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Relações entre as duas concepções básicas de cultura

No documento O que é Cultura - Jose Luiz dos Santos (páginas 37-44)

Como as páginas anteriores sugerem, desde muito tempo as preocupações com cultura orientam-se pelas duas concepções básicas que já havíamos discutido: ou tratam da totalidade das características de uma realidade social, ou dizem respeito ao conhecimento que a sociedade, povo, nação ou grupo social tem da realidade e à maneira como o expressam. Assim, a preocupação com a totalidade sedimentou-se na concepção de cultura da ciência do século XIX. Já a associação de cultura com

conhecimento é mais antiga, vinda da relação de cultura com erudição, refinamento pessoal.

É do relacionamento entre essas duas concepções básicas que se origina a maneira de entender cultura, que pode ser um instrumento de estudo das sociedades contemporâneas. Vejamos como isso ocorre.

Falar da totalidade das características de um povo, nação, sociedade, é uma ideeia muito ampla para cultura, algo muito vasto e difícil de operacionalizar. Apesar disso, é uma ideia útil quando estão em comparação realidades sociais muito distintas, resultados de experiências históricas muito diferentes. Sociedades assim comparadas podem diferir fundamentalmente em sua organização da vida social, nas maneiras de definir as relações de parentesco entre seus membros, de regular o casamento e a reprodução, na produção do necessário para a sobrevivência, nas técnicas, nos instrumentos e nos utensílios, nas suas concepções, crenças e em tantos outros aspectos. Preocupar-se com a totalidade dessas características é inevitável em casos assim, já que é tudo isso que torna cada uma das sociedades diferente.

Mas o encontro entre sociedades assim vai-se tornando raro. Com a aceleração da interação entre povos, nações, culturas particulares, diminui a possibilidade de falar em cultura como totalidade, pois a tendência à formação de uma civilização

Por mais diferenças que possam existir entre os países, todos partilham processos históricos comuns e contêm importantes semelhanças em sua existência social.

mundial faz com que os povos, as nações, as culturas particulares existentes partilhem características comuns fundamentais. Falar de culturas isoladas e únicas vai perdendo a viabilidade, pois não seria essa realidade comum, a civilização mundial, que vai poder distinguir suas experiências particulares. Assim, por exemplo, por mais diferenças que possam existir entre países como Brasil, Peru, Quênia e Indonésia, todos eles partilham processos históricos comuns e contêm importantes

semelhanças em sua existência social, buscam

desenvolver suas economias dependentes, superar desigualdades sociais internas e atingir padrões internacionais de qualidade de vida. É uma situação bem diferente, vejam bem, dos contatos iniciais da sociedade inglesa com sociedades nativas da Oceania ou com reinos da África ou da sociedade brasileira com sociedades indígenas da Amazônia.

Não é de se estranhar, pois, que prevaleça nas preocupações com cultura aquela tendência a procurar localizar e entender os aspectos da vida social não diretamente materiais. Lembrem-se de que a discussão de cultura está muito ligada à constatação da diversidade. E é nesses aspectos não materiais que a diversidade se expressa com mais vigor. Mas notem que a preocupação em entender toda a vida social não foi abandonada nas discussões sobre cultura; ela foi transformada. De fato, cultura tende a se transformar numa área de reflexão sobre a

realidade onde aquelas duas preocupações básicas se mesclam. Assim, cultura passa a ser entendida como uma dimensão da realidade social, a dimensão não material, uma dimensão totalizadora, pois entrecorta os vários aspectos dessa realidade. Ou seja, em vez de se falar em cultura como a totalidade de características, fala-se agora em cultura como a totalidade de uma dimensão da sociedade.

