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Capítulo 5 A MATERNIDADE NA SEGUNDA ONDA

5.1 MAIOR QUE A REVOLUÇÃO: SHULAMITH FIRESTONE E A

5.1.3 A REJEIÇÃO DA MATERNIDADE NO CORPO

Aparece, no discurso que faz em defesa do potencial libertador das tecnologias reprodutivas, um embate semelhante ao que tem Simone de Beauvoir contra as forças contrárias ao acesso das mulheres à separação da reprodução e da sexualidade. Citando uma pesquisa de opinião publicada na revista Life, comenta que a rejeição à aplicação das técnicas de artificialização da reprodução se faria se estas fossem usadas em situações exteriores às normas existentes no casamento, sob a supremacia dos homens. (DS, p. 227). Ela não discute os detalhes práticos da tecnologia, como o uso de hormônios e a experimentação nas mulheres. Os “preconceitos sexuais” e o “atraso cultural” seriam os únicos fatores impeditivos dessa aplicação.

Para defender o projeto de eliminação da causa primeira da submissão das mulheres, repete Beauvoir, enfatizando o incômodo e a deformação da gravidez

112 O Clube de Roma é uma organização composta de pessoas de várias nacionalidades e diferentes segmentos da sociedade civil que se propõe a pensar questões estratégicas da humanidade e a apresentar soluções. Uma das primeiras propostas foi a do limite de crescimento, inclusive o da população mundial. Ver em: <http://esc.clubofrome.org/brasil/ about/index.html>. Acesso em: 2 maio 2007.

e a dor do parto. Se, na França do pós guerra, predominava o discurso maternalista, nos Estados Unidos dos anos 1960, o movimento hippie promovia a volta à natureza. Na onda do “flower power” (poder da flor), o parto normal fazia parte do projeto “paz e amor”. As crianças do “faça amor e não a guerra” eram supostas de nascer longe do ambiente frio e agressivo dos hospitais. Indo contra a corrente desse discurso naturalista, mas, ao mesmo tempo, contradizendo o discurso feminista (e o seu próprio) da apropriação, pelas mulheres, dos seus corpos e do processo reprodutivo – o que supunha, necessariamente, rejeitar a medicalização das funções biológicas femininas–, Firestone afirma:

Falando francamente: a gravidez é uma barbaridade. Eu não acredito que a gravidez seja vista como feia devido a perversões estritamente culturais... Além disso, o parto dói. E isso não é bom... o parto natural é apenas mais uma faceta do reacionário Retorno-à-Natureza hippie- rousseaniano, e tão forçado quanto ele. (DS, p. 228-229, grifos da Autora).

Para discutir a questão da dor do parto, apresenta o seguinte diálogo “paradigmático”:

– É como cagar uma abóbora, disse-me uma pessoa amiga quando perguntei sobre A–grande–experiência–que–você–está–perdendo. – O–que–de–errado–há–em–cagar – Cagar–pode–ser–divertido, diz a Escola–da–Grande–Experiência. Dói, diz ela. O–que–há–de–errado- com–uma–dorzinha–contanto–que–ela–não–te–mate? É chato, diz ela. A–dor–pode–ser–interessante–como experiência, diz a Escola. Não é mais um preço alto para pagar por uma experiência interessante? ela diz. – Mas–olhe–você–tem–uma–recompensa, diz a Escola: –um–bebê–todo–seu–para–você–foder–como–quiser. Bem, isso já é alguma coisa, diz ela. Mas como eu posso saber se ele vai ser um homem, como você? (DS, p. 229).113

Nesse diálogo, é uma fala masculina que faz a minimização da experiência da dor. É trazida em termos de discurso paradigmático da “Escola da Grande Experiência”, ou seja, o discurso que seria o da valorização da maternidade. É, paradoxalmente, uma fala da experiência exclusiva das mulheres, mas sem a fala delas. Tem um paralelo, se assim se pode dizer, inverso, com o uso que faz

113 Não cabe aqui fazer a psicanálise da representação anal do parto, apesar do forte apelo para tal, suscitado pelo texto. Como Beauvoir, Firestone não considera a construção social (inscrita na Bíblia) da dor do parto.

