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Relações entre mediatização, sociointeração e internalização

4.1 Categorias emergentes

4.1.1 Mediatização

4.1.1.4 Relações entre mediatização, sociointeração e internalização

Os processos psicológicos superiores como o pensamento computacional “surgem a partir do desenvolvimento cultural da criança, cuja fonte são a colaboração e a aprendiza- gem” (VIGOTSKI, 2009, p. 335). Em outras palavras, tais processos são decorrentes da internalização e da sociointeração.

Conforme Vigotski (2007, p. 56), internalização é “a reconstrução interna de uma operação externa”, isto é, a transformação de um processo interpessoal (social) em um processo intrapessoal (individual). O autor argumenta também que “a internalização de formas culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica tendo como base as operações com signos” (VIGOTSKI, 2007, p. 58). Deduzimos, portanto, que o “primeiro momento” do processo de internalização envolve a aquisição de signos desenvolvidos cultural e historicamente. No aporte teórico do autor, observamos que tal aquisição ocorre por meio da interação com o outro, o alguém mais experiente (MKO). Nesta pesquisa, entretanto, propomos uma ampliação de tal noção ao defendermos que, por meio da mediatização, serious games também possam participar no processo de internalização, atuando em conjunto ou até mesmo no lugar do MKO. Por conta disso,

8 O aluno estava devidamente inscrito na oficina e, por conta disso, havia ingressado no grupo de WhatsApp da turma.

optamos por acoplar e discutir o conceito de sociointeração no contexto da mediatização, ao invés da mediação.

Nessa perspectiva, um serious game deve fornecer os signos necessários para que o pensamento computacional – a atividade psicológica estudada – seja reconstruído internamente pelo jogador. Com base no que se observou na oficina, defendemos que o jogo CodeCombat não somente provê os instrumentos e sistemas simbólicos para que seja possível resolver os desafios propostos, como também explica as relações entre os signos e as formas de utilizá-los. CodeCombat fornece diversas pistas, por meio de diferentes sistemas simbólicos (imagens, texto, código-fonte e vídeos), para que o jogador tenha à sua disposição as informações mínimas (e às vezes muito além disso) para aprender a linguagem de jogo e elaborar hipóteses corretas para os problemas que se lhe apresentam. Na medida em que o sujeito assimila tais instrumentos psicológicos, ele se torna capaz de realizar as mesmas operações mentais sem que o referencial concreto esteja presente, isto é, os signos adquiridos por ele não servem apenas para resolver questões que se apresentam em seu campo visual imediato, mas também para o planejamento de ações futuras (VIGOTSKI, 2007, p. 14).

No entanto, por mais que um jogo forneça os signos necessários aos jogadores (regras, palavras-chave, comandos, símbolos, ícones), possibilitando que estes joguem e aprendam por conta própria, é importante que ele também incentive interações pedagógicas entre os pares – a sociointeração9. Sob a perspectiva vigotskiana, a sociointeração – sobretudo a colaboração – exerce um papel importante, uma vez que “a criança orientada, ajudada e em colaboração sempre pode fazer mais e resolver tarefas mais difíceis do que quando sozinha” (VIGOTSKI, 2009, p. 328). Isso ocorre principalmente porque o MKO pode gerar as condições necessárias para que um sujeito consiga realizar algo que não conseguiria fazer sozinho, seja por meio de problematizações e pistas, seja por meio da imitação. Uma simples explicação por parte do MKO pode ser o suficiente para que seu interlocutor consiga resolver um problema que não conseguiria por conta própria. Ao mesmo tempo, o sujeito aprendiz pode realizar aquilo que não conseguiria sozinho por meio da imitação. Contudo, “ao contrário do senso comum, não é possível imitar qualquer coisa. Uma pessoa só consegue imitar aquilo que está ao alcance de suas possibilidades, de seu desenvolvimento” (VIGOTSKI, 2009, p. 328), ou seja, aquilo que está ao alcance de sua ZDP. Portanto, é

importante que o MKO tenha a capacidade de discernir o nível de desenvolvimento de seu interlocutor. Esse argumento será retomado mais adiante, na seção que se refere à mediação do professor.

De qualquer modo, destacamos que as interações pedagógicas entre os alunos durante a oficina mediatizada pelo jogo CodeCombat foram muito ricas (ver Figura 5),

9 O termo é bastante empregado na pesquisa brasileira relacionada a Vigotski. Por outro lado, não é

comum encontrá-lo na literatura disponível em inglês, por exemplo. Em artigos escritos nesse idioma, a expressão “social interaction” costuma adquirir o mesmo sentido de sociointeração.

