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CAPÍTULO 4 – PROBLEMAS E PERSPECTIVAS

4.6 RELEVÂNCIA ARGUMENTATIVA DA DISTINÇÃO ENTRE

QUAESTIO IURIS

Como defendido nos primeiros capítulos deste estudo e confirmado ao longo do exame dos acórdãos condenatórios proferidos pelo STF, uma separação rígida entre quaestio facti e

quaestio iuris nos provimentos jurisdicionais não se sustenta na prática. Com efeito, há entre as

questões de fato e as questões de direito um nexo dialético, na medida em que fatos e normas vão se determinando progressiva e reciprocamente em um contexto unitário, embora cindível por razões metodológicas (UBERTIS, 2017, p. 66s).

Esta cisão metodológica é útil, no contexto argumentativo, para a definição do objeto a ser perseguido nos variados momentos da argumentação judicial e, por consequência, das estratégias a serem empregados para alcançá-lo. Desse modo, na dimensão da quaestio facti, quem argumenta orienta a sua atividade para fundamentar o que é verdadeiro em relação com o mundo externo, utilizando como principais instrumentos nesta tarefa os fatos probatórios e as máximas de experiência.118 De outro lado, na dimensão da quaestio iuris, quem argumenta pretende fundamentar o que é lícito, constitucional ou justo dentro de um sistema normativo, utilizando como principais instrumentos as fontes jurídicas e as técnicas de interpretação de comandos normativos.119

A diferenciação na metodologia de argumentação nos planos da quaestio facti e da

quaestio iuris está demonstrada no julgamento da AP 530, especialmente no confronto entre os

votos divergentes naquele acórdão.

A questão fática principal naquele acórdão consistia em determinar a veracidade ou não do contrato social em que o parlamentar figurava como sócio sem poderes de administração. Ao argumentar quanto a este problema, ambos os votos, vencedor e vencido, socorreram-se nos mesmos fatos probatórios (por exemplo: negociação de empréstimo pelo parlamentar) e nas mesmas máximas de experiência (por exemplo: que quem negocia empréstimos normalmente é o administrador), formulando inferências probatórias no sentido de que era o parlamentar quem efetivamente exercia as funções de administração na sociedade empresarial.

Contudo, ao ingressar no exame da quaestio iuris, os votos apoiaram-se em garantias e técnicas interpretativas distintas. A Min. Rosa Weber, apresentando um argumento interpretativo por analogia, sustentou que o maior rigor na punição da falsificação do documento público é resultado da maior confiabilidade que estes documentos possuem por serem fornecidos por órgãos públicos. Assim, como o contrato social, uma vez registrado na junta comercial, poderá ser disponibilizado pelo referido órgão a qualquer interessado, com a confiabilidade jurídica de um documento público, deve-se aplicar à sua falsificação o mesmo rigor da falsificação dos documentos públicos. É a aplicação da máxima ubi eadem ratio ibi

eadem legis dispositivo.

118 Não há dúvidas de que, no campo penal, as máximas de experiência constituem o principal instrumento para a

discussão fática. As presunções ocupam uma posição secundária, seja porque derivam de máximas de experiência institucionalizadas (presunções com base empírica), seja porque demarcam uma renúncia à busca pela verdade, posterior ao início do processo, em razão de outras preferências institucionais como a

celeridade e a segurança jurídica (presunções de cunho institucional).

119 Deixa-se de lado, por fugir aos interesses deste estudo, a discussão acerca da existência de fatos morais objetivos e, portanto, da possibilidade de uma argumentação sobre a verdade no campo moral. Sobre o tema, ver: Lariguet (2017).

De outro lado, o Min. Roberto Barroso, redator do acórdão, apresentou um argumento interpretativo conceitual, utilizando, como garantia para a sua conclusão de que o contrato social é um documento particular, a definição doutrinária e jurisprudencial de documento público e a redação do art. 297, § 2º, do Código Penal, que não contempla o contrato social como hipótese de documento público.

Com efeito, compreender se o raciocínio se insere na quaestio facti ou na quaestio iuris orienta quem argumenta a saber onde buscar os elementos necessários para formular sua argumentação. Estas posturas argumentativas distintas em cada tipo de problema não impõem uma divisão na argumentação de um provimento jurisdicional, mas fornecem, ao longo das várias subsunções necessárias para se alcançar a decisão final, os elementos que possibilitarão o curso da argumentação. A incompreensão desta distinção pode gerar confusões, o que foi observado em alguns dos acórdãos examinados.

No julgamento da AP 916, o voto do Min. Edson Fachin (revisor) inicia com uma tentativa de diminuir a relevância da discussão sobre os fatos na análise do caso, com a afirmação de que estavam em disputa muito mais juízos de valor do que fatos. Esta observação, contudo, não condiz com matéria realmente controvertida no acórdão.

