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CAPÍTULO II: O CONCEITO E A TEORIA

2.3. Uma sociedade humana?

2.3.1. Relações humanas e sociedade civil internacional

Robert Jackson (2000)75 pretendeu em sua obra humanizar a sociedade internacional retirando o foco do Estado e trazendo-o para as relações entre os indivíduos que agem em nome dele (statespeople) nas relações internacionais. Na sua visão, a política é realizada por indivíduos e é uma atividade tipicamente humana que envolve a adoção de comportamentos éticos cuja justificação é necessária. Contrapondo-se a algumas correntes cientificistas da disciplina, Jackson afirma que “people are not automated or mechanical things. People are human beings that make choices, and whose policies and actions must be justified to other people. Statespeople are human beings too” (p. 08). Na sua visão, a disciplina de RI deveria ser chamada de relações humanas internacionais, já que é entre seres humanos que se dá toda a interação neste campo. Sobre o tema, discorre:

We cannot speak intelligibly of states or states systems as if they were entities that exist apart from people – like planets travelling through space along gravitational paths determined by physical forces of nature. World politics is not a natural world; it is a world created and inhabited by people. States, like houses, are human constructs: they are built on a piece of land to provide a home for certain people who become the resident population. The society of states is also a human arrangement: it

is organized and operated by people, the most important of whom are representatives and agents of sovereign states (p. 29).

Esta sociedade consiste, ainda segundo Jackson, em padrões de conduta que estas pessoas (statespeople) em particular aceitaram adotar entre elas. O autor critica fortemente a noção segundo a qual os Estados agiriam independentemente da vontade de pessoas, como se existisse uma sociedade de Estados, e não de pessoas:

They speak of International society as a “society of states”, not of people, but that shorthand expression should not mislead us into thinking that the society of states is something separate from people or that people are not involved in that society. All societies involve people. States are not things or objects or entities in themselves. States cannot speak or listen or therefore communicate on their own. They cannot act on their own. They cannot exist on their own. States are political associations that are constituted and sustained by people in every respect (p. 32).

Apesar destas afirmações, Jackson admite - e ao longo da obra é fácil perceber – que a maior parte de sua construção teórica é devedora dos trabalhos da Escola Inglesa e de Bull em particular. Sua intenção é avançar onde os ingleses não avançaram, segundo ele de três maneiras diferentes: 1) investigando as relações internacionais como um campo das relações humanas, o que não teria sido feito explicitamente por Bull; 2) focando-se na ética do estadista; e 3) investigando acontecimentos ocorridos após a queda do muro de Berlim, que Bull não presenciou (2000, p. 62). Vê-se que o diálogo de Jackson é com a Escola Inglesa, mas com a pretensão de transcendê-la em alguns aspectos.

A ênfase de Jackson no fato de as relações internacionais serem basicamente humanas se dá pela necessidade apontada por ele de se estudarem a ética, a moralidade, o respeito à norma na sociedade internacional. O Estado, nesse sentido, não possui ética; só seres humanos possuem noções de ética e de moralidade. O fato de se ter uma disciplina que trata os Estados de modo tão central leva ao resultado de se anular a possibilidade de comportamentos éticos no cenário internacional. Daí as visões tão difundidas de uma política de poder que não tem qualquer consideração por questionamentos de ordem moral. Quando se admite que as relações entre Estados são relações humanas entre pessoas que agem em nome de suas comunidades políticas, a ética entra em cena.

O mesmo vale para idéias e valores. Estados não têm idéias e valores. Estes estão na mente das pessoas, inclusive na das pessoas que agem em nome do Estado. Mas como na parte mais tradicional da disciplina o Estado é visto como um ator que age de forma mecânica a depender de fatores muitas vezes externos a ele – estrutura, balança de poder etc – as idéias e os valores são rejeitados, como fatores sem importância na sua atuação. Há, por isso, uma marginalização das pesquisas de cunho normativo na disciplina. Se, ao contrário, as pessoas são recolocadas no seu devido lugar de agentes das relações internacionais, o quadro muda radicalmente:

That means that the ideas people have about their relations are crucially important to understand. That applies as much to international relations as to any other sphere of human relations. It also means that interests, concerns, intentions, ambitions, calculations, miscalculations, desires, beliefs, hopes, fears, confidence, caution, doubt, uncertainty, confusion, and related dispositions and inclinations must be at the centre of normative inquiry into world politics because they are part and parcel of human activity in that sphere. As it happens, these are among the most significant and enduring features of international relations which go a long way toward characterizing of the subject (p. 72).

