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CAPÍTULO III – A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO ÂMBITO DO MUNDO ESCOLAR.

3.2. Relações entre a metodologia da educação patrimonial a o ensino de História

Analisar o conteúdo da publicação desse material, produzido como instrumento de alfabetização cultural a ser utilizado na escola, significa adotar os pressupostos das políticas públicas de preservação estabelecidas para aquela área, como elemento determinante e decisivo do seu processo de construção pelo IPHAEP, cujo discurso, revelador dos conflitos e tensões do poder sobre aquela área de preservação rigorosa, direciona a criação desse suporte educativo.

A leitura e a análise das edições de 2002 e de 2003 da cartilha, objetos desta pesquisa, permitem ao público beneficiado, formado por professores e alunos, conhecer o sentido e o significado do patrimônio como representação simbólica dos valores identitários da memória coletiva paraibana.

O conjunto dos bens patrimoniais destacados na cartilha insere-se num complexo sistema de relações sociais, emaranhadas numa rede de significados que dá sentido às evidências culturais, informando o modo de vida dos indivíduos no passado e no presente, numa dinâmica constante de permanências e continuidades, transformações e reutilizações, como revela a fala de Marise Ritondale:

E percebemos também que nessa cartilha ela não mostra só é... o Centro Histórico. Ela fala de todo um... próprio início da cartilha tem Passado um Presente para o Futuro – nós precisamos conhecer um pouco do passado para a gente entender o que está acontecendo no presente e a gente se projetar para o futuro. Então esta cartilha, vem exatamente mostrar estes três tempos: o passado, o presente e o futuro. E as crianças podem perceber como é importante conhecer não só o presente, de onde ela mora, mas o passado e ter uma idéia do que poderá acontecer com o futuro se o aluno, o indivíduo, o cidadão não interferir de uma forma correta.

É por meio desse processo de descoberta da realidade histórica e sócio-cultural de um determinado espaço social, através da observação e análise direta do objeto estudado aplicar-se-ia a metodologia da educação patrimonial, apropriada para facilitar a percepção e a compreensão dos fatos e fenômenos culturais.

A metodologia da educação patrimonial é explicitada em quatro etapas: a observação, o registro, a exploração e a apropriação. O pressuposto teórico- metodológico é o de que o objeto do conhecimento não pode ser imposto, ele tem que surgir a partir de uma sensibilização. “A educação patrimonial, enquanto ‘alfabetização cultural’, postula o aprender a ver, a educação do olhar sobre um objeto, um documento, um espaço” (HORTA, GRÜNBERG, MONTEIRO, 1999, p.11/13).

Essa capacidade de desvelar o contexto da produção do elemento cultural é que contribui para o processo de sua apropriação e valorização, imprescindíveis para a estruturação do sentimento de identidade e cidadania: “É a leitura do mundo, do universo cultural e do contexto em que foram produzidos os objetos culturais que estamos explorando, que permite identificar as permanências e transformações da dinâmica social” (HORTA, GRÜNBERG, MONTEIRO, 1999, p.14-15). Muito mais que informação é a qualidade política desta que a educação patrimonial privilegia: é a consciência crítica postulada por Freire, como um dos saberes necessários à prática educativa, citados em sua obra Pedagogia da autonomia (1996).

Por meio da metodologia de educação patrimonial, o sentimento de pertença ou

pertencimento, estimulado pela identidade local, tem propiciado às populações a

procura, a preservação e a valorização do patrimônio como identidade, cujos indícios podem ser constatados pela busca do entrosamento da comunidade com as atividades relacionadas ao patrimônio. Esse entrosamento ocorre por meio de associações de bairros inseridas na área do Centro Histórico, em atividades promovidas por organizações não governamentais, que através da Oficina-Escola de Revitalização do Centro Histórico, em convênio com a Prefeitura de João Pessoa, oferece cursos de capacitação de mão-de-obra especializada para a restauração de bens móveis e imóveis integrantes do acervo patrimonial da cidade.