A discussão de maior relevância na AP 916 dizia respeito à constatação de um estado de dificuldade financeira no município capaz de afetar a liberdade de decidir do prefeito. Esta constatação não é somente um juízo de valor, mas uma questão de fato. Para solucioná-la, seria necessário examinar as provas presentes nos autos e verificar qual o real estado das finanças do ente federado à época. Em uma etapa posterior, com conhecimento da verdadeira situação financeira do município, seria possível um juízo normativo para saber se havia no caso um estado de inexigibilidade de conduta adversa. Todavia, para se chegar à interpretação deste instituto jurídico, a correta solução da quaestio facti, com o exame dos fatos probatórios e das máximas de experiência eventualmente aplicáveis à situação, é uma atividade primordial.

Em verdade, afirmações genéricas como os fatos não estão em disputa ou os fatos são incontroversos, no campo penal, indicam, uma inclinação à caracterização de questões de fato como questões de direito, com a subvalorização daquelas e o superdimensionamento destas. Além disso, a não compreensão do problema em discussão (se de caráter fático ou normativo) dá origem a inúmeras confusões acerca de qual a argumentação necessária, como ocorreu no voto da Min. Rosa Weber na AP 530.

Naquele caso, a defesa formulou uma hipótese fática ao afirmar que o acusado não teria motivos para realizar a falsificação do contrato social, pois seria lícito que o parlamentar fosse proprietário de empresa titular de serviço de radiodifusão. Trata-se de uma hipótese acerca de

um fato psicológico (motivação) construída para atacar a coerência da narrativa acusatória. Não obstante, o voto dedicou-se, majoritariamente, a uma questão de direito, em defesa das vedações impostas aos parlamentares pela Constituição.

Assim, dez páginas do voto, com longas citações doutrinárias, foram utilizadas para se argumentar acerca da correta interpretação das vedações do art. 54 da Constituição Federal, sem nenhuma utilidade para a resolução da questão de fato apresentada, pois infringir as vedações parlamentares, independentemente da opinião do STF sobre elas, é conduta punível no âmbito disciplinar da casa legislativa e não na seara criminal.

A questão da motivação para o crime de falsificação, que é o que realmente se apurava, foi posteriormente abordada, ao final do voto, em 4 linhas:

O motivo da falsidade foi burlar as proibições constitucionais e legais, como, aliás, admitiu implicitamente o acusado J.A. (“que M., na qualidade de parlamentar, deputado federal, não podia ser sócio-gerente da rádio, então o interrogando ficou com essa função”) (p. 41).

De forma implícita nesta breve consideração, tratada quase como obiter dictum, há o argumento de que, a partir do fato probatório consistente no relato do corréu J.A., que afirmou haver assumido a gerência da rádio em razão de o acusado ser deputado federal, foi possível inferir que este impedimento era conhecido e admitido pelos réus, de modo que eles teriam motivos para falsificar o contrato social. Como se vê, a situação verificada neste acórdão revela uma propensão à prolixidade na argumentação normativa e uma inclinação ao laconismo na análise das questões probatórias.

Outro equívoco acerca do real equacionamento entre a quaestio facti e a quaestio iuris pode ser encontrada no acórdão da AP 563.

Naquele caso, em termos de interpretação normativa, a Corte concluiu que a maximização da exposição da imagem das pessoas configura prejuízo apto a autorizar a incidência da qualificadora prevista no crime de violação do sigilo funcional. Todavia, a configuração fática desta circunstância no caso concreto – que as pessoas presas neste caso realmente tiveram uma exposição maior de sua imagem que o ordinário – foi assumida sem nenhum argumento probatório que a sustentasse.

Com algum esforço interpretativo em prol da decisão, extraindo-se do voto algo que não está expressamente contido nele, seria possível cogitar que foi considerado como fato probatório a exibição da prisão em rede de televisão e aplicada uma máxima ou presunção no sentido de que a transmissão do momento da prisão normalmente importa em uma maior exposição da imagem. Ainda assim, seria inafastável o descuido da argumentação no tocante a

quaestio facti, seja por não haver preocupação em se explicitar de forma clara os elementos

constitutivos do argumento fático-probatório, seja porque a máxima de experiência ou presunção empregada é de duvidosa fundamentação.

Em síntese, embora não seja sustentável uma divisão rígida entre quaestio facti e

quaestio iuris no provimento jurisdicional, a separação metodológica dos problemas de fato e

de direito, os quais se entrecruzam ao longo da justificação da decisão, é útil para orientar quais elementos e técnicas argumentativas melhor correspondem a cada momento de argumentação. A ausência desta compreensão, por seu turno, pode dar lugar a inúmeros desacertos. No conjunto de acórdãos analisados, estes equívocos expõem uma supervalorização das discussões normativas em detrimento de uma subestimação das questões probatórias, os quais redundam em fundamentações insuficientes ou que utilizam estratégias argumentativas equivocadas ao tratar das questões de fato.