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2. HISTÓRICO E ESTRATÉGIA DA FARMÁCIA POPULAR

2.5 Relações entre os atores-chave do Programa

O estudo mostra que a questão do acesso aos medicamentos à população brasileira, incluindo o caso da Farmácia Popular, esbarra na questão estrutural do segmento industrial farmacêutico que tem a sua estratégia baseada na inovação, com investimentos elevados em Pesquisa & Desenvolvimento para a obtenção de retorno financeiro mediante o regime de

patentes, que garante às indústrias farmacêuticas de medicamentos de referência um monopólio de mercado enquanto durarem as patentes. Esta questão impacta no acesso aos medicamentos de referência em razão dos preços serem geralmente elevados e de difícil acesso pela população, principalmente pela classe popular. Os próprios medicamentos genéricos, que embora sejam mais baratos que os de referência, apesar de não terem investimentos em P&D, têm investimentos elevados em Marketing para o alcance do seu público consumidor, através de atividades de Propaganda junto à classe médica, prescritora dos medicamentos. Estes gastos são repassados aos consumidores nos preços, o que também acaba dificultando o seu acesso.

Considerando-se que uma parcela importante da população não obtém os medicamentos no mercado regular, mesmo sendo genéricos, é importante que o Estado garanta este acesso através de programas de assistência farmacêutica como a provisão pública nas farmácias básicas do SUS, para a sua dispensação gratuita, e o subsídio aos medicamentos retirados no Programa Farmácia Popular, através do sistema de copagamento, e também gratuitamente, para os tratamentos considerados prioritários como diabetes, hipertensão e asma; para estes últimos medicamentos, a gratuidade oferecida pelo Programa Farmácia Popular é importante, enquanto as ineficiências na provisão pública de medicamentos nas unidades do SUS não forem resolvidas.

Com base na Constituição de 1988, faz-se necessária para a garantia deste direito à população, uma atuação mais eficaz do Estado na criação de políticas públicas voltadas a promoção de um Estado de bem-estar social no Brasil, o que inclui a provisão de medicamentos à população, principalmente através dos serviços de assistência farmacêutica do SUS, sendo este serviço complementado por outros programas, como é o caso da Farmácia Popular, e, atuando também como regulador do setor farmacêutico, para garantir qualidade e preços mais acessíveis pela população, tanto para a sua obtenção no mercado regular como através dos programas de acesso do governo.

A criação do SUS em 1988 foi, portanto, o marco mais importante no país para o acesso aos medicamentos pela população, e, mesmo apresentando deficiências na sua provisão pública, antes de sua criação, a população contava essencialmente com a provisão dos medicamentos no mercado regular mediante seu próprio custeio, e o governo atuava, apenas pontualmente, em situações de emergência, como em epidemias no país.

Antes do SUS, a ausência de garantia de uma provisão pública de medicamentos ao alcance da população, trazia uma situação de iniquidade, em que apenas o segmento de maior poder aquisitivo podia obter os remédios para os tratamentos prescritos.

A função de regulador do setor farmacêutico tem se mostrado importante através da definição de leis que protegem os cidadãos no seu direito ao acesso aos medicamentos com qualidade, e, garantem às indústrias farmacêuticas de medicamentos de referência o seu direito ao retorno financeiro pelos investimentos feitos em P&D, para a inovação em seus produtos.

A Lei de patentes 9.279 foi criada em 1996 para a proteção da inovação na indústria farmacêutica e da saúde dos consumidores. Antes desta lei, estes não tinham a garantia da eficácia e segurança dos medicamentos pela ausência de mecanismos, como a realização de testes clínicos, exigidos para a aprovação dos registros de novos medicamentos, que oferecem maior segurança aos pacientes quanto aos efeitos adversos à sua saúde e à eficácia nos tratamentos. Os medicamentos eram comercializados como produtos “similares”, sendo geralmente produtos-cópia de medicamentos sob o regime de patentes no exterior, que não ofereciam nenhuma garantia quanto a sua eficácia e segurança aos consumidores.

