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O Relatório Brahimi: considerações sobre a concepção e a prática das operações de paz

3. TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL DA REFORMA DAS OPERAÇÕES DE PAZ

3.1 O Relatório Brahimi: considerações sobre a concepção e a prática das operações de paz

subsequente ao Relatório Brahimi (2000), com o intuito de acompanhar o desenvolvimento do processo da reforma no âmbito institucional, e explorar questões fundamentais que não foram abordadas no Relatório, como as considerações sobre os valores e normas que orientam os processos de pacificação conduzidos pela ONU.

O mapeamento da trajetória institucional da reforma das operações de paz na década de 2000 nos permitiu identificar que a proposta inicial de que as missões não se limitariam a monitorar e gerenciar conflitos, mas se envolveriam na resolução dos mesmos, ou seja, na transformação ao ambiente de violência para um ambiente de estabilidade onde as causas dos conflitos seriam tratadas, sofreu algumas modificações. Embora os objetivos continuassem os mesmos –estabilidade e recuperação das sociedades no pós-conflito–, o papel atribuído às operações de paz foi sendo cada vez mais reduzido, sugerindo-se o compartilhamento das responsabilidades com outros atores internos e externos ao sistema ONU.

3.1 O Relatório Brahimi: considerações sobre a concepção e a prática das operações de paz

O Relatório Brahimi (2000) é um dos documentos mais abrangentes já publicados pela ONU no tocante à concepção, planejamento e execução das missões de paz. Diferentemente da “Agenda para a Paz” (1992) e seu “Suplemento” (1995), que se concentraram em definir as técnicas de gerenciamento de conflitos frente ao cenário bélico em transformação, o Relatório Brahimi (2000) partiu do diagnóstico dos resultados das missões da década de 1990, admitiu que a ONU falhou em cumprir seu propósito de manter a paz,

reconheceu a necessidade de mudança e apontou uma série de recomendações para fortalecer e revitalizar as operações de paz.

Lakhdar Brahimi, em carta destinada ao então Secretário-Geral em 17 de agosto de 2000, expressou que as expectativas do grupo de especialistas eram de que as análises, reflexões e recomendações do Relatório servissem como base para uma reforma sistemática capaz de renovar as operações de paz, as quais foram descritas como a “função central”32 da ONU. Cientes de que estava em curso uma reforma abrangente no Secretariado, os membros do Painel almejavam que as mudanças nas operações de paz se inserissem neste processo.

Um dos objetivos do Relatório Brahimi (2000) foi chamar a atenção para a necessidade da renovação do comprometimento dos Estados-membros com as atividades de manutenção da paz e gerenciamento de conflitos, principalmente no que se referia ao apoio financeiro destinados a elas. A importância deste assunto ficou evidente desde as cartas introdutórias – uma de Kofi Annan endereçada aos presidentes da AGNU e do CSNU, e outra do presidente do Painel, Lakhdar Brahimi, dirigida ao Secretário-Geral – e recebeu destaque no Sumário Executivo e na maioria dos tópicos tratados no documento. O tema do comprometimento dos Estados-membros para prover recursos financeiros, materiais e humanos para operacionalizar as missões foi recorrente nos documentos da ONU da década de 2000.

Na avaliação do grupo de especialistas do Painel, algumas missões da década de 1990 enviadas para países que vivenciavam guerras civis foram concebidas da seguinte forma: no primeiro momento, os peacekeepers iriam atuar na garantia de um ambiente seguro e sua presença impactaria positivamente no controle da violência, enquanto os peacemakers promoveriam o diálogo entre as principais partes em conflito para negociar um acordo político. Após atingir tais condições –estabilidade e acordo de paz– os peacebuilders voltar-se-iam à promoção de atividades que criassem condições para o estabelecimento de uma paz sustentável. Todavia, o grupo de especialistas constatou que, na prática, alguns dos grupos armados possuíam incentivos políticos e econômicos para continuar engajados, sem perspectivas para negociar acordos de paz ou mesmo respeitar a presença dos peacekeepers. Concluiu-se que tal condição impediu que as missões atingissem seus objetivos, sendo que muitas não foram capazes de garantir a estabilização do conflito, sendo encerradas antes mesmo de se alcançar a etapa de consolidação da paz.