Beauvoir, dos relatos patologizados (através das citações de Steckel), conforme referido no Capítulo 2. Incapaz de recorrer, tal como a filósofa, à experiência vivida, própria, para afirmar a dor, constrói uma encenação dialógica com o dominador, para desmistificar o discurso do parto sem dor. De um lado, o prazer depreciado, por animalesco, e o sofrimento patologizado; de outro, a experiência pela fala sedutora do Outro opressor, fazendo apelo à aceitação da dor. Em ambas, a negação de um possível gozo, não masoquista, na gestação e no parto.

Mas, diga-se, a seu favor, que ela exemplifica o dilema com que nos confrontamos, afinal, ao imaginar, sem a vivenciar, o que possa ser essa passagem, que recebemos, amaldiçoada, desde a infância, pela “palavra de deus” masculina da maldição bíblica: “parirás em dor teu filho”.

Nas considerações finais de A Dialética..., a exemplo de O Segundo

Sexo, de caráter prescritivo e totalizante, anunciando a “primeira revolução bem

sucedida”, ela remete a essa dupla maldição bíblica, a do suor do trabalho e o sofrimento do parto, que seria redimida pela revolta contra a família (e pelo socialismo cibernético que acabaria com as classes sociais). A abolição da inexorável dor viria pela tecnologia que eliminasse a passagem da procriação pelo corpo.

A dialética firestoniana inclui os aspectos psico-sexuais da sociedade humana. A recorrência à Psicanálise se explica por ela permitir a compreensão do interior da mulher e do homem e por mostrar o cenário de conflitos que é a família nuclear burguesa.

Não farei a discussão da leitura de Firestone da teoria de Freud, em particular do complexo de Édipo, uma vez que é apenas um “esboço”, como ela própria reconhece. Registre-se, apenas, que Firestone, mostrando a perspectiva patriarcal das descrições do fundador da psicanálise, sinaliza muitos dos questionamentos que serão feitos, com mais profundidade, por Nancy Chodorow ([1978] 2002).

Mais elaborada e instigante é sua análise do paralelo entre a emergência da Psicanálise (e, posteriormente do freudismo) e o Feminismo. Afirma que o freudismo (que ela considera uma corrente cultural) e o feminismo tiveram origens comuns, ou seja, o questionamento da família da sociedade vitoriana da virada do século XIX para o século XX. O que teria feito emergir ambas as correntes de pensamento foi a importância dada, na época, ao papel da família para a opressão sexista e para a repressão sexual. As idéias feministas agitavam, então, a

sociedade, inclusive a discussão, nos meios cultos, sobre o impacto nos papéis sexuais causados pela possibilidade de reprodução artificial, que aparecera em O

Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence.114 A grande vulgarização, sobretudo nos Estados Unidos, da Psicanálise, deslocando-se da teoria para a aplicação massificada na clínica, e a inundação do vocabulário popular por termos psicanalíticos (mesmo sem que se soubesse exatamente quais suas conotações teóricas), foi importante para enquadrar os conflitos sociais trazidos pelo movimento feminista, na norma patriarcal:

[...] a teoria freudiana, repolida, em decorrência de sua nova função de ‘adaptação social’ foi usada para exterminar a revolta feminista. Remendando com band aids as feridas abertas pela revolução feminista abortada, ela conseguiu apaziguar a enorme inquietação social e a confusão de papéis que se sucederam ao primeiro ataque contra a rígida família patriarcal. É duvidoso que a revolução sexual tivesse permanecido paralisada, a meio-caminho, durante metade de um século, sem a sua ajuda, pois os problemas despertados pela Primeira Onda de feminismo ainda não estão resolvidos hoje. (DS, p. 85-86).

Se Freud fora considerado, assim como as feministas, um escândalo para a época, o freudismo pôde se disseminar, por não ter questionado a ordem estabelecida, ao contrário do que fez o feminismo.