A representação do patrimônio presente na cartilha do IPHAEP é simbolizada através dos desenhos manuais e da fotomontagem associados à história em quadrinhos (HQ), conduzindo o leitor a uma apreciação da linguagem lúdica do texto relacionada às figuras e imagens produzidas para um entendimento a respeito do sentido e do significado das práticas de preservação. Nesse raciocínio, procura fazer interagir, ao longo do texto, seus conceitos básicos de natureza técnica, como recurso didático, explorados a partir do destaque em final de páginas, com a explicação de sua

terminologia, como ocorre na primeira edição de 2002 e, através de glossário inserido na parte interna da contracapa na segunda edição, em 2003. Como pode ser constatado nos exemplares constantes nos Anexos deste trabalho.

O poder de comunicação imediata da fotografia utilizada na fotomontagem foi explorado apenas na segunda edição da cartilha (2003), como forma de favorecer a compreensão do texto e torná-lo mais criativo, para uma melhor identificação dos núcleos urbanos tombados e /ou cadastrados, no contexto da temática abordada, conforme pode ser observado nas ilustrações a seguir.

ILUSTRAÇÕES DA EDIÇÃO 2003

Pág. 10 e Pág. 12

As fotos, apesar de não apresentarem uma boa resolução por causa das dimensões gráficas permitidas pelo software usado na confecção dessa Cartilha, ainda assim, permitem a percepção das semelhanças, diferenças e transformações operadas na paisagem urbana, favorecendo a identificação dos monumentos em seus detalhes arquitetônicos e estilísticos. Segundo o relato de Jussara Bioca, sobre esse assunto:

As imagens da própria cartilha ajudam a assimilação e o entendimento de que uma edificação histórica, um prédio (vamos usar um vocabulário aqui...) “velho” – tem história a contar, alguma coisa aconteceu ali! Quando foi construído? Ele pertence aquele espaço em que está inserido? Então tudo isso, uma simples imagem ajuda, mesmo que ele não seja alfabetizado! Ele olha aquela figura, aquela foto, aquele desenho, ele vai entender. Aquilo tem outro tempo.

Esse poder de comunicação da “imagem” está amplamente explorado no layout do Cartaz 62 de divulgação da Cartilha do Patrimônio (2003), como apelo e incentivo à sua aquisição pelas Escolas. Com respaldo em Ciavatta e Alves (2004, p.10-14), as imagens projetadas na Cartilha do Patrimônio (2003) representam o espaço físico do objeto em estudo - o Centro Histórico de João Pessoa, permitindo ao observador sua interpretação no conjunto das relações presentes no local e no tempo de sua produção, possibilitando a construção de uma intertextualidade entre as fontes iconográficas e as fontes escritas. O que reforça o relato da depoente Jussara Bioca sobre o poder de comunicação dessas imagens 63.

Destacam-se nas cartilhas as tendências atuais em relação ao crescimento da

consciência sobre o patrimônio cultural. Convém ressaltar que suas indicações

colocam-se como desafios para os educadores ao trabalharem a temática a partir da sistematização de conhecimentos da Educação Básica para o Ensino Fundamental e Médio. Entre essas tendências podem ser assinaladas as seguintes:

• Ampliação do termo patrimônio histórico para patrimônio cultural conforme estatui a Constituição Federal de 1988 em, seu Art. 216;

• Mudança da escala de noção de patrimônio da obra isolada para conjunto urbano, valorizando sua uniformidade e harmonia no espaço da cidade;

• Ampliação da noção de bens culturais, considerando o uso e a apropriação do conhecimento pela via indústria cultural com abertura para o desenvolvimento sustentável do patrimônio cultural.

A possibilidade de inserção de conhecimento específico relativo ao patrimônio cultural na educação formal ou não formal, capaz de contribuir para o desenvolvimento de reflexões para sua aplicabilidade como fonte primária de investigação, análise, reflexão e compreensão de determinado contexto espaço-temporal que no exemplo aqui destacado – a Cartilha do Patrimônio – demonstra preocupação em sua elaboração em relação ao ensino-aprendizagem. Sobre a aplicabilidade da cartilha como fonte de conhecimentos, o Prof. Edvaldo Lira, na condição de técnico de preservação, tece

