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A América Latina como um todo é um continente oprimido e crente. O catolicismo penetrou no tecido de nossos povos e moldou, em boa parte, a identidade continental.

Leonardo Boff

2.1 - A América Latina como comunidade imaginada: a geografia do poder no discurso da teologia da libertação

No capítulo anterior observamos que o surgimento da teologia da libertação se dá no final dos anos 1960, por meio de uma elite intelectual-religiosa transnacionalizada que detém lugares estratégicos vantajosos do ponto de vista institucional, já que a maior parte dos teólogos da libertação católicos estava estreitamente ligada ao CELAM. Não se pode esquecer também o papel de fomentador exercido pelo próprio CELAM nas discussões da década de 1960 que levaram às formulações da teologia da libertação. Para além dessa ligação institucional e verticalista, apontamos também que esses intelectuais-religiosos desempenhavam papéis chave nas redes de instituições terceiro-mundistas que acampavam a ideia de militância leiga. Já analisamos como esse trânsito institucional e essa estratégica situação intermediária permitia aos teólogos da libertação fortalecer seu capital simbólico.

A presença destes teólogos nos postos chave do CELAM se estende até 1973 e nos permite colocar em questão até que ponto a teologia da libertação pode ser considerada um determinado projeto de poder vinculado ao CELAM, pois a teologia da libertação em si resulta do interesse institucional de que estes teólogos produzissem uma teologia latino-americana aggiornada capaz de legitimar o projeto político pastoral do CELAM para a Igreja Católica na América Latina. A Conferência de Medellín em 1968, considerado momento chave para a definição deste novo projeto político-pastoral da Igreja para a América Latina, foi justamente o momento pelo qual pressupostos chave da teologia da libertação são absorvidos no documento final do CELAM,

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evidenciando a força institucional destes teólogos naquela ocasião. Seus enunciados se tornaram relevantes porque ocupavam espaços privilegiados e se desejavam que fossem produzidos.

Esta relação simbiótica CELAM/teologia da libertação no contexto do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 está intimamente relacionada com a produção de um novo projeto de poder político-pastoral da Igreja Católica para a América Latina. Ora, o CELAM era uma estrutura institucional supranacional da Igreja Católica para dar coesão continental às igrejas nacionais a fim de buscar uma política pastoral homogênea em toda a América Latina; ou seja, se constituía numa instância de poder transnacional com força de atuação prática, com capacidade de traçar diretrizes a serem seguidas pelas igrejas nacionais buscando uma identificação continental entre elas. A teologia da libertação, por sua vez, surge de certa forma em consequência da necessidade desta instituição de uma legitimidade teórica supranacional, de uma coerência discursiva, da produção de uma identidade continental e religiosa para si.

1. Ocasión para que un grupo de teólogos sudamericanos (se incluye a México) se conozcan mejor e intercambien sus ideas. 2. Despertar através de este grupo en las diversas Facultades, Profesores de Teología, etc..., una actitud de interés activo, abriendo horizontes y definiendo asuntos de investigación, de interés

latinoamericano. La idea es que este encontro pudiera ser el punto de partida de

un trabajo de investigación teológica de la problemática de la Iglesia latinoamericana. 3 Hacer un proyecto de temario, personas a invitar e etc., de un probable curso de 20 o 30 días, en Julio de 1964, para profesores de teología latino-americanos, a cargo de tres o cuatro de los grandes maestros europeos. Elegir algunos temas – es la sugerencia de varios obispos del CELAM – de posibles cartas pastorales del episcopado latino-americano251

O documento acima, já citado no primeiro capítulo, permite notar a capacidade de mobilização do CELAM e seu esforço para integrar a Igreja Católica na América Latina. Desta ação política integradora prescinde sua existência como instituição criada nos anos 1950 para esta finalidade. Entretanto, o que também se observa é a preocupação do CELAM com a especificidade latinoamericana presente nas expressões: “interés latinoamericano”, “Iglesia

latinoamericana”, “profesores de teologia latinoamericanos”, “cartas pastorales del episcopado latinoamericano”. Para o CELAM, a América Latina era antes de tudo uma região específica,

com uma identidade própria, com situações sociais, políticas, culturais e também religiosas específicas. Sua própria existência e organização enquanto instituição depende deste axioma

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irrevogável da América Latina como espaço geográfico, histórico e cultural, mas acima de tudo simbólico.

É a partir deste a priori de uma especificidade latinoamericana que o CELAM estimulou a produção de uma teologia que fosse capaz de responder a essa especificidade. O CELAM fomentou uma teologia latinoamericana, voltada para os dilemas da América Latina. Colocou como condicionante na produção de um saber teológico o peso simbólico deste espaço

imaginário que estruturava e delimitava a amplitude de seu próprio poder. Assim, é justamente a

partir dessa geografia imaginária comum, da ideia de uma América Latina – base para a estrutura de poder do CELAM e condicionante de uma nova teologia – que se dá a articulação do discurso de saber/poder da teologia da libertação e sua instrumentalização pelo CELAM.

