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5. SOBERANIA NACIONAL E INGERÊNCIA ESTRANGEIRA

5.3 Relativização da Soberania

Até o momento, este trabalho cuidou em apresentar a soberania como alicerce inabalável do Estado, como o poder maior inerente a este, poder sobre o qual nenhum outro poderia se impor. De fato, é regra que o Estado soberano detenha sobre seu domínio territorial e humano a exclusividade e a plenitude das competências, descartando-se qualquer concorrência no exercício de sua jurisdição. É o Estado apto, portanto, a utilizar-se de todas as competências possíveis na órbita do direito público. Mas como toda regra, esta possui exceções. É o que confirma Francisco Rezek:

No interior de qualquer Estado a ordem legal arrola com segurança as pessoas jurídicas de direito público interno; dispõe sobre a configuração da personalidade jurídica de direito privado, e rege, num e noutro caso, a capacidade de agir. No direito das gentes essa precisão não existe. (2005, p. 240)

49 KUNZ, Josef L., apud MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15 ed. v.

2. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 1113.

50 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 10 ed. rev. e atual. São Paulo:

Cada Estado tem o poder de determinar, por si e para si mesmo, se os demais entes declarados estatais que o cercam figuram-se-lhe ou não como soberanos. Tal faculdade é paradoxalmente conferida pela própria soberania. Os Estados são, portanto, livres para, mesmo que minoritária ou até isoladamente, negar a condição de Estado ao ente que, a seu ver, seja desprovido de personalidade jurídica de direito internacional público. O inverso é da mesma forma procedente. Nada se opõe a que um Estado reconheça como legítimo e soberano um ente assim desconsiderado por outros Estados.

É certo que aquela jurisdição ampla, completa e eficaz que o Estado possui sobre os indivíduos é a mesma que a comunidade internacional exerce sobre os Estados. O direito internacional, todavia, depende de certa complementaridade por parte dos governos estatais, para que estes venham a efetivar os consensos internacionais sobre os seus indivíduos. Kelsen foi um dos precursores deste entendimento, em que defende ser a relação entre a comunidade internacional e os Estados semelhante à existente entre a União e os entes federais, como se pode averiguar na seguinte passagem de sua autoria:

Um dos inconvenientes mais sérios da personificação do Estado é justamente que ela se torna uma essência autônoma em relação ao ordenamento jurídico, inserindo-se entre os diferentes estratos que compõem o sistema de normas, impedindo a visão dos vários graus existentes e o exame de suas relações recíprocas. Essa situação vale em medida máxima para a relação entre o ordenamento jurídico de um Estado qualquer e o ordenamento internacional. [...] O exame da relação entre esses âmbitos normativos mostra que entre a “União” ou o assim chamado “Estado central” e os estados singulares ou estados-membros, não há subordinação e superioridade, pois não se trata de uma relação de delegação, mas, ao contrário, de uma relação de

coordenação.51

Sob esta nova perspectiva, torna-se mais clara e coerente a teoria kelseniana de que o Estado é o único ente capaz de aplicar normas jurídicas aos indivíduos, uma vez que é justamente este mesmo Estado quem decide, aliado aos seus semelhantes, as normas jurídicas internacionais. Por conseguinte, depreende-se que o direito internacional é responsável por definir o âmbito de validade das diferentes ordens jurídicas nacionais, situando-as no tempo e no espaço. Neste norte, o direito internacional revela-se uma limitação à soberania estatal.

A relativização da soberania vem ganhando força no cenário de crise civilizacional da modernidade. Em meio aos conflitos armados que se instalaram, especialmente no século XX, dentre guerrilhas movidas pelo narcotráfico, por desavenças

religiosas ou embates étnicos, e guerras mundiais, emergiram organizações internacionais – com destaque para a ONU – movidas pela missão de disciplinar o poder soberano dos Estados, neutralizando o caráter absoluto que até então lhe conferia autonomia plena, não distinguindo a jurisdição interna da externa.

As normas vigentes no plano internacional sobre desenvolvimento, economia e meio ambiente têm natureza não obrigacional, mas de diretrizes de direcionamento. Quando em relação a tais temas, o Estado, na administração de seu próprio território e agindo nos espaços comuns, está subordinado a normas convencionais, de edição recente e, em regra, multilateral. Tais normas prestigiam o direito ao meio ambiente saudável, um dos direitos humanos de terceira geração. Normas estas fundamentadas na interdependência. Em atenção à questão do meio ambiente, foco deste estudo, perceba-se que o dano ambiental produto da negligência ou do impotente governo político de determinado Estado tende a repercutir sobre outros de forma progressiva. Em boa parte das vezes, a repercussão recai sobre o conjunto dos Estados, o que lhes permite enxergar o quanto todos têm a ganhar com um planejamento comum.

As normas internacionais aqui discutidas primam pela garantia do desenvolvimento sustentado, cujo conceito já fora explorado em outra oportunidade. Pertence aos Estados a responsabilidade primeira pela busca deste referencial, que pode ser impulsionada pela elaboração de normas com destino a um desenvolvimento que não sacrifique seu cenário interno e não comprometa suas próprias condições de durabilidade.

Conforme exposto em capítulos anteriores, as responsabilidades estatais devem ser diferenciadas de acordo com o grau de desenvolvimento de cada Estado, com os recursos financeiros disponíveis, seu patrimônio ecológico, seu potencial poluente, ou outras particularidades consideráveis.