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2. Estrutura social e formas sociais: passando da ontologia filosófica à ontologia científica

2.5. Relações e posições sociais

Até aqui apresentamos as regras sociais e seus sistemas ou instituições e, dentre os diversos tipos, enfatizamos as instituições intersubjetivas, como os modelos mentais socialmente compartilhados e as convenções. Nesta seção, nosso objeto de estudo é o conceito de “relação social”, presente nas tradições do RC (Porpora), do RCE (Lawson, Lewis e Runde) e da Sociologia Econômica (Granovetter, Doerr e Powell). Argumentamos que as relações sociais são ontologicamente distintas das regras sociais (ou de seus sistemas), apesar de internamente relacionadas. Este resultado sugere que as relações sociais não podem ser inteiramente compreendidas se tratadas em termos de regras sociais ou instituições, isto é, como resultado destas últimas. É verdade que é possível formar relações sociais por meio de instituições, inclusive através de convenções, mas isso não ocorre em todos os casos e a condição de possibilidade destas situações é que existam relações sociais prévias que habilitem tais capacidades institucionais. É fundamental distinguirmos as relações sociais entre impessoais e interpessoais. Enquanto a primeira é internamente relacionada a posições sociais, a segunda é internamente relacionada aos agentes individuais ou coletivos envolvidos. Por fim, defendemos que ambas as compreensões de relações são importantes entidades sociais complementares que

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englobam fatores materiais, tais como a distribuição de interesses e recursos, indispensáveis para a sociedade e para a economia.

A literatura econômica envolve, ainda que implicitamente na maioria dos casos, a existência de relações sociais. Até mesmo em modelos econômicos em que a realidade social e econômica é bastante simplificada podemos encontrar posições sociais pressupostas, como “compradores” e “vendedores”, que refletem relações sociais como “troca de bens e serviços”37.

Além disso, existem diversos fenômenos relacionais que são importantes para a compreensão do sistema econômico, tais como a divisão do trabalho, a interdependência ou concorrência entre firmas e indústrias e a relação entre acionistas e gerentes ou entre capitalistas e trabalhadores. Esta situação parece refletir o fato de que as relações sociais são gerais e recorrentes dentro de qualquer sociedade.

No capítulo anterior, mostramos que a ontologia filosófica do RCE enfatiza a ubiquidade das regras sociais e das relações sociais. Enquanto a primeira tem o poder causal nas formas de direitos e obrigações, a segunda exerce seu poder causal através da distribuição destes recursos podendo, inclusive, se tornar hábitos sociais38. Dessa forma, e através do critério causal de

existência, faz sentido considerarmos estas entidades sociais como ontologicamente distintas. No entanto, assim como ampliamos nosso entendimento das regras sociais, vendo que formam instituições - inclusive intersubjetivas como as convenções -, podemos, igualmente, expandir nossa compreensão das relações sociais.

Primeiramente, é importante distinguirmos as relações sociais entre impessoais e interpessoais ou intersubjetivas. Obviamente ambas as relações precisam das atividades e das representações cognitivas das pessoas para se reproduzir, mas a primeira não depende dos indivíduos particulares que ocupam as posições sociais envolvidas, em um momento particular do tempo, e independe também do reconhecimento e da aceitação explícita das pessoas envolvidas.

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A organização da provisão econômica na forma de troca no mercado não é de forma alguma evidente, como se parece pressupor em diversos modelos econômicos. Mesmo em sociedades capitalistas, temos diferentes relações sociais como formas alternativas de provisão econômica, além da troca, tais como a provisão através do Estado ou outro agente central (o que Polanyi denominou de “redistribuição”) e a provisão de acordo com certas normas sociais de reciprocidade (Polanyi 1957).

38 É possível notarmos que as relações sociais podem se tornar habituais. Por exemplo, ao explicar o processo em que

a mercadoria ouro se torna dinheiro, Marx argumenta que isto só é possível pela habituação das relações de troca. “O progresso apenas consiste em que a forma de permutabilidade direta geral ou a forma equivalente geral se fundiu agora definitivamente, por meio do hábito social, com a forma natural específica da mercadoria ouro” (Marx, 1867, p.196).