32 Do inglês “core function”.

Tomando como base este diagnóstico, o Relatório Brahimi (2000) apontou que as respostas da ONU aos conflitos deveriam ser repensadas e estabeleceu que “há muitas tarefas que as forças de paz da ONU não devem ser requisitadas a assumir e muitos lugares em que não devem ir”33. Caso o CSNU decidisse pela aprovação de uma missão de paz, os peacekeepers “devem estar preparados para confrontar as forças persistentes da guerra e da violência com habilidade e determinação para derrotá-las”. (ONU, A/55/305, p. viii, tradução nossa34)

Imprimiu-se no documento a noção de que as operações de paz não são instrumentos adequados para responder a todos os tipos de conflito, ou pelo menos a todas as etapas de um conflito. Ao condicionar o envio das missões à existência de um engajamento prévio das partes em conflito no processo negociador, evidenciou-se que o princípio do consentimento das partes manteria sua centralidade na tomada de decisão quanto à aprovação de novas missões de paz.

O Relatório também reconheceu que, nos anos anteriores, a maioria das operações de paz tratou dos sintomas e não das causas dos conflitos e, por isso, recomendou um aprofundamento da abordagem multidimensional das operações de paz praticada na década de 1990. Nota-se que, diferentemente dos documentos anteriores, como a “Agenda para a Paz” e seu “Suplemento”, o Relatório Brahimi (2000) referiu-se às missões de paz como peace operations, e não pelo termo específico peacekeeping operations, o que denota uma abordagem mais abrangente composta por três elementos: prevenção de conflitos e peacemaking; peacekeeping; e peacebuilding. Ou seja, as operações de paz não estariam mais centradas apenas na proposta de manter a paz (peacekeeping).

A prevenção de conflitos e o peacemaking foram definidos como ações de caráter preventivo e de mediação conduzidas a partir de iniciativas diplomáticas que busquem facilitar a negociação política para o fim do conflito. São executadas por enviados especiais de governos, grupos intergovernamentais, organizações regionais, grupos de organizações não- governamentais ou altos funcionários da ONU. O peacekeeping referia-se tanto às atividades tradicionais executadas pela ONU desde a década de 1940, predominantemente militares e de monitoramento de cessar-fogo, quanto aos mandatos expandidos da década de 1990 que

33 Do original: “There are many tasks which the United Nations peacekeeping forces should not be asked to

undertake and many places they should not go”.

34 Do original: “(…) they must be prepared to confront the lingering forces of war and violence with the ability

envolveram múltiplos atores, civis e militares, no contexto de estabilização de conflitos armados. (par. 10-12)

Já o peacebuilding foi apresentado como o caminho para construir sociedades mais estáveis e seguras. Embora não fosse novidade no vocabulário onusiano, esta foi a vertente que ganhou mais destaque no Relatório, nas discussões posteriores e na formulação dos mandatos das missões aprovadas na década seguinte. A concepção de peacebuilding introduziu aspirações mais amplas relacionadas à recuperação das sociedades no período pós-conflito e ao trato de problemas ligados à proliferação da violência, de forma a evitar sua repetição. O diferencial desta concepção está na ideia de tratar as causas e não somente os sintomas dos conflitos.

De acordo com o Relatório Brahimi (2000), a tradução do peacebuilding na prática das missões implicaria na construção dos alicerces da paz e na provisão instrumentos que viabilizassem uma situação em que a paz significasse mais do que a simples ausência de violência. Desta forma, as missões da ONU não iriam simplesmente monitorar ou gerenciar o status do conflito, mas transformar o conflito. As ações requeridas para promover tal transformação, segundo o Relatório, deveriam incluir a reintegração dos ex-combatentes à sociedade civil; o fortalecimento do Estado de direito; o aprimoramento do respeito aos direitos humanos; a promoção da democracia e de técnicas de resolução de conflitos e reconciliação, conforme descrito no quadro abaixo.

Quadro 2 - Peacebuilding: objetivos e atividades

Objetivo Atividades

Proporcionar melhores condições de vida para as pessoas que habitam os locais que são focos da missão

Projetos de rápido impacto

Reintegração de ex-combatentes

à sociedade civil Programas de DDR – desarmamento, desmobilização e reintegração

Fortalecimento do Estado de

Direito Profissionalização e treinamento da polícia local Profissionalização e treinamento do poder judiciário

Reforma do sistema penal

Aprimoramento do respeito aos

direitos humanos Monitoramento da situação dos direitos humanos Educação

Promoção da democracia Assistência técnica eleitoral Apoio à liberdade da mídia

Promoção de técnicas de resolução de conflitos e de reconciliação

(não indicadas no Relatório)

(Outras atividades

complementares)

Apoio ao combate à corrupção Programas de desminagem

Ações contra doenças infecciosas, com ênfase no controle da disseminação do HIV

Organização: BIGATÃO, J. P.