Essa dimensão é a do conhecimento num sentido ampliado, é todo conhecimento que uma sociedade tem sobre si mesma, sobre outras sociedades, sobre o meio material em que vive e sobre a própria existência. Cultura inclui ainda as maneiras como esse conhecimento é expresso por uma sociedade, como é o caso de sua arte, religião, esportes e jogos, tecnologia, ciência, política. O estudo da cultura assim compreendida volta-se para as maneiras pelas quais a realidade que se conhece é codificada por uma sociedade, através de palavras, ideias, doutrinas, teorias, práticas costumeiras e rituais. O estudo da cultura procura entender o sentido que fazem essas concepções e práticas para a sociedade que as vive, buscando seu desenvolvimento na história dessa sociedade e mostrando como a cultura se relaciona às forças sociais que movem a sociedade.

Uma maneira mais complicada de apresentar essa dimensão é dizer "que a cultura inclui o estudo de processos de simbolização, ou seja, de processos de substituição de uma coisa por aquilo que a

significa, que permitem, por exemplo, que uma ideia expresse um acontecimento, descreva um sentimento ou uma paisagem; ou então que a distribuição de pessoas numa sala durante uma conversa formal possa expressar as relações de hierarquia entre elas. Assim, a ideia de uma divindade única pode ser vista como significado de unidade social; nas brincadeiras infantis tradicionais numa sociedade como a nossa pode-se mostrar a presença simbólica de mecanismos de competição e hierarquia do "mundo dos adultos".

De fato, os processos de simbolização são muito importantes no estudo da cultura. É a simbolização que permite que o conhecimento seja condensado, que as informações sejam processadas, que a experiência acumulada seja transmitida e transformada. Não se entusiasmem muito, porém, com os exemplos acima, a ponto de saírem por aí localizando significados ocultos em cada prática cultural, em cada elemento da cultura, em cada produto cultural. Isso pode atrapalhá-los, ao invés de contribuir para que vocês conheçam sua sociedade. Vejamos por quê.

Em primeiro lugar, cultura diz sempre respeito a processos globais dentro da sociedade, e ficar enfatizando relações miúdas de significado pode fazer com que vocês percam de vista aqueles. Na verdade tais elementos só fazem sentido dentro daqueles processos. Assim, só se pode entender a importância das brincadeiras infantis estudando toda

formação cultural que se dá às crianças e localizando-as dentro desta. Da mesma maneira, mais importante que localizar o significado da divindade única é entender o que significa a religião numa sociedade, estudar o conjunto de suas concepções, ver como ela se organiza, que conflitos carrega, que interesses expressa.

Em segundo lugar, uma ênfase desse tipo pode desviar a atenção do fato de que cultura está associada a

conhecimento, o qual tem uma característica

fundamental: o de ser fator de mudança social, de servir não apenas para descrever a realidade e compreendê-la, mas também para apontar-lhe caminhos e contribuir para sua modificação. Ou seja, reduzindo a cultura ao estudo do simbolismo de seus elementos pode-se acabar entendendo cultura como uma dimensão mecânica da vida social, algo que sempre expressa apaticamente alguma outra coisa, e com isso obscurecer o caráter transformador do conhecimento.

Em terceiro lugar, esse tipo de ênfase simbolista pode induzir vocês a entender cultura como uma dimensão neutra, cujos elementos expressam, por exemplo, a desigualdade porque existe desigualdade na vida social. No entanto é preciso considerar que a própria cultura é um motivo de conflito de interesses nas sociedades contemporâneas, um conflito pela sua definição, pelo seu controle, pelos benefícios que pode assegurar.

Vemos assim que cultura está sempre associada a outras preocupações do estudo da sociedade, leva a pensar nas relações de poder e exige que se considere a organização social. Isso faz com que as duas concepções básicas de cultura de que lhes falei permaneçam presentes: ao falarmos de cultura nos referimos principalmente à dimensão de conhecimento de uma sociedade, mas sempre temos em mente a sociedade como um todo. O estudo da cultura exige que consideremos a transformação constante por que passam as sociedades, uma transformação de suas características e das relações entre categorias, grupos e classes sociais no seu interior. A essa transformação constante me referi falando de processo social.

No documento O que é Cultura - Jose Luiz dos Santos (páginas 37-44)

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