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CAPÍTULO 1 – ARTE-EDUCAÇÃO E CULTURA POPULAR NA EDUCAÇÃO

1.3 Relações entre cultura popular e arte-educação

René Marc da Silva, em Cultura popular e Educação, chama atenção para a relação desigual que se estabeleceu entre a cultura popular e a educação:

Cultura popular e educação podem adquirir significados muito diferentes, dependendo do contexto ou da sociedade a partir da qual forem pensadas. Numa sociedade como a brasileira, profundamente marcada por múltiplas hierarquias e desigualdades, a ideia de “cultura” – antes de tudo associada à sofisticação, à erudição e à educação formal – uma vez aproximada à categoria “popular” produz uma estranha dissonância. [...] No Brasil a ideia de cultura (pelo menos a denominada “cultura de verdade” ou a “alta cultura”) remete para um conjunto de bens materiais ou imateriais possível de ser apropriado e elaborado por uma minoria, uma elite endinheirada. Acessíveis a poucos, a perspectiva de universalizar esses bens somente os desvaloriza e apequena. (SILVA, 2008, p. 7).

A oposição entre o popular e o erudito é um ponto importante para nossa reflexão. Pois, geralmente, no âmbito educacional, essa oposição sinaliza uma posição de inferioridade da primeira em relação à segunda. Silva propõe o corte definitivo desta relação, e que se promova uma mudança de lugar e status da cultura popular na educação.

Enfim, é preciso recusar a hierarquização das expressões culturais e sua articulação em culturas subalternas e culturas dominantes. É

necessária uma outra visão do processo cultural como um todo, mas também da educação e da escola. Recusar a subalternidade da cultura popular, recuperar sua importância fundamental é concebê-la a ocupar um lugar privilegiado de onde se pode pensar e ver criticamente, perspectiva analítica capaz de pensar em profundidade os principais nós e estrangulamentos da história do Brasil e da cultura brasileira em geral. (SILVA, 2008, p. 9).

Carlos Rodrigues Brandão, em SILVA, 2008, defende uma concepção de educação que parta do universo cultural do aluno:

Nada mais errado do que dizer: “esse homem não tem cultura nenhuma”. Nada mais equivocado do que dizer: “essa é uma gente sem cultura”. E, no entanto, não é raro que algumas pessoas pensem assim. E também não são raras hoje em dia, como no passado, ações sociais derivadas de ideias que centram em um modo de ser ou em uma cultura toda a excelência, e desqualificam as outras. (SILVA, 2008, p. 33).

No entanto, outros pontos de vista, que pensam as relações entre as diversas culturas de forma horizontal, grosso modo, sem hierarquias, convivem com essas visões hierarquizantes de cultura. Bernard Darras, ao refletir sobre mediação cultural, nos tempos atuais, nos traz a definição de equanimidade cultural.

Segundo a abordagem horizontal típica da pós-modernidade, todas as produções valem e devem ser tratadas de maneira equânime e equivalente. As categorias herdadas das outras concepções de cultura, tanto as hierarquizadas e as autônomas como as heterônomas, são abandonadas ou neutralizadas. As escalas e as diferenças são equalizadas visando a uma horizontalização do interesse e do julgamento. As produções são valorizadas por elas mesmas, por sua simples existência ou por sua necessidade local (DARRAS, 2009, p. 30).

A difusão de uma cultura como principal ou hegemônica, em detrimento das demais carrega em seu bojo questões de poder e exploração. Porém, também deve- se olhar de forma crítica para o excesso de relativismo, que coloca em situação de igualdade conhecimentos formulados e adquiridos através de longa e sistemática construção com produtos culturais descartáveis, que surgem a todo momento, para consumo imediato.

Além da inferiorização da cultura popular na educação, há o problema de seu uso descontextualizado. Isabel Marques nos relata a atitude do professor médio quando se interessa por cultura popular:

No imaginário do professor médio de São Paulo (do Brasil?), trabalhar com a identidade brasileira ainda é “ensinar o Norte e

Nordeste”. Lá sim, estariam nossas raízes, nossos solos identitários, nossa “verdadeira” cultura brasileira. Fazer com que o frevo, a capoeira, o coco façam parte do repertório de todos os brasileiros que passam pela escola torna-se bandeira nacional irrevogável. (MARQUES, 2007, p. 156).

Para a autora, não basta trazer fragmentos de danças brasileiras para dentro dos projetos educacionais se, para crianças e jovens envolvidos nesses processos, tais fragmentos não representarem uma experiência significativa.30

No caso do Grupo Gracinha, essa experiência parece revelar um novo lugar de relação entre cultura popular e educação. A elaboração do sentido dessa experiência se deu através da preparação de um espetáculo e da vivência do ciclo de festas do Boi, sem que necessariamente essa tradição fizesse parte do universo das crianças e familiares envolvidos. Estaríamos, então, frente à descontextualização apontada por Isabel Marques? Ou estaremos frente a uma outra forma de apropriação da cultura popular? Faz necessário, portanto, investigar quais formas de transmissão de saberes, utilizadas nesse projeto, conduziram o grupo a realizar “o seu Boi”, escrevendo sua própria história.

Na observação das formas de transmissão de saberes da cultura popular, tal qual presenciamos no Gracinha, podemos encontrar algumas respostas para a promoção de um encontro efetivo entre cultura popular e educação. Pois

[...] existem formas de educação extra-escolar, cujo valor apenas agora começamos a descobrir. Tal como acontece com os povos indígenas, cantando e dançando, vendo como-se-faz-e-fazendo, jogando e trabalhando ao lado dos “mais velhos”, os “mais jovens” convivem com aprendizados simples e complexos que vão dos segredos do plantio do milho até os de uma Folia de Santos Reis. (SILVA, 2008, p. 36).

Não basta, portanto, que se fale e se conte do Boi, do Saci, do Maracatu. Nem tão pouco que só nos debrucemos sobre os elementos culturais trazidos pelos alunos de sua vivência familiar. Para que se desenvolva o potencial educativo e criativo dos elementos da cultura popular é preciso antes de tudo refletir sobre os

30 Aqui nos aproximamos da reflexão de Bondia em Notas sobre a experiência e sobre o saber da

experiência, quando diz: “Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da experiência tem

a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular; ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude.” (BONDIA, 2002, p. 27).

espaços que são determinados para essas manifestações nos ambientes educacionais:

[...] a escola tende a colocar de lado, ou a deslocar para a “hora do recreio” ou “do mês de agosto”, a experiência tão rica no Brasil de criação de artes, valores e saberes populares. Uma atenção um pouco mais generosa para com a criação popular nos ajudaria a ver e a compreender que tal como sucede nos domínios das ciências e artes eruditas, entre nossos pescadores artesanais, entre nossos camponeses, seringueiros e tantos outros sujeitos de vida e de trabalho cultural, existem e se transformam verdadeiros sistemas complexos de conhecimento. (BRANDÃO, 2007, p. 26).

Experiências, como a do Grupo Gracinha, afirmam que a prática da cultura popular dentro do espaço educacional pode ser duradoura e significativa. E que, para compreendermos o êxito dessa proposta, precisamos nos deter nas formas de transmissão e de organização que regem seu funcionamento e que se construíram ao longo dos treze anos de existência do grupo.