimação" social do sistema. De um lado, um Estado capitalista que empregue abertamente sua força de coação para ajudar uma classe a acumular capital à custa de outras perde sua legitimidade e, portanto, abala a base de suas lealdades e apoios. De outro, se esse Estado ignorar a necessidade de auxiliar o processo de acumulação de capital, arrisca-se a secar a fonte de seu próprio poder, a capacidade de produção de excedentes econômicos e os impostos arrecadados desse excedente. Assim, segundo O'Connor, o Estado deve criar as condições para que haja a acumulação de capital e a "harmonia social" (O'CONNOR, 1977, p.19).

Devido a esse papel duplo que o Estado capitalista tem de exercer, as despesas públicas, segundo O'Connor, também terão um papel duplo correspondente a essas funções básicas: despesas em "capital social" (exigidas para garantir a

acumulação privada) e "despesas sociais" (exigidas para manter a "harmonia social", para cumprirem a função "legitimação" do Estado).

As despesas em "capital social" se subdividem em despesas de investimento social e de consumo social. As despesas de investimento social (capital físico e humano) promovem o aumento da produtividade da força de trabalho e da taxa de lucro. As despesas de consumo social rebaixam o custo de reprodução da força de trabalho e ampliam a taxa de lucro (seguro social). As despesas com capital físico compreendem a despesa com toda a infra-estrutura econômica17. As despesas com capital humano compreendem o ensino, os serviços administrativos e outros, em todos os níveis do sistema educativo e científico, e os serviços de P&D, dentro e fora da instituição educacional (O'CONNOR, 1977, p.108).

Já as "despesas sociais" são aquelas exigidas para manter a "harmonia social", para cumprir a função "legitimação" do Estado. Podem ser classificadas em dois subgrupos: bens e serviços consumidos coletivamente pela classe trabalhadora (por exemplo, estradas, colégios secundários e primários, e instalações recreativas, transportes de massa, certos cuidados às crianças, instalações médico-hospitalares) e seguro social contra a incerteza econômica (por exemplo, seguros de velhice, de desemprego, de saúde e de atendimento médico) (O'CONNOR, 1977, p.108 e 129).