Figura 5 – Sociointeração e mediação do professor em um encontro da oficina

Fonte: elaborado pelo autor

apesar de ser um jogo singleplayer (único jogador). Por outro lado, é possível que tais interações tenham ocorrido devido à abordagem vigotskiana do professor-mediador, que encorajava a colaboração entre os alunos, e das circunstâncias do laboratório disponível para a realização da oficina, que não possuía computadores suficientes para cada aluno.

A sociointeração possibilita a troca de experiências entre pares com níveis de desenvolvimento intelectual diferentes e, consequentemente, propicia a mobilização da ZDP (VIGOTSKI, 2007; DJAOUTI, 2016), uma vez que os alunos mais experientes podem ajudar seus colegas a ir além daquilo que conseguem fazer sozinhos. Ao longo da oficina, pelo menos dois alunos se destacaram e demonstraram capacidade de atuar como MKOs: Knight e Donalds. Em alguns momentos, os dois atuaram mais como MKOs, fornecendo pistas e problematizando em colaboração com seus pares, do que como jogadores per se. No diálogo abaixo, por exemplo, Donalds auxilia o professor a explicar um determinado conceito a Knight:

Knight : O que que é “argumentos”? ... O que são argumentos?

Professor : Argumento é tipo o que tu bota dentro de um poder ali (explicação rasa, mas contextualizada). Quando tu faz assim, tipo: “moveRight”, tu bota “2”, pra andar duas vezes, isso é um argumento. Ele [o jogo] tá reclamando de algum erro? Knight : Aqui tá dizendo que eu tenho que usar “argumento”, “variável” e “loop”. Donalds : Ah.. Eu tô nessa fase aí também.

Professor : Quer dizer que tu tem que usar alguma função. Então, tipo, em vez de usar “moveRight”, tem que usar “moveRight(2)”, por exemplo.

Donalds : Tu [Knight] tem que usar, tipo, “While-True Loop”, o “moveDown”, o “moveUp” e o ataque.

Ademais, a atuação de Donalds como MKO ficou evidente no segundo encontro da oficina, quando assumiu a responsabilidade de guiar Cheetos, aluno que faltara ao primeiro encontro. Em dado momento, Donalds solicitou a ajuda do professor para conseguir explicar a Cheetos o que era um loop, o que demonstra um senso de responsabilidade para com a aprendizagem de seu colega:

Donalds : Ô sor! (Professor se aproxima) Tu consegue explicar pra ele [Cheetos] o que é o Loop? Eu sei usar, mas não sei explicar.

A perceptível fluência na linguagem e a facilidade em lidar com os desafios do jogo apresentada por Knight e Donalds, assim como por Ermac e pelos demais em alguns momentos, dá indícios da reconstrução interna de comportamentos aprendidos socialmente, o “segundo momento” do processo recursivo que é a internalização. A reconstrução interna inicia-se a partir do momento em que os signos apreendidos no contexto do jogo passam a fazer parte do processo de pensamento do aluno, quando ele passa a construir mentalmente utilizando-se de conceitos como algoritmos, instruções, loops e variáveis, ou até mesmo comandos específicos (moveRight e while, por exemplo). Além disso, a internalização se evidencia quando os sujeitos começam a se comunicar com seus pares utilizando tais signos, como ocorreu em diversas situações ao longo da oficina:

Jerry : Ihhh.. Agora sim! Agora vai!

Colega : Menos de 7 declarações! Tem umas quinze! (risos). Tem que ser 7. . . . Vamo colocar loop!

Colega : Left. Daí, Up. Up. Jerry : E agora... 2.

Colega : 2! Jerry : E agora?

Colega : Bota um loop. . . .

Colega : (chama o professor para pedir ajuda)

Professor : (olha a tela) Ah tá... É que... aqui ó: (mostra na tela) Ele tá dizendo aqui, ó (aponta). Senta aí, Ichigo. Quer dizer, pode sentar, Ichigo. Não foi uma ordem. Desculpa. Se tu quiser, tu pode sentar.

Ichigo : Tem que botar os código do comando pra fazer sentar, sor! (risos) Professor : Ichigo.sit()

Finalmente, ressaltamos que a mediatização do serious game CodeCombat potenci- aliza o processo de internalização, tanto por facilitar a aquisição dos signos necessários para a realização de atividades relacionadas ao pensamento computacional, atuando quase como um MKO, quanto por encorajar a sociointeração, que permite a aprendizagem por meio da imitação, mobiliza a ZDP e ensina a colaborar com o outro.