Portanto, é possível considerarmos a teologia da libertação como a teologia oficial do projeto político pastoral do CELAM para a América Latina no contexto do final dos anos 1960 e início dos anos 1970. O esforço de produção dos teólogos estava vinculado a uma identidade latinoamericana que determinava as condições da reflexão teológica. Não bastava estabelecer uma teologia nova, era necessária que ela fosse latinoamericana. No entanto, que América Latina é essa a que se referem os intelectuais religiosos da teologia da libertação? Ela possui um significado religioso?252

Na teologia da libertação, América Latina é pensada antes de tudo como uma grande

comunidade imaginada253, capaz de ser uma fonte de identidade cultural e condição necessária para os projetos político-pastorais da teologia do CELAM. O argumento considerado é que qualquer identidade (como de membro de uma sociedade, grupo, classe, gênero, etnia, nação...) não é uma coisa com a qual o humano nasce, mas algo formado e transformado dentro de e em relação à representação254.

252

Acerca do objeto religião, o historiador italiano Nicola Gasbarro considera ser necessário dar primazia a todo o arcabouço simbólico da fé-sistema. “No plano metodológico, porém, tronam-se necessárias duas inversões: de uma

lado, a conexão – ainda ligada à ortodoxia da fé dos teólogos a à metafísica dos filósofos – entre universalidade, comparação e história: de outro lado, a prioridade simbólica da fé-sistema de crenças sobre a prática-sistema ritual das regras e das relações sociais” GASBARRO, Nicola. “Missões: a civilização cristã em ações”. In MONTERO,

Paula (org). Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo, Globo, 2006.

253Comunidade imaginada nos termos propostos por Benedict Anderson em Imagined Communities (1983).

254“Segue-se que uma nação não é somente uma identidade política, mas algo que produz significados – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos legais de uma nação; elas participam da ideia da nação como a representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isto que explica o seu „poder de gerar um senso de identidade e fidelidade‟(Scwarcs, 1986, p.106)” HALL, Stuart. A Questão da Identidade Cultural. p. 38.

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No caso específico, a identidade se refere a um determinado espaço geográfico. Uma região como a América Latina não se constitui como algo natural, pelo contrário, trata-se de um espaço efetivamente construído e diferenciado, uma criação histórica com imensa carga simbólica, imaginária, uma invenção. Consideramos esse termo como análogo à metahistória proposta por Hayden White255. O sentido que White deu à metahistória é o de um estudo referente à história enquanto historiografia; por exemplo, o estudo da linguagem, ou linguagens, da historiografia. O termo surgiu como uma crítica pósmoderna à historiografia. Consideramos metageografia, por sua vez, as discursividades geográficas, a produção de concepções do espaço mundial.

Uma obra importante para nós, neste contexto, é The myth of continents: a critique of

metageography de Martin W. Lewis e Kären E. Wigen256. Segundo os autores, metageografia é “o imaginário de estruturas espaciais mediante o qual as pessoas constroem seu conhecimento

do mundo: as estruturas, os sistemas aplicados muitas vezes inconscientes que organizam os estudos de história, sociologia, antropologia, economia, ciência política, ou, ainda mais, história natural”257.

Em outras palavras, consideramos metageográficas as estruturas, os padrões ou os modelos do espaço mundial que pretendem facilitar o entendimento deste espaço, mas que em si mesmos não são absolutos ou universalmente válidos, e podem ser cientificamente questionáveis.

Esses modelos não necessariamente estão desenvolvidos por geógrafos, mas podem ser elaborados por qualquer entidade, pessoa ou instituição. Lewis e Wigen mencionam como exemplos de concepções metageográficas, os continentes, o Estado-nação, a divisão Leste-Oeste e a divisão Norte-Sul do mundo258, conceitos que, segundo eles, devem ser examinados a fundo.

Lewis e Wigen polarizam sobre essas ideias geográficas hipostasiadas do senso comum. O que é um continente? Existem estados-nações? A divisão Norte-Sul não é uma simples construção ideológica, tanto como a divisão Leste-Oeste? A forma de nosso planeta e a complexidade na sua superfície não proíbe simplificações tão grosseiras?

255 WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo, USP, 1995. 256

LEWIS, Martin W. & WIGEN, Kären E. The myth of continents: a critique of metageography. Berkeley, University of California, 1997.