As colocações de Jackson não devem levar à crença de que ele se distanciou sobremaneira do paradigma inglês. O autor defende a existência de um “consenso global” (global covenant) que corresponde, em grandes linhas, à visão de Bull sobre o que seja a sociedade internacional. Este consenso diz respeito à existência de uma sociedade pluralista de Estados, que aceitam suas diferenças culturais, e que respeitam alguns princípios mínimos de coexistência. Estes princípios podem ser descritos como aqueles elencados pela OSCE no “decálogo de Helsinki”, quais sejam: 1) igualdade soberana; 2) proibição do uso da força; 3) inviolabilidade das fronteiras; 4) integridade territorial dos Estados; 5) resolução pacífica das disputas; 6) não-intervenção nos assuntos internos dos Estados; 7) respeito pelos direitos humanos; 8) direitos iguais de autodeterminação dos povos; 9) cooperação entre os Estados; e 10) cumprimento de boa-fé das obrigações, na ótica do direito internacional (2000, p. 17). Segundo Jackson, esse consenso é uma resposta à realidade plural do mundo, onde vivem povos diferentes, e ele existe a despeito da existência de uma cultura ou civilização comuns (p. 23).

A visão do autor, nesse sentido, se assemelha bastante à própria visão de Bull. A diferença é que Jackson trouxe para o nível individual, para o nível das relações humanas, o que na abordagem tradicional da EI se dava entre os Estados. Mas como Estados podem compartilhar sentimentos e valores se não são humanos?76 Como podem estar “conscientes” de sua ligação? Pode parecer, a princípio, que a consideração é insignificante, já que o resultado – a existência de uma sociedade de Estados – permanece o mesmo. Mas o enfoque nas relações humanas internacionais produz alguns efeitos “colaterais”, por assim dizer. É que ao se aceitarem as relações humanas como foco das RI, o Estado, de algum modo, perde em rigidez. Consequentemente, a sociedade internacional se torna mais fluída, admitindo em seu seio outros atores. Esta conclusão não é uma inferência da obra de Jackson. O próprio autor admite que: “International society also consists of International organizations (IGOs), non- governmental organizations (NGOs) and transnational networks, and individuals human beings seen as composing a world society” (p. 105).

Jackson não está a afirmar, ressalte-se, que indivíduos e organizações não- governamentais superam, substituem ou sequer ameaçam o Estado – o velho problema da mensuração. A afirmação é a de que, ao contrário do que se diz tradicionalmente na Escola Inglesa, indivíduos e organizações da sociedade civil compõem, integram o conceito de sociedade internacional. É necessário enfatizar que quando o autor está tratando das relações entre Estados, está se referindo basicamente ao que denominou de “pessoas do Estado” (statespeople), às relações entre pessoas que representam Estados diferentes. Isto é um aspecto da questão.

Mas a afirmação anterior não se refere a estas pessoas, e sim a integrantes da sociedade mundial. A sociedade internacional é vista como composta de elementos sociais que não dizem respeito tão somente às relações que ocorrem entre as pessoas que representam o Estado. Estas relações são essencialmente humanas e se fortalecem à medida que crescem o contato e a interação sociais:

International society ought to be seen as a continuum of social relations, from mere awareness and very limited and intermittent human contact and communication at one extreme, to extensive and continuous human interaction and dialogue through an

76 Vale a pena citar trecho de obra de Charles Manning sobre o assunto: “When what we wish to explain to

ourselves is the relatively frictionless co-existence of individuals in a smoothly flourishing society, we know how useful it is to make investigation into that body of shared assumptions, or belief system, in terms of which they in common face their common problems. When, however, it is the co-existence of states that we would explain, we find a difference; it is idle to ask what beliefs are cherished by the states: for states, as such, have none

elaborate institutional framework at the other extreme. The closer international relations come to the latter pole, the more elaborate will international society be (p. 112).