62 Como pode ser observado no Anexo “Q”.

63 Pelos limites de tempo impostos para o desenvolvimento desta pesquisa e das opções que foram feitas

quanto ao recorte do objeto não se chegou a entrevistar os alunos envolvidos neste processo. Desta forma, sabe-se que uma pesquisa futura poderá abordar a questão da “força da imagem” contida na cartilha trazendo novos elementos para a reflexão aqui exposta.

algumas considerações em seus relatos que talvez possam ser entendidas como justificativa para a “saída” da Cartilha do recinto institucional para o educacional:

Acho que ela é de suma importância para a escola pública e também, acredito, eu que ela até deveria ser divulgada e defendida nos próprios órgãos públicos entre os funcionários públicos que fazem cursos na ESPEP, por exemplo. E, ah! Acredito, eu até nas universidades. A universidade pública do Estado deveria trabalhar com essa cartilha. Eu considero de fundamental importância para que as pessoas conheçam, possam vir a conhecer o patrimônio de suas cidades ou de seu Estado.

A Cartilha do IPHAEP pode ser considerada como suporte material produzido para auxiliar a inserção da educação patrimonial em sala de aula, no ensino fundamental e médio, a partir da interatividade dos educandos e educadores com o patrimônio local para a construção de um conhecimento institucionalizado. Seu objetivo é difundir noções de valorização, conservação e preservação do patrimônio local para toda a comunidade, através do processo de inclusão de tal conhecimento no contexto da escola e no cotidiano dos alunos e destes para a comunidade, estimulando-a a dar continuidade ao programa desenvolvido pelo Instituto.

Esta proposta de implantação da educação patrimonial procurou abordar os bens culturais locais em seu contexto sócio-cultural como estratégia do ensino- aprendizagem, tendo como experiência modelo na Paraíba, a “Cartilha do Patrimônio:

Centro Histórico da Cidade de João Pessoa”. Integrando educando e educador como

sujeitos nesse processo pretende alcançar uma perfeita aplicação metodológica. Por que a Educação Patrimonial não deveria ser abordada não apenas como atividade paralela para as comunidades, como por exemplo, a aplicação de projetos para implantação de museus, arquivos ou bibliotecas locais, mas atentar para a produção de um conhecimento científico capaz de impulsioná-la à criação de uma identidade coletiva ou individual, a partir da valorização de seus patrimônios locais?

Essa experiência de educação patrimonial na Paraíba pode ser considerada uma proposta inaugural de se levar à sala de aula conhecimentos sobre o patrimônio e como preservá-lo, utilizando o potencial do patrimônio histórico-cultural e ambiental da cidade de João Pessoa. Deve despertar na comunidade, através dos educandos da rede estadual de ensino, a valorização de seus traços culturais, importantes para a construção de sua identidade e de sua cidadania. Deve, ainda, auxiliar no entendimento de que o patrimônio é historicamente construído e inclui a herança cultural de cada povo, os

bens culturais produzidos em cada tempo histórico, não só pelos grupos hegemônicos, e os bens culturais visíveis e invisíveis, tais como os falares, o conhecimento, a documentação e o artesanato gerado pelos grupos populares.

Partindo-se das possibilidades para o desenvolvimento do ensino de história e da pesquisa do ensino de história, procura-se compreender o que o mundo escolar poderia conquistar com a inserção da educação patrimonial como metodologia e, a longo prazo, quem sabe até a sua inclusão nos currículos escolares do ensino fundamental e médio. Essas perspectivas, configuradas por meio do diálogo e utilização de conceitos e referências teóricas da História, como Memória e Ensino de História, procuram ressaltar as inter-relações dessas áreas e a Educação Patrimonial como aporte teórico capaz de subsidiar a inclusão desta metodologia na área do ensino e da pesquisa do Ensino de História. Esta inclusão se efetivaria sob a forma de educação formal e/ou

educação não formal apoiada no contexto da transdisciplinaridade.

A partir desse raciocínio é possível refletir sobre as relações entre Memória, Ensino de História e Educação Patrimonial, como também, a respeito da possibilidade de ser a Educação Patrimonial considerada como Educação Não Formal para o Ensino de História. Desta forma se poderia sonhar um novo sonho – a inserção ou inclusão dessa metodologia nos currículos escolares da rede de ensino estadual/ local, nos níveis fundamental e médio.

