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Relações métricas numa multiplicidade n-dimensional

3 GEOMETRIA DIFERENCIAL

3.2 A MULTIPLICIDADE DE RIEMANN

3.2.2 Relações métricas numa multiplicidade n-dimensional

As relações de medida em uma multiplicidade têm como fundamento a obra de Gauss,

Disquisitiones circa superficies curvas, como o próprio Riemann observa, e possuem o caráter geométrico.

Determinações de medidas requerem que a quantidade seja independente da posição, o que pode acontecer de vários modos. A hipótese que apresentamos primeiro, é que o comprimento da linha é independente da sua posição, e conseqüentemente, toda linha é medida por qualquer outra linha (RIEMANN, 1959, p.415).

Este método de medição “relativo” permite estabelecer apenas quanto uma linha é menor ou maior que outra dentro da mesma região medida, mas não seu comprimento exato. Esta é a segunda hipótese de Riemann, ou seja, da independência da linha com a posição.

Estabelecida a independência da linha com a posição, deve-se ter as seguintes restrições e suposições: 1) as razões entre as variações infinitesimais das várias coordenadas xi, (dxi /dxj), variam de forma contínua, ou seja, está considerando apenas curvas suaves, contínuas; 2) as linhas podem ser divididas em partes de modo que as razões entre os dxi são constantes; 3) o elemento de linha ds varia na mesma razão que as variações infinitesimais.

Com estas suposições, o elemento de linha pode ser escrito como uma função homogênea de 1º grau em dxi, já que varia linearmente com dxi, sendo que as constantes arbitrárias são funções contínuas das quantidades xi.

Para procurar os casos mais simples, procurarei primeiro uma expressão para multiplicidades de n-1 dimensões que são em todo lugar eqüidistantes da origem do elemento linear; ou seja, procurarei uma função contínua da posição cujos valores distinguem um do outro. Partindo da origem, esta deve crescer em todas as direções ou decrescer em todas as direções; eu assumo que ela cresce em todas as direções, e portanto tem um mínimo naquele ponto. Se, então, o primeiro e o segundo coeficientes diferenciais desta função são finitos, sua diferencial primeira deve se anular, e a segunda diferencial não pode se tornar negativa; eu assumo que ela é sempre positiva. Esta expressão diferencial de segunda ordem permanece constante quando ds permanece constante, e aumenta na razão dupla quando o dx, e portanto também ds, aumenta na mesma razão; ela deve ser portanto ds2 multiplicado por uma constante, e conseqüentemente ds é a raiz

quadrada de uma função de segunda ordem integral homogênea sempre positiva das quantidades dx, na qual os coeficientes são funções contínuas das quantidades x (RIEMANN, 1959, p. 416).

Para o caso mais simples, considere esferas concêntricas ao longo de s, com centro na origem do elemento de linha ds, e seja f uma função de posição cujos valores sempre aumentam em todas as direções e para a qual a origem é um ponto de mínimo. Assumindo que os coeficientes da primeira e segunda derivadas são finitos, então a primeira derivada se anulará na origem (ponto de mínimo) e a segunda será sempre positiva. A função, desenvolvida em torno da origem, fornece f=Cds2, onde f é sempre positiva e C são funções contínuas das quantidades x.

Embora Riemann não escreva a forma geral do elemento de linha, podemos tirar da análise que ele faz o seguinte: como f é sempre positiva, da suposição anterior entre ds e dx, encontramos que a expressão para o elemento de linha ds é da forma

,

dx

dx

g

ds

i j j i ij 2

=

∑∑

(3.13)

onde os gij=gji são funções das variáveis xi, utilizando linguagem atual.

A condição de que a derivada segunda não é negativa, permite estabelecer o elemento de linha para uma função de grau superior, desde que ela tenha um mínimo, como o caso da função de grau quatro:

O próximo caso na simplicidade incluiria aquelas multiplicidades nas quais o elemento de linha pode ser expresso como a raiz quarta de uma expressão diferencial quártica. A investigação deste tipo mais geral não requereria princípios diferentes, mas levaria um tempo considerável e traria pouca luz sobre a teoria do espaço, especialmente porque os resultados não podem ser expressos geometricamente (RIEMANN, 1959, p. 417).

Por se tratar de uma apresentação sem muitos cálculos, o raciocínio de Riemann é muitas vezes tido como “intuitivo” (PORTNOY, 1982, p. 4), mas se considerarmos que seu objetivo era encontrar uma definição para multiplicidade que dependesse apenas de “quantidades”, é compreensível que o caminho adotado seja através de suposições e construído direcionado para os resultados já conhecidos, como o elemento de linha de Gauss.

A seguir, Riemann considera o espaço tridimensional, em coordenadas retilíneas, para o qual a expressão para o elemento de linha é ds=

(∑

dx

)

2 , como sendo o caso mais simples e ao qual ele dá o nome de chato.