Em face da visão tradicional inglesa, a menção de Jackson aos indivíduos representa uma inovação substancial. Mas parece corresponder a uma inclinação natural das abordagens mais atuais na disciplina. O contexto internacional tem dado sinais claros de mudança, sobretudo no que diz respeito ao aumento das interações entre indivíduos e movimentos sociais que se dão entre os diferentes Estados que compõem o cenário político. Na terceira seção do primeiro capítulo foram mencionadas as análises que tratam do tema. Estas modificações impõem um desafio à academia e colocam em questão o conceito tradicional de sociedade de Estados.

A sociedade internacional evolui sob a influência dessas mudanças, que necessitam ser agregadas ao conceito. Aquela se tornou mais complexa e de difícil compreensão. Andrew Hurrell, este um integrante atual da Escola Inglesa77, pretendeu justamente enfrentar esta complexidade78, propondo uma visão de sociedade internacional que levasse em consideração muitas destas transformações sociais. Sua preocupação é a de saber quais os efeitos da globalização sobre a sociedade internacional, sendo que os desafios desta podem se resumir em três pontos: 1) como a sociedade internacional deve “capturar” quais os interesses comuns de seus membros; 2) como deve lidar com a desigualdade de poder; e 3) como deve mediar a diversidade cultural existente e os conflitos de valor inerentes à tal diversidade.

De modo geral, a sociedade internacional de Hurrell se mantem nos mesmos moldes da elaboração de Bull. A inovação do autor está em apontar os diversos traços de mudança que geram desafios ao esquema tradicional de funcionamento da SI. Entre elas, aponta para o surgimento de um sistema de governança que age e se constrói sob o Estado:

77 Nunca é demais lembrar o quanto é difícil enquadrar autores como pertencentes ou não à Escola. O caso de Hurrell é relativamente simples, uma vez que estuda os temas da Escola, é diretor do Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Oxford e foi aluno de Hedley Bull. O caso de Robert Jackson já não é tão simples: embora adote em grande medida as premissas da EI, é autor americano e leciona na Universidade de Boston. Como não há filiação “formal” à Escola, a inclusão e exclusão de autores se torna um exercício complexo e um tanto quanto subjetivo.

78“The immense complexity of the global system means that any such synthesis is bound to be partial and incomplete. And yet, especially at a time when disciplinary fragmentation has proceeded so far and when research within disciplines has become ever more specialized, the need for synthesis has grown” (HURREL, 2009, p. 20).

[...] Yes, the formal structure can still be viewed through statist lenses and related to

inter-state bodies. But what goes in and around those bodies becomes increasingly

hard to understand in terms of states, interstate bargaining, the formal delegation of authority, and state-based and consent-based conceptions of international law (2009, p. 97).

Este sistema ganha força nas decisões tomadas por tribunais internacionais, que geralmente são fundamentadas em jurisprudência e precedentes destas cortes; no crescimento de formas de regulamentação e administração transgovernamentais (comitês técnicos, comissões etc); e por meio de transgovernmental regulatory networks, que contribuem para o desenvolvimento, difusão e implementação de um cada vez maior número de normas, regras e regulamentos que vão desde supervisão bancária até políticas de antitruste e de saúde. Trabalhando com informação, estes networks criam, segundo o autor, normas e princípios, expandindo o que é decidido no nível formal interestatal. Costuma-se dar a estas normas de natureza mais técnica o nome de soft law. Os networks “penetram” a soberania, são informais, rápidos, flexíveis, normalmente “escondidos” do público (HURRELL, 2009, p. 98).

Além disso, os movimentos da sociedade civil também cresceram bastante nos últimos anos. A sociedade civil “transnacional” se refere, segundo Hurrell, a um domínio e espaço nos quais grupos intermediários auto-organizados e relativamente independentes, tanto de autoridades públicas quanto de atores econômicos privados, são capazes de tomar decisões coletivas na busca de seus interesses e valores, sendo que sua ação se dá entre as fronteiras dos Estados (2009, p. 100). O autor aponta para a crescente participação desse setor nos fóruns internacionais e para o crescimento exponencial das organizações não-governamentais internacionais. Hurrell afirma ser evidente que estas organizações, assim como movimentos sociais e coalizões transnacionais, têm um papel importante na mudança da estrutura da sociedade internacional. Isto se dá de quatro formas, basicamente: primeiro, no processo formal de criação de normas; segundo, no mais amplo processo social pelo qual novas normas emergem e “encontram seu caminho” na agenda internacional; terceiro, no funcionamento das instituições internacionais e no processo de implementação de suas decisões; e quarto, na participação direta desses setores nas atividades de governança (p. 101).