O patrimônio se constitui a partir da atribuição, pelos homens, em suas complexas relações sociais, de valores, funções, significados e sentidos aos objetos materiais ou imateriais. O patrimônio agrega, portanto, as dimensões política, econômica e social, devendo-se compreendê-lo como espaço discursivo, sujeito aos mais diferentes usos e submetido aos mais diferentes interesses. Esta concepção direcionou a nossa análise do contexto, do conteúdo e da publicação da Cartilha do Patrimônio a partir dos seguintes questionamentos: Quais as formas de poder identificadas através dos discursos presentes no conteúdo das cartilhas? Qual a idéia de patrimônio construída pelas cartilhas? De que maneira a linguagem utilizada na cartilha deixa transparecer a intenção de expressar as relações de poder?

Respaldada em fundamentação teórica defendida por Mário Chagas (2002), esta pesquisa procurou articular o debate teórico entre os conceitos cultura, patrimônio e

memória e as especificidades dos processos de institucionalização que envolvem estes conceitos. Os três termos encontram-se presentes num campo comum de pertencimento às diversas instituições culturais (arquivos, bibliotecas, casas de culturas, centros de documentação, centros culturais, museus, etc.). Há um ponto de unidade conceitual entre as noções Cultura, Patrimônio e Memória, por sua vez interligadas a outras duas: a de poder e a de documento, que concorrem para o equilíbrio entre elas.

Neste raciocínio, é possível considerar que a ação preservacionista no campo dos patrimônios material e imaterial contribui para a constituição de identidades culturais articuladas com a soberania e a autodeterminação. Essa ação é sempre seletiva e social, e está a serviço de determinados sujeitos, ocorrendo como um ato de vontade e/ou como um ato de poder.

Segundo Chagas,

Em termos práticos, não há como separar a preservação e a memória, do exercício do poder. Onde essas ações estão presentes, está presente o Poder. Reconhecer essa inseparabilidade entre Memória e poder, entre Preservação e Poder, implica a aceitação de um terreno litigioso – que implica também a consciência de que o poder não é apenas repressor e castrador, é também semeador e promotor de memórias e esquecimentos, de preservações e destruições (CHAGAS, 2002, p.18).

Essa visão induz a que qualquer pesquisador interessado em conhecer o “objeto da ação preservacionista” seja remetido à noção de patrimônio cultural, como “um conjunto determinado de bens tangíveis, intangíveis e naturais, envolvendo saberes e práticas sociais a que se atribui determinados valores e desejos de transmissão de um tempo para outro, ou de uma geração para outra”, conforme Chagas (2002, p.19). Esse enfoque direciona a uma reflexão crítica acerca do patrimônio,

[...] como um terreno em construção, fruto de seleção (eleição) e campo de combate, uma vez que todo projeto de preservação patrimonial, resulta do exercício do poder, [...] muitas vezes a sua justificativa seja apresentada em nome do perigo de destruição ou de hipotéticos valores que devemos acatar e reconhecer [...] (CHAGAS, 2002, p.26).

Faz-se necessário, portanto, lembrar que no processo seletivo de eleger e determinar o valor de caráter simbólico para os bens histórico-culturais integrantes do patrimônio cultural ocorrem exclusões/inclusões, construção de memória e identidade com o passado. Essas questões, por sua vez, geram dúvidas e contradições,

desencadeadoras de tensões e conflitos, que estão sempre a permear o campo do patrimônio. Talvez as tensões aconteçam sobretudo pela influência de uma geração que tinha como meta concentrar o poder, legitimando apenas a legislação gerada na esfera federal, quando da própria criação do SPHAN sob a égide de um ideário político unificador.

A noção de memória vista como prática social, como espaço de lutas de poder, como elemento fundante da formação da identidade dos grupos e, portanto, constitutiva de identidades coletivas, conforme defende Le Goff (1996), é considerada como instrumento e objeto de poder.

O campo do patrimônio é polêmico e conflituoso porque nele “emergem tensões e contradições da vida social” intensificadas por “disputas pelo controle do poder e pela gestão das riquezas coletivas” mantidas pela tradição sob a guarda “das instituições, leis, decretos, discursos, saberes e práticas restritas à esfera estatal” (NIGRO, 2005, p.170).