Para determinar a forma quadrática do elemento de linha, com coeficientes dependentes apenas das coordenadas intrínsecas da superfície curva, Gauss parametrizou a superfície curva35. A equação do elemento de linha para Gauss depende das derivadas parciais das coordenadas x,y,z em função do sistema de coordenadas p,q adotado sobre a superfície curva. O caminho adotado por Riemann para determinar a expressão do elemento de linha não utiliza uma relação entre as coordenadas da multiplicidade e coordenadas cartesianas no espaço especial. Utiliza apenas coordenadas quaisquer que definem a posição dos pontos, e que por serem em número igual ao número de dimensões da multiplicidade, podem ser consideradas como coordenadas intrínsecas.

Na seção seguinte, Riemann introduz coordenadas geodésicas normais e estabelece um triângulo geodésico que seria a generalização do triângulo usado por Gauss para n dimensões. A métrica, ds2, pode ser representada, em primeira aproximação, por

dx2 para valores

infinitesimais de x, mas existe um termo seguinte, que é uma função homogênea de segunda ordem de expressões do tipo xidxj-xjdxi . Dividindo esses termos de ordem superior, que são infinitesimais de quarta ordem, pelo quadrado da área do triângulo geodésico de vértices

(0,0,0,...), (x1,x2,x3,...),(dx1, dx2, dx3, ...) fornece uma quantidade finita (chamemos de Q). Essa quantidade Q depende das geodésicas escolhidas, portanto depende do ponto inicial e da direção formada, e se mantém constante se o triângulo for escolhido numa mesma superfície. Quando a multiplicidade é plana, Q é zero, pois o elemento de linha é reduzido a

dx2 , e portanto, Q fornece o quanto a multiplicidade está se distanciando de uma multiplicidade plana. Riemann vai estabelecer uma relação entre Q e a curvatura de Gauss seria Q

4 3       − , já que é determinada apenas com relação à esfera auxiliar.

A análise feita por Gauss parte de um triângulo e seu correspondente sobre a esfera auxiliar, obtendo a relação entre as áreas, o que apresenta uma semelhança distante com o que é feito por Riemann, pois este define uma multiplicidade apenas pelas relações de medida.

Riemann argumenta que em uma multiplicidade plana, as relações métricas são expressas por uma função diferencial de 2ª ordem, independentemente das variáveis escolhidas, o que mostra que localmente a multiplicidade pode ser tratada como um espaço euclidiano, onde as geodésicas são retas. A curvatura em um espaço euclidiano n-dimensional, como um caso especial de um espaço riemanniano de curvatura constante, é igual a zero em todos os pontos.

Na demonstração do triângulo, inicialmente é estabelecido que uma geodésica é completamente determinada a partir de sua direção inicial. Cada triângulo escolhido a partir de um determinado ponto pode ser considerado como pertencendo a uma superfície formada por geodésicas que passam por esse ponto. Para cada uma dessas superfícies pode-se encontrar uma curvatura característica. Riemann então estende o teorema de Gauss sobre mapeamento de superfícies, para o caso n-dimensional.

Na idéia de superfícies, junto com suas relações de medidas intrínsecas nas quais somente o comprimento das linhas sobre as superfícies é considerado, está sempre misturada com a posição de pontos que estão fora da superfície. Podemos, entretanto, abstrair das relações externas se considerarmos deformações tais que deixam inalterados os comprimentos das linhas, ou seja, se consideramos a superfície como revirada de qualquer modo sem se esticar, e tratarmos todas as superfícies assim relacionadas entre si como equivalentes. Então, por exemplo, qualquer superfície cônica ou cilíndrica é considerada como equivalente a um plano, uma vez que podem ser transformadas neste apenas dobrando, e assim as relações de medidas intrínsecas permanecem, e todos os teoremas sobre um plano- toda a planimetria – mantém sua validade. Por outro lado elas são totalmente diferentes da esfera, a qual não pode se transformar em um plano sem se esticar. (RIEMANN, 1959, p.419)

As relações métricas de um superfície bidimensional são caracterizadas pela curvatura total. Como interpretações geométricas dessas caracterizações, Riemann argumenta que a curvatura total, multiplicada pela área de um pequeno triângulo geodésico fornece o excesso esférico do mesmo, ou seja, a área do triângulo é proporcional ao excesso esférico. Este teorema nada mais é que o teorema de Gauss sobre o excesso esférico de um triângulo (GAUSS, 1827, seção 20) em uma superfície, generalizado para um espaço n-dimensional.