Apesar de apontar para o fortalecimento desses fenômenos, Hurrell não é conclusivo quanto ao seu “peso” no cenário internacional e tende a acreditar que o Estado se adapta continuamente para lidar com as novas facetas da realidade. O autor acredita que muito do que há de novo só existe porque o Estado permite sua existência: as diferentes formas de

governança dependeriam do Estado para sobreviverem (2009, p. 110). Além da sociedade civil, explora a força dos mercados e do que chamou de “estruturas de autoridade privada” (p. 101). Sua visão, como dito, tenta dar conta da crescente complexidade da sociedade internacional. Para ele, a ordem social não deve ser enxergada tão somente pelo prisma do Estado. O conceito de ordem social no pensamento ocidental, segundo Hurrell, tem sido estruturado na relação existente entre três domínios: o Estado, o mercado e a sociedade civil (p. 06).

E é no quadro da sociedade internacional que Hurrell observa essas mudanças e o papel desses setores. Assim como outros autores da Escola Inglesa, ele não trata a realidade internacional como se formasse um mero sistema, e isto por razões que elenca já no início de sua obra. Segundo ele, a realidade internacional não pode ser vista como unicamente material e deve-se atribuir importância às ideias, normas, regras e expectativas dos atores sociais que agem nela; embora as estruturas importem, não podem ser compreendidas fora do conhecimento e dos valores compartilhados entre os atores. Sua abordagem se baseia numa visão sobre o papel normativo que têm as ideias na prática política. Em suma, vê-se que o autor compartilha das premissas básicas da EI, sendo que sua maior contribuição é no sentido de enriquecer o conceito de SI, agregando a ele elementos que já não podem ser deixados de fora.

Se Hurrell conseguiu modificar o conceito79, é algo que se pode debater. Isto porque o autor chama a atenção para fenômenos recentes para os quais a disciplina já vem atentando hodiernamente, sem que faça reflexões conceituais acerca da sociedade internacional. É como se apontasse para mudanças que ocorrem dentro da SI sem, no entanto, ousar mudar a estrutura básica do próprio conceito. A pergunta crucial é se as mudanças na realidade não alteram automaticamente o conceito. Acredita-se nesse trabalho que sim, mesmo que os autores se neguem a tocar nas vigas mestres do edifício de Hedley Bull. Os movimentos de natureza eminentemente social, no quadro esquemático de Bull, provavelmente se enquadrariam no que ele denominou de sociedade mundial ou global, que serve como uma categoria residual na qual se pode “jogar” quase tudo que diga respeito a indivíduos e forças sociais.

79 Diga-se em sua defesa que em nenhum momento Hurrell afirma ser essa sua intenção. O fato é que, ao tratar de mudanças no seio da própria sociedade internacional, o conceito vê-se automaticamente alargado, modificado, ainda que não o tenha sido expressamente.

A sociedade internacional nesses autores permanece estatal, mas começa a mostrar uma face mais diversificada, que aceita a inclusão de outros atores em sua configuração. A tradição inglesa ganha em complexidade e, ironicamente, se torna cada vez menos inglesa. Para os conservadores, este fato poderia ser encarado com desconfiança, mas constitui um passo normal na cadência das descobertas científicas. O mundo continua se transformando, em velocidade cada vez maior. O que se discute hoje, amanhã já não terá relevância. Se os conceitos acadêmicos permanecerem os mesmos em face destas mudanças, tornar-se-ão peças de museu, conceitos mortos, sem qualquer relevância científica, sem qualquer utilidade para o analista. Seus conteúdos não terão, em face do mundo empírico, qualquer substrato de verdade.

Ao se agregarem ao estudo da sociedade internacional estas forças de natureza mais social, os autores aqui tratados, ainda que de modo involuntário, estão colocando em xeque a própria visão estado-centrada do mundo. Quando o conceito de sociedade incorpora estes fenômenos, não está perdendo nada. A própria noção de sociedade, em sua essência, envolve a interação de indivíduos e de forças sociais. Não é necessário ser sociólogo para enxergar a obviedade de tal afirmação. O mais estranho é, pelo contrário, que um conceito como o de sociedade tenha permanecido válido, tenha sido utilizado sem contestação durante tanto tempo, sem que qualquer elemento individual humano lhe dê sustentação. A seguir se discute o conceito sob este prisma mais individual.