257Em inglês: “the set of spatial structures through which people order their knowledge of the world: the often unconscious frameworks that organize studies of history, sociology, anthropology, economics, political science, or even natural history.”LEWIS LEWIS, Martin W. & WIGEN, Kären E. The myth of continents: a critique of metageography: p. ix)

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Mas os autores reconhecem ser impossível estudar a humanidade sem se servir de

metageografias259. Observa-se que:

não existem, propriamente, concepções erradas de espaço (...) pois (...) elas são coerentes com o que se quer ver sobre o mundo. Se existe algo de “errado”, esse limite está sim na qualidade da compreensão que temos do mundo. Visões ahistóricas, carregadas de conteúdos ideológicos, situações desse tipo, cada uma delas é sustentada com uma perspectiva equivalente de espaço... Uma situação perfeita para ilustrarmos o que por último aqui afirmamos, é o caso da geopolítica, nas suas formulações clássicas de “destino manifesto” e coisas dessa natureza260

.

Ressaltamos que essa problemática foi estudada implicitamente por vários autores, como: Benedict Anderson261, para quem a nação tem, de fato, um caráter metageográfico; Walter Mignolo262, o qual desenvolveu pesquisas em torno da construção da América Latina; e Edward Said263 que escreveu sobre o Oriente considerado como unidade imaginada.

O conceito de comunidade imaginada, proposto por Benedict Anderson é um útil instrumental para a reflexão acerca da América Latina, essa entidade simbólica supranacional, base da organização institucional da Igreja (CELAM) e centro legitimador das reflexões da teologia da libertação. Segundo Stuart Hall:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (...) As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são constadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson, a identidade nacional é uma “comunidade imaginada”264.

259 Idem, p.15

260MARTINS, Élvio Rodrigues (2007): “Geografia e Ontologia: o fundamento geográfico do ser”, GEOUSP, São

Paulo, Nº 21, pp. 33 – 51: http://www.geografia.fflch.usp.br/publicacoes/Geousp/Geousp21/Artigo_Elvio.pdf

[Acesso: 15 de julho de 2008.] p.37.

261ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexão sobre as origens e difusão do nacionalismo. São

Paulo, Companhia da Letras, 2008.

262

MIGNOLO, Walter. The Idea of Latin America. Oxford, Blackwell Publishing, UK, 2007.

263 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. 264 HALL, Stuart. A Questão da Identidade Cultural. p. 51

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Para Benedict Anderson, por exemplo, as diferenças entre as nações residem nas formas diferentes pelas quais elas são imaginadas. Entretanto, a comunidade imaginada é produzida em que momento e de que forma? “Que estratégias representacionais são acionadas para construir

nosso senso comum sobre o pertencimento ou sobre a identidade nacional?”265

Segundo Patrick J. Geary há uma tripla gradação no processo de construção dessas comunidades imaginadas, no qual os intelectuais desempenham papel fundamental na gênese das representações simbólicas fundantes delas:

(...) pressupõe três estágios no processo de criação dessas comunidades imaginadas. Em primeiro lugar, ela inclui o estudo da língua, da cultura e da história de um povo subjugado, empreendido por um pequeno grupo de intelectuais “alertas”. Em segundo, transmissão das ideias dos acadêmicos por um grupo de “patriotas”, que as disseminam por toda a sociedade. Por fim, o estágio no qual o movimento nacional atinge seu apogeu266.

De acordo com Stuart Hall, as culturas nacionais constroem identidades ao produzirem significados sobre a nação com a qual se busca identificar; porém, esses significados estão contidos nas histórias que são contadas sobre ela, memórias que conectam seu presente com seu passado, e imagens que são construídas a propósito delas267.

Amparado nas reflexões de Homi Bhaba de que como as narrativas, as nações perdem suas origens nos mitos do tempo, Hall seleciona cinco elementos como recorrentes no processo de estruturação da narrativa da cultura nacional: 1) narrativa da nação – conjunto de histórias, imagens, imagens paisagens, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que sustentam, ou representam, as experiências, as tristezas compartilhadas, os triunfos e desastres que dão sentido à nação; 2) ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na atemporalidade – apresenta a identidade comunitária como primordial, essencial; 3) a invenção da tradição – conjunto de práticas de natureza simbólica ou ritual que buscam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, que automaticamente implica na continuidade de um passado histórico adequado; 4) mito fundacional268 – uma história que coloca na origem da

265

HALL, Stuart. A Questão da Identidade Cultural. p. 51

266 GEARY, Patrick J. O Mito das Nações: a inveção do nacionalismo. São Paulo, Conrad Editora do Brasil, 2005,

p.30.

267 HALL, Stuart. A Questão da Identidade Cultural. p. 40.

268“Os mitos de origem também ajudam as populações desprivilegiadas a „conceberem e expressarem seus ressentimentos e contentamentos em termos inteligíveis‟(HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983, p.01). Eles fornecem uma história alternativa ou uma contranarrativa,

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comunidade imaginada as pessoas e suas características identitárias como sendo algo antigo, de longa data; 5) o povo ou folk puro, original – contudo, na narrativa da história da comunidade imaginada, esse povo original raramente permanece no poder ou o exerce269.

