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5 INFERÊNCIAS SOBRE POTENCIAIS DE VOZES E ENSURDECEDORES

5.2 SOBRE O LUGAR DE SILÊNCIO E DAS RELAÇÕES DE PODER

5.2.1 Relações de poder e interseccionalidades nos campos psi

No trecho a seguir, de escrita elaborada pelo estagiário 4 quanto à apresentação e elementos de percepções que obteve da dinâmica emocional da paciente escolhida para ser seu estudo de caso no relatório, fomos inquietadas pelo modo como relata o fato dessa estar cursando um curso de doutorado, bem como pelas suas impressões acerca de como a paciente considera este seu presente status acadêmico em sua vida:

O caso escolhido para ser apresentado foi o de C.P.N. A cliente possui 27 anos, do sexo feminino e atualmente está cursando doutorado. O período de atendimento foi de outubro de 2016 até julho de 2017. A cliente foi repassada de outro estagiário. (Estagiário 4, grifos das pesquisadoras).

Há também os questionamentos sobre ela em sua própria vida, pois ela traz como se fosse uma coadjuvante em sua própria vida, é sempre o desejo do outro, ela sempre fazia as coisas para conseguir reconhecimento, e ela nunca aparecia em seu discurso. Ao questionar o que ela gostaria de fazer, por muitas sessões sempre respondia não sei, o que acontecia muito nas sessões [...] Outras intervenções

trabalhadas foram relacionadas a forma que ela enxergava as outras pessoas, pois parecia que para ela o outro era sempre melhor, eram sempre idealizadas, enquanto que ela nunca era vista, apesar que estava fazendo doutorado e não ver isso como algo importante. (Estagiário 4, grifos das pesquisadoras).

Não há regras que estabeleçam o modo como devem ser descritos os pacientes nos estudos de caso nos referidos relatórios aqui analisados. Entretanto, é comum utilizarmos dados considerados relevantes ao conhecimento da pessoa a quem estamos endereçando intervenções de cuidados. Chamou-nos a atenção por este ser o único dos relatórios que apresentou, em linhas gerais, a categoria sexo, não só para a apresentação de sua paciente, mas nos modos como a visualizou e conduziu suas intervenções. Autoras como Collin (1992) consideram que a demarcação das diferenças sexuais não só emergem em nossas escritas como uma questão teórica, mas como uma questão interligada as nossas práxis.

Diz ainda que a diferença sexual surge mediante experiência dialógica, onde ocorrem tensionamentos entre uma mulher e um homem, entre mulheres e homens, entre sujeitos demarcados pelo que se estabelece socialmente por mulher ou homem e a condição de gênero que cada um carrega, seja no espaço publico, no social ou no privado. Para esta autora, ao fazermos o uso de discursos que reiteram as diferenças, tais como macho/fêmea, acabamos por nos inserir em um jogo de ciladas. Uma vez que, ao nos atermos aos determinantes entre feminino/masculino, acabamos por ocultar as diferenças expressas e vividas entre os seres com relação aos seus comportamentos, desejos, subjetividades, sexualidades, identificações de gênero e experiências outras que carregam em sua história enquanto sujeitos.

Ao reiterar as diversidades compreendidas entre identidades, sejam de homens ou mulheres e identidades outras como a de intersex e de trans, Collin (1992) propõe um superar das classificações e nomeações biformes, extinguindo assim as vias de silenciamentos das nossas diferenças, tão presentes quando há as reiterações no uso dessas categorias consideradas opressoramente reducionistas. Para a autora, precisamos insistir continuamente nas diferenças, considerando-as como condições das identidades individuais e coletivas, assemelhando-se, pois, a proposta desconstrucionista de Scott (1986) em que a diferença instituída por categorias binárias como macho/fêmea, homem/mulher, daria lugar às diferenças múltiplas, possibilitando assim vias para a não repetição de armadilhas relacionadas às disjunções de igualdade e de diferença.

Deste modo, consideramos que a inserção de reflexões como as supracitadas não só contribuem para um diálogo mais fluido e contínuo entre percepções e descrições de igualdades e diferenças, sem que a estas possamos submeter silêncios ou negações de suas

particularidades. Mas, sobretudo, contribuem para o desenvolvimento de percepções e consequentes ações que ressoam cuidados e respeito às pluralidades quando a elas e sobre elas, inserimos discursos. Aqui, chamamos a atenção para o segundo e reiterante trecho apresentado pelo estagiário 4, quando este disserta que a paciente não parece reconhecer os devidos valores de ser uma doutoranda.

Para Oliveira (1993) são justamente os valores que se apresentam como os fundamentos das diferenças. Homens, mulheres e trans, são diferentes entre si porque encontramos na dinâmica de nossas existências a pluralidade em que reside a forma como concebemos valores, tais como o modo como direcionamos atenção e cuidado ao outro, como visualizamos os afetos e intimidades em nossas relações, às ênfases que atribuímos aos relacionamentos interpessoais e materiais, entre outros. Para esta autora, correlaciona-se determinantemente à identidade feminina características como a intuição, a sensibilidade e a empatia para com a interação com o meio e seres.

Adverte-nos a autora, no entanto, que determinações como estas provocam terrificantes sentimentos que podem ser experienciados quando se veem inseridas em espaços de confronto com seus modos de ser e com as exigências de sucesso submetidas e marcadas por ações de descuidos, agressividades e objetividades, como a que interpretamos no referido trecho. Não desconsideramos, apesar disso, os possíveis desejos do estagiário em apresentar a sua paciente os méritos por seus esforços em ingressar e cursar um programa de doutorado. Contudo, como nos apresenta Figueiredo (2000), se mostra indispensável nos campos de atuação das psicologias, a abertura para o outro e o que este outro carrega e apresenta de si, mesmo que estes seus pertences sejam muito diferentes daquilo que acreditamos ou desejamos por ouvir.

Portella e Gouveia (1999) nos introduzem aos espaços dialógicos existentes entre as categorias gênero, classe e escolarização, tal qual se apresentam no comentado trecho acima. As autoras acrescentam ainda que as exigências presentes no cenário de atuações profissionais com relação ao status de escolarização acabam por incitar o aumento de buscas por especializações, sendo estas realizadas em grande número por mulheres. Contudo, apesar deste crescente indício, não é possível ver resultados semelhantes quanto um maior empoderamento, tampouco uma maior autoestima e valorizações nos âmbitos pessoais e profissionais no que concernem estas mulheres.

As autoras atribuem a este cenário uma ausência de articulações que contemplem as dinâmicas produzidas pelas interfaces das categorias escolaridade, classe e gênero. Alertando ainda, para as necessidades de urgentes visualizações no tocante as inferências das relações de

poder sob os campos de interseccionalidades; possibilitando assim uma compreensão da complexa rede de desigualdades que se produzem subjetivamente, quando emitimos associações entre significados como os de sexo feminino e doutorado, como descrito no nosso exemplo.