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Um exemplo são as relações de exploração ou de dependência que existem entre as pessoas sem que ninguém perceba a natureza desta relação. Consideremos as relações entre brancos e negros ou homens e mulheres nas comunidades patriarcais e racistas. Mesmo um negro ou uma mulher, não percebendo ou aceitando, eles eram discriminados. Negros e mulheres tinham direitos e deveres na sociedade diferentes dos brancos ou homens. Podemos adicionar ao exemplo a importância das crenças ou convenções sociais, como argumentos teológicos sobre a inferioridade das mulheres e dos negros, para, por um lado, obliterar a compreensão adequada destas relações e, por outro lado, legitimá-las.

As relações sociais impessoais são centrais em diversas análises econômicas, como o estudo do capital por Marx39 ou a teoria da agência. Se nos atentarmos ao objeto da teoria da

agência, a relação entre acionistas e gerente, podemos identificar algumas propriedades importantes das relações. A primeira é que as relações sociais impessoais são ligações entre posições sociais. Cada posição social implica um conjunto de direitos e obrigações historicamente definidos. A mudança desses direitos e obrigações (por exemplo, através da introdução da governança corporativa da maximização do valor do acionista) não resulta, necessariamente, no fim da relação ou em sua transformação.

Os direitos e as obrigações são definidos por Lawson (2012) como regras sociais internamente relacionadas às posições sociais. Enquanto as obrigações representam um conjunto de requisitos que qualquer agente tem de cumprir, para assumir ou permanecer em determinada posição social, os direitos são privilégios para praticar ou não praticar uma ação que só é socialmente aceita em função de estar ocupando uma posição relevante. Qualquer gerente, por exemplo, tem a obrigação de prestar contas e de apresentar relatórios para os proprietários da empresa, assim como tem a possibilidade de impor práticas, rotinas e metas aos seus funcionários.

39 Pioneiramente, Marx (ibid, p.13) explicitou a importância da análise socioeconômica das relações sociais

impessoais. Isso fica claro na seguinte afirmação:

“Para evitar possíveis erros de entendimento, ainda uma palavra. Não pinto, de modo algum, as figuras do capitalista e do proprietário fundiário com cores róseas. Mas aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de categorias econômicas, portadoras de determinadas relações de classe e interesses. Menos do que qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode tornar o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma criatura, por mais que ele queira colocar-se subjetivamente acima delas”.

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O posicionamento social, resultado das relações sociais impessoais, não é ocupado exclusivamente por pessoas, mas também por objetos inanimados. De acordo com Lawson (ibid), “a realidade social em alguma parte compreende uma multiplicidade de objetos inanimados, na maior parte humanamente construído como artefatos, que obtém identidades sociais sendo socialmente posicionado de várias maneiras”. A questão dos objetos é importante para enfatizar que o mundo social não é constituído apenas por instituições, relações sociais e pessoas, mas também por objetos materiais. As pessoas vivem em casas, comem alimentos, interagem com máquinas e produzem, bem como usam objetos. Por exemplo, a noção schumpeteriana de empreendedorismo como uma nova combinação de elementos já existentes é comprometida com a ideia de que a materialidade é relevante e pode mudar as relações sociais entre pessoas e objetos (Pinch e Swedberg, 2008). Preda (2009, p.113-143) mostra o papel desempenhado pelo ticker de ações que possibilitou novas agências nos mercados financeiros. Esse artefato transformou as operações dos mercados de ações em formas mais abstratas e visualmente disponíveis a todos ao mesmo tempo. Este precursor dos gráficos financeiros permitiu a transformação das informações de preços (antes, heterogêneas, múltiplas, assistemáticas e descontínuas) em contínuas, homogêneas e em tempo real, estimulando maior confiança por parte dos agentes financeiros.