Fonte: Relatório Brahimi. ONU, A/55/305, 2000, par. 13-14.

De acordo com o Relatório Brahimi (2000) as atividades de peacebuilding, entendidas como propulsoras de um processo de mudanças políticas, econômicas e sociais que engendrariam um ambiente estável e autossustentável, visam dois objetivos mais amplos: possibilitar a retirada das tropas da ONU e evitar a recorrência do conflito. Apontou-se que “O Conselho de Segurança e o Comitê Especial da Assembleia Geral para as Operações de Paz reconheceram a importância do peacebuilding como essencial para o sucesso das operações de paz”. (par. 35, tradução nossa35).

O documento recomendou que as ações de peacebuilding visassem, em primeiro lugar, a promoção de mudanças significativas na vida das pessoas que habitam as áreas alvo da missão, por meio de projetos de rápido impacto, os quais aumentariam a credibilidade da missão em relação à sociedade na qual ela se desenvolve. (par. 37) Em segundo lugar, apontou-se que a realização de eleições deveria integrar um esforço mais amplo de fortalecimento das instituições de governança no país recém estabilizado. Todavia, considerou-se que as eleições seriam bem sucedidas na medida em que a população se sentisse representada pelo governo eleito e estivesse inserida em um processo de democratização e construção de uma sociedade civil pautada em uma cultura de respeito aos direitos humanos. Caso contrário, as eleições representariam a ratificação da tirania da maioria e seus resultados poderiam ser facilmente revertidos após a retirada da operação de paz. (par. 38).

35 Do original: “The Security Council and the General Assembly’s Special Committee on Peace-keeping

Operations have each recognized and acknowledged the importance of peace-building as integral to the success of peacekeeping operations”.(ONU, A/55/305, 2000, par. 35).

Em terceiro lugar, recomendou-se que a polícia civil da ONU adquirisse capacidade para reformar, treinar e reestruturar a força policial local, a partir de uma postura mais ativa que não se ocupasse apenas do registro de casos de abuso de autoridade e comportamento inadequado. Os policiais treinados deveriam ter condições de responder a episódios de desordem civil, de acordo com os padrões democráticos e de direitos humanos. (par. 39).

Em quarto lugar, o Relatório argumentou que a vertente das operações de paz responsável pela promoção dos direitos humanos, que em diversas experiências passadas não recebeu apoio político e administrativo, deveria liderar a implementação de amplos programas de reconciliação nacional. Por fim, o documento estabeleceu que os programas de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) de ex-combatentes na sociedade, considerados centrais na promoção da estabilidade no imediato pós-conflito, deveriam ser cumpridos de forma integral. (par. 41-42).

O Relatório Brahimi (2000) destacou dois possíveis entraves à efetividades das ações de peacebuiding, uma voltado à coordenação dos esforços, principalmente envolvendo órgãos como o DPKO, o Departamento de Assuntos Políticos (DPA), o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD); e outro ligada ao financiamento das atividades, apontando neste caso que a chamada donor community36 deveria considerar o sistema ONU como ponto focal dos esforços de consolidação da paz. (par.44-45).

A necessidade de recursos para a implementação das operações de paz foi um tema recorrente do Relatório, que criticou as decisões do CSNU de aprovar novas missões sem antes garantir os mínimos recursos para sua implementação. Nota-se que a recomendação para que o CSNU emita mandatos claros e executáveis está relacionada não somente à avaliação do ambiente para o qual a missão será enviada, ou seja, às características dos conflitos, mas principalmente à existência de contingentes e recursos para o desempenho das atividades estabelecidas nos mandatos. O Relatório recomendou que, no processo em que o Secretariado assessora o CSNU no planejamento do contingente e dos recursos necessários para uma nova missão, aquele não deve emitir pareceres de acordo com o que presume politicamente aceitável por parte do CSNU. De acordo com o documento, tal processo deve ser baseado em um modelo

36 A donor community refere-se aos financiadores das missões de paz e dos projetos de desenvolvimento

implementados na fase pós-conflito. Envolve os Estados-membros da organização, instituições multilaterais (como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional), agências de desenvolvimento e programas implementados pelas ONGs.

operacional de alto padrão que explicite que a falta de recursos levará a missão ao fracasso. (par. 59).