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Rejeição do despotismo Na sua História de Portugal, Herculano critica a forma em

ALEXANDRE HERCULANO (1810-1877) I BREVE SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA

II-ESPÍRITO DOUTRINÁRIO E ROMANTISMO NA VERSÃO DE ALEXANDRE HERCULANO

A) Rejeição do despotismo Na sua História de Portugal, Herculano critica a forma em

que se concentrou o poder nas mãos do monarca, esquecendo as antigas tradições de liberdades locais, originárias da Idade Média. A rejeição do absolutismo é um traço constante na sua obra. Eis a forma em que Joaquim Veríssimo Serrão sintetiza a crítica histórica feita por Herculano ao surgimento do absolutismo português: "O apego à Monarquia, como instituição suprema para o bom governo dos povos, nunca foi posto em causa pelo historiador, que via na figura régia o garante do equilíbrio político e social. Mas com a condição de os monarcas guardarem as liberdades que asseguravam a grandeza e a virtude dos cidadãos, não os transformando em súditos e escravos. A baliza temporal de D. João II para distinguir as duas fases históricas da Nação, constitui um dos axiomas de Herculano, que, sendo um medieval de formação, via nos fins do século XV, com a expansão em curso e a tendência para o absolutismo, a grande viragem que alterou gravemente o equilíbrio português. Daí que assacasse os maiores defeitos aos reis posteriores [...], como se a história moderna do país se houvesse reduzido a um acervo de misérias e desgraças. Tal foi a influência de Herculano neste pensamento, que levou autores capazes, como Oliveira Martins, a situarem a decadência nacional no processo de descobrimentos e conquistas, reduzindo a figuras pobres os monarcas posteriores ao Príncipe Perfeito" [Serrão, 1977: 47-48]. Não podemos deixar de encontrar aqui, nesta defesa de Herculano em prol de uma monarquia aberta à defesa da liberdade, um eco do pensamento de Guizot, que defendeu a Monarquia de Julho na França e que, de forma clara, considerava ser a Monarquia brasileira uma instituição em defesa das liberdades e da representação, constituindo uma garantia contra o despotismo [cf. Guizot, 1864: 247-271]. Já salientamos, na no início da Segunda Parte deste ensaio, a forma em que, de acordo com Herculano, consolidou-se o poder em Portugal como propriedade particular do príncipe, o que ensejaria o surgimento do absolutismo a partir do século XV. Limitemo-nos aqui, simplesmente, a enfatizar a sua rejeição a qualquer forma de despotismo, como algo absolutamente alheio à natureza dos povos livres. Eis a forma em que o nosso autor introduz a sua História de Portugal: "A liberdade tem conseqüências inevitáveis; as gerações dos povos livres participam perante o futuro da responsabilidade dos poderes públicos ou, antes, a responsabilidade é delas, porque têm sempre força e meios para os revogar aos sentimentos do pudor e do dever quando eles a esquecem. As virtudes ou os crimes dos que as governam; a sua glória ou a sua desonra pertence-lhes. O despotismo, esse não o podem chamar à autoria. Para mim a questão, vista por esse lado, estava resolvida. Não era, não podia ser o desejo de reagir contra manifestações oficiais e solenes o que me impelia a renovar esforços tanto tempo interrompidos. Era uma destas afeições

individuais, modestas e desinteressadas, que nascem, como flor singela, nos pedregais da vida" [Herculano, 1914: I, 13].

O historiador português é um liberal no sentido pleno da palavra, abarcando a sua doutrina as três instâncias essenciais da cultura, da política e da economia. É kantiano do ponto de vista cultural (embora não tenha lido jamais a obra do pensador de Königsberg, mas tomado contato com os seus lineamentos gerais muito provavelmente através da obra de Madame de Staël De l'Allemagne, que possibilitou aos portugueses o conhecimento do kantismo) [cf. Staël, 1968]. Herculano, outrossim, acredita na livre iniciativa em matéria econômica (embora com ressalvas conservadoras quanto à adoção da técnica, que deve ser adotada sobre um pano de fundo moral). No que tange à política, o nosso autor defende denodadamente o indivíduo, na sua liberdade, contra os avanços do estatismo. Eis um texto bem revelador dessa índole liberal ampla. Em carta endereçada a Oliveira Martins em 10 de dezembro de 1870, escreve Herculano: "Eu, meu caro democrata e republicano, nunca fui muito para as idéias que mais voga têm hoje entre os moços e que provavelmente virão a

predominar por algum tempo no século XX, predomínio que as não tornará nem piores

nem melhores do que são. A liberdade humana sei o que é: uma verdade da consciência, como Deus. Por ela chego facilmente ao direito absoluto; por ela sei apreciar as instituições sociais. Sei que a esfera dos meus actos livres só tem por limites naturais a esfera dos actos livres dos outros e por limites factícios restrições a que me convém submeter-me para a sociedade existir e para eu achar nela a garantia do exercício das minhas outras liberdades. Todas as instituições que não respeitarem estas idéias serão pelo menos viciosas. Absolutamente falando, o complexo das questões sociais e políticas contém-se na questão da liberdade individual. Por mais remotas que pareçam, lá vão filiar-se. Mantenham-me nesta, que pouco me incomoda que outrem se assente num trono, numa poltrona ou numa tripeça. Que as leis se afiram pelos princípios eternos do bom e do justo, e não perguntarei se estão acordes ou não com a vontade de maiorias ignaras" [apud Oliveira Martins, 1984: 229].