Tais objetos posicionados adquirem funções sociais que ampliam a gama das capacidades humanas. O dinheiro, por exemplo, tem a função social de meio de troca, unidade contábil e reserva de valor. Os direitos e obrigações, no caso dos objetos posicionados, incidem sobre os proprietários. As práticas resultantes dos direitos e obrigações são legitimadas pelas posições sociais que o agente ou objeto ocupa. Isso significa que estas regras sociais não são soltas ou desconexas, mas ligadas entre si, formando sistemas de regras sociais, que consideramos como instituições. Portanto, entre as posições sociais temos um conjunto de relações sociais e instituições. Um resultado conjunto das relações sociais e das instituições é que a maioria dos direitos e obrigações abrangem atividades orientadas para outras posições sociais. As atividades de um professor são, em grande medida, direcionadas a seus alunos. Isso evidencia que tais dispositivos institucionais40 dizem respeito a formas de influenciar o comportamento e o

pensamento dos outros indivíduos posicionados, ou seja, é uma forma de poder. As relações de poder ocorrem diretamente, como um gerente instruindo funcionário a agir conforme suas

40 O termo dispositivos institucionais foi formulado por Granovetter (1985) e enfatiza a relacionalidade interna dos

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pretensões, ou indiretamente, através do acesso restrito aos diversos recursos da sociedade que não estão disponíveis para todos. (Lawson, 2012, p. 367-8).

Nesse sentido, fica evidente que uma caraterística fundamental das relações sociais é a distribuição, geralmente assimétrica, dos recursos da sociedade entre as diversas posições sociais. Dentre os recursos, incluem: recursos materiais, tais como dinheiro e crédito, e recursos de autoridade, como o acesso a posições de poder e autoridade, que permitem assegurar o controle sobre as ações dos outros. Um exemplo notável na literatura econômica está na afirmação de Schumpeter (1911) de que a posição social “banqueiro” é o capitalista por excelência41. A

capacidade de concentrar o poder de compra e criar crédito tem se constituído um instrumento de poder econômico indispensável para adquirir maior riqueza e, de forma sistêmica, para a reprodução e dinâmica do sistema capitalista42.

Além dos recursos, outra característica das relações sociais é a distribuição de interesses, de acordo com as diversas posições sociais, ainda que não dependam exclusivamente destas (Porpora, 2007; Swedberg, 2005). Pierre Bourdieu (apud Swedberg, 2005) usou a ideia de illusio, para se referir aos interesses que são intrínsecos aos campos sociais43 e que as pessoas

posicionadas aceitam como válidos e perseguem assumindo as incertezas e riscos envolvidos. Já Porpora (2007) argumenta que os interesses, além de serem resultado de um determinado conjunto de relações sociais historicamente situadas, são diferentes dos direitos e obrigações. Por exemplo, os interesses dos trabalhadores já motivaram a formação de sindicatos, para preservar e institucionalizar tais interesses e, posteriormente, tiveram alterações de alguns direitos e obrigações. Por outro lado, dada as condições históricas, é possível que o mesmo interesse que tenha levado determinado grupo a tentativas revolucionárias, leve outros grupos a atividades xenófobas. O interesse posicional pode assumir diversas formas de acordo com seu entrelaçamento com as outras entidades sociais e o contexto histórico.

41 “... como toda poupança e fundos de reserva hoje em dia afluem geralmente para ele e nele se concentra a demanda

de poder livre de compra, quer já exista, quer tenha que ser criado, ele substitui os capitalistas privados ou tornou-se o seu agente; tornou-se ele mesmo o capitalista par excellence” (Schumpeter, 1911, p. 83).

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“É sempre uma questão não de transformar o poder de compra que já existe em propriedade de alguém, mas da criação de novo poder de compra a partir do nada — a partir do nada mesmo que o contrato de crédito pelo qual é criado o novo poder de compra seja apoiado em garantias que não sejam elas próprias meio circulante — que se adiciona à circulação existente” (Schumpeter, 1911, p.82).

43 A noção de campo social se refere ao conjunto de relações sociais existente em determinado espaço e tempo,

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Os interesses posicionais não implicam determinismo sobre os interesses pessoais44, uma

vez que são tendências e podem estar previamente alinhados aos interesses pessoais. Quando o alinhamento não ocorre, ou quando o interesse posicional for contrário ou inconsistente com o interesse de outra posição social pode ocorrer “conflitos de interesses”. Nesse sentido, a corrupção pode ser entendida como um tipo de conflito de interesse entre os interesses ou obrigações posicionais que o agente deveria cumprir e entre as pretensões pessoais. Além desse tipo de conflito de interesses, as relações sociais também podem envolver conflitos, visando a benefícios entre posições sociais diferentes. Na literatura econômica, encontramos este tipo de situação entre acionistas e gerentes, capitalistas e trabalhadores ou agências de classificação de risco e demandantes de ativos financeiros.