Além dos investimentos em P&D, as indústrias farmacêuticas de medicamentos de marca necessitam investir em Propaganda e Marketing para conquistarem a imagem de melhor qualidade de seus produtos junto à classe médica, prescritora dos medicamentos, e, estima-se que esse investimento represente o dobro dos investimentos realizados em P&D, encarecendo ainda mais esses produtos. Para coibir os abusos e práticas não éticas pelas indústrias farmacêuticas, na sua influência junto à classe médica, foi criada no mesmo ano da criação da Lei de patentes de 1996, a Lei 9.294 para limitar as ações de propaganda da indústria farmacêutica.

Com o objetivo de regular e fiscalizar o setor farmacêutico, foi criada em 1998 a Anvisa pela Lei 9.782, garantindo aos consumidores a qualidade dos produtos através do cumprimento das normas para a produção e comercialização dos medicamentos prescritos.

A Lei 9.787 dos genéricos, criada em 1999, teve grande importância no acesso aos medicamentos, proporcionando medicamentos de qualidade a preços mais baixos que os de referência para a sua aquisição no mercado regular e através dos programas de governo, como é o caso da Farmácia Popular. Existe um conflito de interesses entre as indústrias farmacêuticas fabricantes de produtos de referência e as fabricantes de genéricos, pois os genéricos sendo mais baratos, acabam tendo a preferência nos programas de acesso do governo, como acontece no Programa Farmácia Popular.

A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos - CMED foi criada em 2003 com base na Lei 10.742, para o estabelecimento de regras de controle de preços praticados pelos fabricantes (preços de fábrica) e pelas farmácias aos consumidores (preço máximo ao consumidor); esta lei contribuiu para que a população tenha acesso aos medicamentos a preços

mais acessíveis no mercado regular e também através de programas de governo, como é o caso da Farmácia Popular, no sistema de copagamento, em que o governo subsidia parte do preço e o consumidor paga a sua diferença.

O Estado vem atuando, portanto, como regulador do setor privado farmacêutico e como provedor de medicamentos, nas unidades de saúde do SUS e na rede própria do Programa Farmácia Popular e através da integração com a iniciativa privada, como é o caso do programa “Aqui tem Farmácia Popular”, com gratuidade ou parcialmente, no sistema de copagamento, tendo como dever, garantir o direito à saúde integral da população, o que inclui o acesso aos medicamentos, conforme previsto na Constituição de 1988.

Além do seu papel de regulador e provedor dos medicamentos, o Estado vem adotar no Programa Farmácia Popular uma postura mais intervencionista no setor farmacêutico, uma vez que estabelece, para toda a lista do Programa, os parâmetros em termos de valores de negociação entre as farmácias particulares e seus fornecedores através dos valores de referência estabelecidos pelo Ministério da Saúde para ressarcimento dos medicamentos comercializados no Programa às farmácias credenciadas. No caso dos medicamentos distribuídos no sistema de copagamento, existe uma maior flexibilidade nas negociações entre as farmácias particulares e as indústrias farmacêuticas e distribuidores, porém, para aqueles distribuídos com gratuidade, os valores de referência estabelecidos pelo governo acabam “engessando” as negociações com os fornecedores, e, as indústrias são forçadas a concederem descontos muito elevados para que seus medicamentos possam estar presentes nas farmácias.

Além destes valores de referência serem baixos e não estarem sendo corrigidos anualmente, os impostos sobre os medicamentos são crescentes, pois incidem sobre o PMC, que tem em geral reajustes anuais. Essa falta de atenção do governo a este aspecto do Programa coloca em risco a sua continuidade e adesão por parte do segmento farmacêutico, e, principalmente pelas indústrias farmacêuticas, inclusive os fabricantes de genéricos que tem maior participação no Programa, em razão de seus preços serem mais baixos, proporcionando maior rentabilidade às farmácias participantes.

O Programa, para ter a adesão das farmácias particulares e das indústrias farmacêuticas, necessita ser atrativo em termos financeiros, então o governo deve realizar uma revisão dos valores de referência para que estes sejam corrigidos ao longo dos anos e não comprometam a margem de lucro de seus participantes. Também se faz necessário rever a carga tributária que incide sobre os medicamentos que é muito alta no Brasil, girando em torno de 33% sobre os preços, enquanto que a média em outros países é de 6%.