O discurso da cultura nacional não é assim tão moderno quanto aparenta ser. Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção a modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele “tempo perdido”, quando a “nação era grande”; são tentadas a restaurar identidades passadas. Este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional. Mas frequentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar as “pessoas” para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os “outros” que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para frente270.

O agenciamento do passado para a construção de uma memória é fundamental no processo de construção da identidade de uma comunidade imaginada. Ao ampliar a noção de comunidade imaginada para pensar a América Latina, as estratégias de representação desenvolvidas para construir uma identidade comunitária que dê coesão e homogeneidade à nação, são pensadas neste trabalho como reutilizadas em termos continentais. Neste processo, a memória exerce papel crucial de legitimação discursiva e produção de uma identidade que se produz no presente a fim de atender a algum projeto de poder.

A teologia da libertação, ao se denominar uma teologia latinoamericana, construía e delimitava o significado do ser latino-americano. A produção discursiva de tal identidade buscava agenciar no passado uma memória da América Latina capaz de legitimar seu projeto de poder. No caso da memória histórica da América Latina a ser cultuada, a teologia da libertação – por se estabelecer a partir da dicotomia dominação-libertação – consagraria o aspecto perverso da dominação, tornaria épicos momentos de aspirações à libertação, consagraria heróis que reforçavam a identidade latinoamericana que buscava produzir e elegeria um conjunto de virtudes como inerentes ao caráter latino-americano para tornar justo e legítimo o projeto futuro de libertação política e religiosa da América Latina.

que se refira a um tempo anterior às rupturas de colonização, possa ser construída” In HALL, Stuart. A Questão da Identidade Cultural, p. 42.

269 HALL, Stuart. A Questão da Identidade Cultural. p. 40-43. 270HALL, Stuart. A Questão da Identidade Cultural. p. 56.

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Tratava-se da busca por uma identidade que viabilizasse um projeto político-pastoral voltado para a ruptura das relações de dependência, para afirmação de valores culturais próprios (apresentados como in natura) e também para legitimação de instituições e intelectuais como lugares de autoridades discursivas capazes de produzirem um saber voltado para as próprias especificidades da América Latina271. Contudo, ao construir uma ordem discursiva sobre a América Latina necessariamente a própria América Latina acabou sendo constituída e representada por esse discurso, e essa construção atendia então às necessidades das práticas políticas que emergiram do discurso constituinte e legitimado por ele.

2.2 - A construção da identidade econômica da América Latina

Em um artigo intitulado “O Pensamento Nacionalista na América Latina e a Reivindicação

da Identidade Econômica (1920-1940)”, o filósofo chileno Eduardo Deves Valdés indica que a

partir dos anos 1930, com o fortalecimento das posturas nacionalistas e anti-imperialistas, desenvolve-se na América Latina uma reorientação identitária, que passa a privilegiar os aspectos econômico-sociais na construção da identidade latinoamericana em detrimento da abordagem racial-culturalista presente e predominante entre a intelectualidade latino-americana desde finais do século XIX.

O caráter identitário do pensamento latino-americano das primeiras décadas do século foi mudando de sentido: em uma primeira etapa realizou-se mais como latinidade: em uma segunda, mais como mestiçofilia, indigenista ou afroamericana e, na terceira, mais como nacionalismo e anti-imperialismo. Sem deixar de considerar que as três dimensões coexistem, pode-se dizer que a primeira é mais cultural, a segunda mais social e que a terceira dá ênfase ao econômico sem se desligar totalmente do social e do cultural. Neste nacionalismo econômico fundem-se uma perspectiva de esquerda e uma de direita, denunciando e rechaçando a intervenção das grandes potências. Isto se tornou mais agudo com o profundo impacto causado pela crise de 29-30. Desenvolveu-se bastante a ideia de

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Michel Foucault demonstrou cem História da sexualidade 1: a vontade de saber como são intrínsecas as relações de saber/poder. A construção de um saber e a busca por sua legitimação não está descolada da afirmação política do

locus de irradiação desse discurso: é inerente ao discurso a sua vontade de poder. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984.

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defender o interesse nacional, questão que foi de utilidade para o surgimento do pensamento modernizador industrialista característico do período posterior272

Para Valdés, nos anos 1930 o tema do anti-imperialismo se tornou recorrente no pensamento latino-americano e assumiu a forma de pensamento identitário que se apresentou como defesa da economia continental, ou como nacionalismo econômico. Neste anti- imperialismo confluíram fatores provenientes de diversas outras tradições que apesar de terem contribuído para o clima ideológico daqueles anos, não lhe pertencem especificamente (como por

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