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Relato sobre as condições de vida operária no núcleo fabril de Fernão Velho

Então a gente se criou com essa mãe lagoa, era muito bom, não faltava nada, era uma fartura nessa lagoa. O senhor chegava aqui 2 horas da tarde, o senhor via os homens com balaio de camarão, tudo vendendo na época [...] A

lagoa tão limpinha, tão limpinha, e a minha mãe quando não tinha o que

comer, a minha dizia assim: vou na beira da lagoa tirar sururu. [...] ela

levava um balaio e tirava sururu tudo assim, aí meus irmãos arrudiava... [...] não faltava nosso alimento porque a mãe lagoa era o dia todinho peixe passando.

[...] Muita gente aqui, meu Deus, passava fome, nem farinha... hoje em dia o povo conta papo: eu digo a verdade, porque a verdade é essa[...] (grifos nosso) (informação verbal)114.

Resolvemos iniciar esta subseção com a fala acima – referente a Dona Aidée, operária aposentada da Fábrica Carmen, nascida em Fernão Velho por volta de 1930 – para que tenhamos noção da verdadeira condição de vida dos trabalhadores de Fernão Velho, ou seja, buscaremos agora apresentar as contradições do discurso dos industriais sobre o suposto bom tratamento dos operários, comparando com alguns relatos dos que realmente viveram e trabalharam dentro do núcleo fabril.

Pudemos perceber na seção 3 deste trabalho que o real intuito dos industriais em manter moradia, lazer e serviços sociais para a classe trabalhadora, fazia parte de uma política de dominação e de propaganda da fábrica como acolhedora e responsável pelo bom abrigo do operariado. Porém, os depoimentos dos trabalhadores, algumas discussões encontradas no livro de Atas do Sindicato dos Trabalhadores desta indústria e no jornal A Voz do Povo, deixam muito claro como se dava a vida neste núcleo fabril: não era pintada tal como anunciavam os industriais.

Voltando à fala da operária, vê-se bem como esta dá ênfase à mãe lagoa como algo que ofereceu sustento a ela e à sua família. Em momento algum ela afirmará que o salário oferecido pela fábrica correspondia ao suprimento necessário à sua subsistência. Aliás, ela deixa evidente que: “a minha mãe, quando não tinha o que comer, dizia assim: vou na beira da lagoa tirar sururu”. E continua: “[...] Muita gente aqui, meu Deus, passava fome, nem farinha...”, afirmando que o sustento não era dado pelo salário pago pela fábrica – mesmo ela sendo empregada – mas pelo trabalho extra na lagoa para retirar sua alimentação.

Esta referência de Dona Aidée, todavia, nos mostra a importância da “mãe lagoa” para a sobrevivência dos operários, que não conseguiam receber em seu salário o mínimo para sua subsistência e de sua família, escancarando as reais condições de exploração sobre o

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Retirado de TRAMA da memória, tecitura do tempo: registro da memória e da iconografia das famílias de tradição operária residentes no Bairro de Fernão Velho – Maceió / AL, 2008. Vol: 01. D. Aidée.

trabalhador. Portanto, o papel da lagoa Mundaú fora fundamental para suprir as necessidades básicas de alimentação negadas pelos industriais115.

Segundo o historiador Golbery Lessa (2008, p. 42): “as referências à simplicidade do cotidiano são constantes e denunciam a extrema pobreza dos trabalhadores e a falta de infra- estrutura urbana da vila operária”. De acordo com a análise sobre as entrevistas dos operários, o historiador acima complementa que

A iluminação era deficiente nas ruas e na fábrica e inexistente nas residências; o transporte terrestre era precário (já que o trem não tinha uma freqüência (sic) suficiente para suprir as necessidades e nem existia ramal para a parte alta de Maceió) e havia dificuldades de acesso à água potável e à lenha para a cozinha.

Entrementes, estes pontos apresentados pelo historiador desmentem a própria propaganda de uma política de higienização do trabalhador, divulgada pelos industriais, tanto que as falas dos operários são mostradas condições de vida bastante difíceis, pois se deparavam com grandes empecilhos para se locomoverem a outras localidades, não tinha saneamento de esgoto ou água encanada. Estas condições se contrastavam com frequente realização de festas, momentos de lazer e diversões públicas, todas financiadas pela administração da fábrica e organizadas com a participação dos próprios operários.