O estudo vem, portanto, desnudar as relações entre os “grupos de interesse” no setor farmacêutico do Programa Farmácia Popular, abrangendo: as indústrias farmacêuticas de medicamentos de referencia e de genéricos; os canais de distribuição, o que inclui os distribuidores, farmácias da rede própria do governo e rede de farmácias particulares; o Ministério da Saúde, gestor do Programa; a Fiocruz, gestora das farmácias do governo e em parceria com os estados e municípios; a Anvisa, órgão regulador e fiscalizador do setor; a classe médica prescritora dos medicamentos; e, por fim, os pacientes que buscam o acesso aos medicamentos nas farmácias populares.

Neste contexto de “conflitos de interesses” é muito importante que o Estado não atue com “parcialidade” nos interesses específicos destes grupos, como por exemplo, o favoritismo na autorização de novos registros de produtos para indústrias farmacêuticas pela Anvisa; escolha de fornecedores de medicamentos para a provisão pública baseada em práticas não éticas e falta de atenção ao aspecto “economicidade” na alocação dos recursos públicos entre os programas de governo para o acesso aos medicamentos no Brasil, conforme previsto pela Constituição de 1988. O Programa Farmácia Popular, faz parte de uma política social na área de saúde importante, numa proposta de Estado de bem-estar social, em que a assistência farmacêutica pública vem amenizar os efeitos negativos da má distribuição de renda inerente a uma sociedade de regime capitalista. Numa social-democracia, o Estado atua como regulador dos mercados para evitar, por exemplo, abusos de poder do capital. O Programa Farmácia Popular representa, portanto, mais uma alternativa de acesso aos medicamentos e um mecanismo redistributivo de renda, aliviando o orçamento das famílias nas despesas, e, principalmente, das famílias das classes populares que têm seu atendimento médico feito na rede particular de saúde, mas encontram dificuldades em adquirir seus medicamentos no mercado regular, em razão do preço elevado destes produtos.

As políticas públicas implantadas para a proteção da propriedade industrial das indústrias farmacêuticas, a lei da propaganda da indústria farmacêutica, a criação da Anvisa, a lei dos genéricos e a lei para a criação da CMED para o controle de preços destes produtos, tiveram importância para melhorar o acesso da população aos medicamentos com qualidade e a preços mais acessíveis.

O Estado tem, por sua vez, atuado na proposta de uma social-democracia, como regulador do funcionamento do setor-privado farmacêutico, e, o Programa Farmácia Popular tem se pautado na teoria do bem-estar social, atenuando os efeitos distributivos do funcionamento do mercado brasileiro de regime capitalista.

O Programa Farmácia Popular foi implantado no governo do então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva que foi caracterizado por uma expansão de programas sociais inclusivos das camadas populares, entre eles o Programa Farmácia Popular, buscando reduzir a desigualdade social gerada pela sociedade capitalista no Brasil. A partir de então, nota-se também um perfil do Estado mais intervencionista nos mercados, como a regulação dos preços dos medicamentos e determinação de valores de referência para ressarcimanrto das farmácias particulares, estabelecendo parâmetros para a sua negociação com os fornecedores para a obtenção de descontos, viabilizando a comercialização dos produtos no Programa nas farmácias.

De acordo com Przeworski (1995), o Estado na social-democracia acaba abandonando a proposta de estatização da produção industrial, abraçando apenas os setores não rentáveis e não atrativos para a iniciativa privada, criando uma situação em que o setor publico é tristemente conhecido pela sua ineficiência, segundo critérios capitalistas, resultando num sério golpe contra a expansão do Estado no setor produtivo. Infelizmente essa ineficiência do Estado se apresenta também em outros setores, como o de serviços de assistência farmacêutica à população, sendo esta a razão pela qual o governo vem optar pela estratégia de crescimento baseada na integração com a iniciativa privada para a provisão de medicamentos à população no Programa Farmácia Popular, sendo este Programa muito mais um mecanismo criado pelo governo para “cobrir” as ineficiências do Estado no serviço de assistência farmacêutica nas farmácias básicas do SUS, do que, de fato, proporcionar uma alternativa complementar ao SUS, ampliando o acesso a mais pessoas e regiões do Brasil.