A distribuição dos recursos e interesses das relações sociais impessoais é objetiva no sentido de que é produto de ações realizadas no passado e, por isso, é externa e autônoma para com a agência humana do período corrente. Essa ideia foi destacada em Marx (1982, p.25) ao afirmar que “na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais”. Contudo, algumas relações sociais dependem do reconhecimento e da aceitação das pessoas envolvidas. Por exemplo, uma relação de casamento só existe se as pessoas que ocupam as posições conjugais relacionadas entenderem o que é o casamento e o que ele implica. Além disso, qualquer relação de casamento é estritamente dependente das pessoas envolvidas. Ainda que existam dispositivos institucionais formais para regular esta relação, sua natureza é intersubjetiva.

As relações interpessoais configuram o principal objeto de análise da Nova Sociologia Econômica. Para Granovetter (1985, p.490), as pessoas são seres sociais cujas identidades, valores, crenças, metas e conduta são todas profundamente moldadas pela sua localização dentro de redes sociais formadas por relações interpessoais. Além das relações entre as pessoas

44 Preferimos usar o léxico “interesse pessoal” por três motivos. Primeiro usamos interesse ao invés de motivação

porque, de acordo com Swedberg (2005), mesmo a motivação sendo o conceito equivalente em psicologia, os interesses não são exclusivamente internos, como o caso dos interesses relacionais. Segundo que o uso de interesse nos aproxima intencionalmente da literatura de “interesses de classe” ou “conflitos de interesse”, ambas de grande importância. Por outro lado, temos usado o termo pessoal, tais como regra pessoal e confiança pessoal, por isso justifica-se o uso de interesse pessoal. Poderíamos usar um termo como “autointeresse” ou egoísmo para se referir aos interesses pessoais, mas correríamos um risco desnecessário de adotar conceitos carregados de significações cujo estudo foge do escopo aqui proposto.

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(interpessoais), existem relações da mesma natureza intersubjetiva, mas estabelecidas entre empresas, estados ou outros tipos de organização.

O fundamento das relações intersubjetivas é a confiança mútua entre os participantes. Os dispositivos institucionais facilitam a confiança, mas ainda assim ela é necessária. Nessa perspectiva, a confiança para estabelecer relações intersubjetivas é condicionada pela forma como os participantes potenciais se comportavam previamente. A confiança estabelecida é subjetiva, no sentido de que envolve a crença na integridade dos participantes potenciais e através do compartilhamento intersubjetivo de experiências e conhecimentos prévios entre os membros envolvidos.

De acordo com Powell e Doerr (1994), o conteúdo normativo das relações intersubjetivas surge através da recorrência e, assim, gera direitos e obrigações, assim como padrões de comportamento e de pensamento identificáveis e esperados pelos participantes. A força motivacional que estas relações carregam pode modificar interesses pessoais prévios ou interesses impessoais atuantes, criando, consequentemente, novos interesses mutuamente benéficos para os participantes da relação. As relações de reciprocidade e de cooperação mútua são exemplos de relações dessa natureza que têm sido ressaltadas em estudos econômicos.

Segundo Granovetter (1985) existem dois tipos de relações intersubjetivas, os “laços fortes” e os “laços fracos”. A primeira é caracterizada pela intimidade, proximidade e intencionalidade em criar e sustentar uma conexão entre duas pessoas. Considerando a integração e a contribuição explícita das pessoas envolvidas, os laços fortes são caracterizados por fluidez que se refletem em ampla capacidade adaptativa a mudanças no ambiente (Powell e Doerr, 1994). Já os laços fracos se configuram por relações esparsas que não exprimem proximidade ou intimidade, mas são importantes canais em que informações valorizadas e recursos escassos são distribuídos, assimetricamente, de acordo com a posição dos participantes na rede de relacionamentos.

77 Quadro 6 - Relações Sociais

Características Descrição

Existência Conexões socialmente construídas entre posições sociais, pessoas e/ou objetos

Distribui

 Poder entre posições sociais

 Dispositivos institucionais (direitos e obrigações)

 Recursos materiais

 Interesses posicionais e interpessoais

 Informações valorizadas

Natureza

1. Impessoal (objetiva): 2. Interpessoal (intersubjetiva): Fonte: elaboração própria

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