O depoimento da mesma trabalhadora, que afirma ter vivido situações de sobrevivência bastante complicadas – não somente ela como outros trabalhadores que chegaram, inclusive, a passar fome – se contradiz com sua mesma fala, dizendo que o patrão era muito bom. Como e por que encontramos esta dupla face nesta identidade de classe? Até onde funcionou o controle e o aparato ideológico da fábrica para contenção do proletariado? Quais os mecanismos que estes trabalhadores recorreram para driblar a verdadeira condição de vida historicamente imposta pela fábrica?

Parece-nos que as festas, juntamente com o fornecimento de casas e demais elementos discutidos na subseção 3.5 deste trabalho, estão incutidas na memória dos trabalhadores como compensação da exploração e da miséria. Talvez os mecanismos de organização da vida da classe trabalhadora soem como benesses do patronato, o que condicionaria, se assim o for,

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É possível, inclusive, que – além da perspectiva de isolamento – os industriais já tivessem isso em mente quando resolveram localizar a fábrica às margens da lagoa, devido à sistematização em que se dava à construção do núcleo fabril.

para esta perspectiva ambígua que os trabalhadores criaram para si, dentro de sua relação de identidade de classe. Veremos, portanto, como a resistência costumará estar concomitantemente atrelada a um posicionamento passivo frente às determinações da empresa.

Acompanhemos então, os depoimentos do operário Luís Gitaí, em Memória da Vida e do Trabalho (1986), para que consigamos visualizar a ambiguidade assinalada acima. O interessante neste operário é seu posicionamento de enfrentamento contra as determinações dos industriais. Sua fala é sempre colocada em tom de resistência. Por exemplo, quando os industriais precisavam aumentar a quantidade de seu operariado, costumavam inserir mais de uma família numa mesma casa. Quando isto acontecia, o operário Gitaí respondia: “Na minha casa não. Na minha casa não aceito [...]. Na minha casa só eu de homem e de mulher minha mulher e de filhos, meus filhos” (informação verbal)116

.

Em outra oportunidade, ele afirma o seguinte:

Está com quarenta anos que moro nesta casa. Fiz essa propriedade, esse terreno, esse sítio, tudo às custas do meu suor: trabalhando de dia à noite. E lutei, porque com esse salário que eu tinha não dava para educar quatro

filhos, nem educar os quatro filhos, que eu eduquei graças a Deus. Eduquei

quatro filhos nessa casa (Ibid.) (grifos nosso).

Sua postura de resistência e de denúncia da exploração dos industriais sobre o proletariado fica muito evidente tanto nestas falas, como em depoimentos de outros trabalhadores, que costumavam classificá-lo como um líder da classe. Contudo, este mesmo trabalhador afirmará no mesmo filme, que Fernão Velho era um lugar muito bom, um lugar onde existiam festas sublimes. De acordo com as palavras deste trabalhador:

[...] antes da greve tudo era aqui assim [sinal de positivo]. Pastoris, só do local mesmo eram dois, baianas, caboclo linho, chegança, duas cheganças, fora as brincadeiras que vinham de outros lugares, como do Norte, Coqueiro Seco, ali do Remédio, né? Baianas... era uma coisa sublime, tinha gosto de ir à festa [...]. Carnavais, nessa época que nós estamos, era época de a gente ta por aqui? Não. Era época de a Gente ta brincando, já começando a brincar.

Os quatro dias de carnavá vocês não se lembrasse de nada na vida, só de Deus, porque era lindo, todo mundo brincava (grifo nosso) (informação

verbal)117.

116

Memória da Vida e do Trabalho, 1986.

Assim sendo, podemos concluir que as condições de vida e trabalho dos operários de Fernão Velho estavam em diálogo constante entre o pão e o circo, ou melhor, entre a miséria e suntuosidade das festas. Possivelmente, esta dupla face do problema gerou esta ambiguidade concomitante entre a resistência e a passividade dos operários.

A promoção das festas parece ter cumprido seu papel de aparato ideológico da fábrica, o que não significa dizer que estes trabalhadores fossem ingênuos ou que não tivessem consciência de seu papel de proletariado, mas sim, que estes se viram constantemente entrelaçados entre as reais condições e os espaços de compensação da miséria.

Sendo assim, buscaremos em diante apresentar nossa análise sobre alguns elementos de organização operária em Fernão Velho, que conviveram com esta dicotomia recíproca entre cooptação e resistência operária – ao menos através dos registros históricos que até então pudemos ter acesso – na representação dos interesses e identidade de classe. A nosso ver estas organizações ultrapassaram o plano do cotidiano para marcarem presença durante momentos históricos bastante emblemáticos no processo de organização e luta de classes neste território.