A curvatura definida por Riemann depende da localização do ponto onde a curvatura será determinada e da direção da superfície que contém o triângulo analisado nesse ponto. No caso de multiplicidades em que a curvatura é constante para todas as direções que a geodésica assume, as

relações métricas passam a depender apenas do elemento de linha, que é um invariante, e da curvatura, assumindo a expressão

,

dx

x

4

1

1

1

ds

2 2 2

α

+

=

(3.14)

onde α é o valor da curvatura (RIEMANN, 1959, p. 421)36. Um caso particular de multiplicidade com curvatura constante é aquele que possui curvatura total nula em todos os pontos e em todas as direções, ou seja, o espaço euclidiano. Riemann utiliza como ilustração dessas idéias a análise de superfícies curvas e indica que nas superfícies de curvatura constante as figuras podem girar e se deslocar sem deformação .

A idéia de figuras, ou corpos, se deslocando sobre uma superfície, tendo sua forma condicionada apenas à curvatura, independente das coordenadas, foi utilizada posteriormente por Helmholtz na teoria de grupos (SCRIMIERI, 1992, p. 129) e também nas tentativas de divulgação da geometria não-euclidiana, como faz Poincaré, e que detalharemos posteriormente.

Superfícies com curvatura positiva constante podem ser caracterizadas por uma esfera com raio R e com curvatura α=1/R2, o que é semelhante à expressão encontrada por Gauss no espaço euclidiano. A curvatura será maior quanto menor for o raio R da esfera que pode ser associada. Podem ser representados diferentes tipos de curvaturas por superfícies que sejam tangentes à esfera no equador, como na figura 3.12. Um cilindro apresenta curvatura nula. Um anel que tangencie a esfera no equador, e que é indicado pelos círculos tangentes, tem curvatura negativa nessa região. Um elipsóide que tangencie a esfera por dentro, e que esteja contido na esfera, teria uma curvatura positiva maior que a da esfera no ponto de tangência.

Figura 3.12: Em torno da esfera central, de curvatura positiva, é possível representar uma superfície com

curvatura nula (cilindro) e uma superfície com curvatura negativa (anel em torno do cilindro, cuja seções normais são os círculos externos ao cilindro).

36 A demonstração da expressão encontrada por Riemann pode ser obtida usando-se símbolos de Christoffel, como faz Scrimieri (1992, pp. 142-148). α αα α = 0 α αα α < 0 α α α α > 0

A distinção entre superfícies com curvatura positiva e aquelas com curvatura negativa é feita através do conceito de regiões de superfície. As regiões de superfície corresponderiam a partes da superfície que podem se deslocar pela superfície.

Se consideramos estas superfícies como locus in quo para regiões de superfícies se movendo nelas, assim como Espaço é o locus in quo para os corpos, as regiões de superfícies podem se mover em todas estas superfícies sem deformações37. As superfícies

com curvatura positiva podem sempre ser de tal modo construídas que regiões de superfícies podem ser movidas arbitrariamente sobre elas sem deformações [...] (RIEMANN, 1959, pp. 421-422).

Para exemplificar, considere uma região circular numa esfera: ela pode se mover ao longo de toda esfera sem que seu formato seja alterado. A diferenciação entre curvatura positiva e negativa de Riemann difere da de Gauss, uma vez que não leva em consideração a direção da normal e, portanto, não é uma propriedade intrínseca da superfície, mas que só pode ser observada externamente. Para uma superfície com curvatura nula haveria também uma independência quanto à direção, ou seja, a direção de um vetor tangente à região de superfície permaneceria a mesma ao longo de toda a superfície plana. No entanto, esta afirmação só pode ser considerada se tomamos como superfície de curvatura nula apenas o plano, já que em um cilindro ou em um cone a direção do vetor pode se alterar, dependendo da direção inicial adotada.

Considerando-se a independência do comprimento de uma linha com a posição e as demais relações métricas em uma multiplicidade, podemos estabelecer três condições para que uma multiplicidade riemanniana seja considerada euclidiana, infinitesimalmente:

1- A curvatura deve ser igual a zero em todos os pontos e em todas as direções, sendo que as propriedades métricas serão determinadas se a soma dos ângulos do triângulo é sempre igual a dois ângulos retos, ou seja vale o teorema de Pitágoras: o quadrado da distância entre dois pontos é uma forma quadrática das coordenadas relativas dos dois pontos.

2- Se a curvatura é constante em todo lugar, e as linhas são independentes da posição, as figuras podem se mover sem deformação, o que eqüivale a dizer que, se a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos, a soma dos ângulos de qualquer outro triângulo também será igual a dois ângulos retos.

3- Se além do comprimento da linha ser independente da posição e da direção, ou seja, ao mover um objeto numa multiplicidade, o comprimento não se altera; também a direção seja independente da posição, ou seja em qualquer lugar da multiplicidade a direção é a mesma, então a posição pode ser expressa por três unidades independentes38.

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