Aparece nestes dois textos um eco da influência recebida por Herculano dos doutrinários e os seus discípulos, como Tocqueville. Não é de claro sabor tocquevilliano essa profissão de fé na defesa da liberdade, semelhante à confissão que fazia o pensador francês de estar sempre do lado daquela, em que pese a tradição despótica que tomou conta do seu país? Lembremos a profissão de fé liberal de Tocqueville [1988: 93-95], formulada na sua obra O

Antigo Regime e a Revolução: "Alguns hão de acusar-me de mostrar neste livro um gosto

muito intempestivo pela liberdade, a qual, segundo me dizem, é algo com que ninguém mais se preocupa na França. Só pedirei àqueles que me fariam esta censura, lembrar-se que esta tendência é muito antiga em mim. Há mais de vinte anos, falando de uma outra sociedade, escrevia quase textualmente o que vão ler aqui. No meio das trevas do futuro já podemos descobrir três verdades muito claras. A primeira é que em nossos dias os homens estão sendo levados por uma força desconhecida, que temos a esperança de poder regular e abrandar, mas não de vencer, e que os impele suave ou violentamente a destruir a aristocracia. A segunda é que, em todas as sociedades do mundo, aquelas que sempre encontrarão as maiores dificuldades para escapar por muito tempo ao governo absoluto, serão precisamente estas sociedades onde não há mais e não pode haver uma aristocracia. A

terceira é que em nenhum lugar o despotismo poderá produzir efeitos mais nocivos do que neste tipo de sociedade, porque mais do que qualquer outra espécie de governo, ele favorece o desenvolvimento de todos os vícios, aos quais estas sociedades estão especialmente sujeitas, e assim as empurra numa direção à qual uma inclinação natural já as fazia pender. [...] Só a liberdade pode combater eficientemente, nesta espécie de sociedades, os vícios que lhes são inerentes e pará-las no declive por onde deslizam. Com efeito, só a liberdade pode tirar os cidadãos do isolamento no qual a própria independência de sua condição os faz viver, para obrigá-los a aproximar-se uns dos outros, animando-os e reunindo-os cada dia pela necessidade de entender-se e agradar-se mutuamente na prática de negócios comuns. Só a liberdade é capaz de arrancá-los ao culto do dinheiro e aos pequenos aborrecimentos cotidianos [...] para que percebam e sintam sem cessar a pátria, acima e ao lado deles. Só a liberdade substitui vez por outra o amor ao bem-estar por paixões mais enérgicas e elevadas, fornece à ambição objetivos maiores que a aquisição das riquezas e cria a luz que permite enxergar os vícios e as virtudes dos homens. [...] Eis o que eu pensava e dizia há vinte anos. Tenho de confessar que desde então nada aconteceu no mundo que me levasse a pensar e falar diferentemente. Tendo demonstrado a boa opinião que eu tinha da liberdade num tempo em que alcançou o apogeu, não acharão ruim que nela eu persista quando a abandonam".

Para Herculano, a rejeição do despotismo é um princípio que não admite a menor dúvida. Em carta a Oliveira Martins datada em 10 de dezembro de 1870 [apud Serrão, 1977: 194] escreve estas palavras, que lembram a rejeição do absolutismo feita por John Locke no seu

Primeiro Tratado sobre o Governo Civil. Note-se o sabor empirista do texto, que defende a

soberania da Nação como um fato: "Tão ilegítimo acho o direito divino da soberania régia, como o direito divino da soberania popular. A soberania não é direito: é fato - fato impreterível para a realização da lei psicológica, até fisiológica, da sociabilidade, mas, em rigor, negação, porque restrição, nos seus efeitos, do direito absoluto, e cujas condições são, portanto, determinadas só por motivos de conveniência prática e dentro dos limites precisos da necessidade. Fora disto toda a soberania é ilegítima e monstruosa. Que a tirania de dez milhões se exerça sobre o indivíduo, que a de um indivíduo se exerça sobre dez milhões, é sempre a tirania, é sempre uma coisa abominável".

Eduardo Soveral destacou a firmeza das convicções liberais de Herculano, abeberadas na sua vida familiar e que o levavam a não transigir com o despotismo, em qualquer uma das suas manifestações. A respeito, frisa Soveral [2002: 6]: "Também as convicções liberais que herdou cedo lhe moldaram a sensibilidade e lhe nortearam as idéias políticas. Desde sempre repudiou o absolutismo régio e o jacobinismo radical e revolucionário, apostado em instaurar, com o apoio despótico das maiorias, uma igualdade que considerava utópica. E pugnou por um regime em que se não ficasse na afirmação de princípios e boas intenções, mas de forma efectiva fosse garantida a liberdade civil".