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2. O ARTESÃO DAS MEMÓRIAS: CONSIDERAÇÕES SOBRE O

2.2. Reminiscência: memória e rememoração

A palavra memória, segundo o Dicionário Houaiss, tanto pode ser “a faculdade de conservar e lembrar estados da consciência passados” quanto o “relato que alguém faz, muitas vezes na forma de obra literária, a partir de acontecimentos

86 GAGNEBIN. In: BENJAMIN, 1994. 87 MIRANDA, 1992.

históricos dos quais participou ou foi testemunha, ou que estão fundamentados em sua vida particular”.88

Em seu sentido etimológico, a palavra memória, no sentido de recordar, lembrar-se de algo, vem do latim memoria, que significa recordação, lembrança, reminiscência. Entretanto, para Aristóteles89, é necessário distinguir memória de reminiscência. Esta primeira seria a faculdade de conservar o passado, sendo que ela ocorre nos seres que têm a faculdade de perceber o tempo. Já a reminiscência seria a faculdade de evocar esse passado conscientemente.

Na Grécia Antiga, a memória alcançou o status de categoria divina.

Mnemosine, a deusa da memória, foi considerada como a única capaz de controlar o

tempo. Filha da Terra e do Céu, ela foi uma das esposas de Zeus, nascendo dessa relação as nove musas, “cujo coro [deveria recordar] aos deuses, em forma de arte, a lembrança dos seus altos feitos”.90

Nesse período, o poeta é considerado um homem possuído pela memória, espécie de adivinho do passado e testemunha dos tempos antigos. Ele faz da poesia, identificada com a memória, um saber e mesmo uma ciência, retirando daí seu lugar entre os mestres da verdade.

De acordo com Le Goff91, a deusa Mnemosine ao revelar para o poeta os segredos do passado, o introduz nos mistérios do além. A função da memória, dessa forma, é extinguir as barreiras que separam o presente do passado, lançando uma ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos.

Essa relação entre memória e reminiscência será retomada por Walter Benjamin no intuito de esclarecer a diferença entre a memória, musa da narrativa e cuja matéria seria a experiência coletiva (Erfahrung), da rememoração, musa do romance e cuja matéria-prima seria a vivência (Erlebnis) do homem moderno, isolado em seu próprio mundo.

A deusa da reminiscência – Mnemosine – era a musa da poesia épica em seu sentido mais amplo, pois incluía todas as variedades da forma épica, compreendendo também a encarnada pelo narrador. Nesse sentido, ela funda a cadeia da tradição, em que, de geração em geração, se transmitem os

88 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário eletrônico Houaiss de Língua

Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

89 ARISTÓTELES apud LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1996. 90 HACQUARD, Georges. Dicionário das mitologias grega e romana. Trad. Maria Helena Trindade Lopes. Lisboa: Asa, 1996, p. 211.

acontecimentos. Todavia, após a desagregação da poesia épica na sociedade capitalista, separou-se a musa da narrativa da musa do romance, desaparecendo “a unidade de sua origem comum na reminiscência”.

A musa da narrativa, então, passou a ser a memória, considerada a mais épica de todas as faculdades, em contraste com a musa do romance, a

rememoração. Na primeira, o narrador “tece a rede que em última instância todas as

histórias constituem entre si”92, espécie de Sherazade, que a cada nova história imagina outra. Já na segunda, o “romancista” busca perpetuar uma história por meio da consagração “a um herói, uma peregrinação, um combate”.93

Na visão de Benjamin, a conservação do que foi narrado aparece de forma diferente no romance e na narrativa, pois são diferentes as relações estabelecidas entre o ouvinte e o narrador de uma história e o leitor e o “romancista”. Se no primeiro caso, essa relação é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado ao longo da tradição, sendo a memória, portanto, infinita, pois cada nova história enseja outra. No segundo caso, a relação é contrária, pois o romance parte da procura do “sentido da vida” e o leitor persegue o mesmo objetivo, buscando “na leitura o que já não encontra na sociedade moderna: um sentido explícito e reconhecido”.94 Assim, o romance, “na sua necessidade de resolver a questão do

significado da existência, visa à conclusão”95, a um sentido finito e acabado.

No seu ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire96, Benjamin destaca que o título do livro de Henri Bergson, Matéria e memória97, demonstra que a estrutura da memória é decisiva para a estrutura filosófica da “verdadeira” experiência. Essa seria encontrada na manifestação da memória espontânea, nas imagens-lembranças.

Para Bergson, o passado, além de conservar-se, atua no presente de duas formas distintas. De um lado, há a memória hábito, de mecanismos motores, e de outro, as lembranças que ocorrem independentes desses esquemas de comportamento: lembranças singulares, autênticas ressurreições do pretérito. Essas são as imagens-lembrança, as quais trazem à consciência, casualmente, um momento único.

92 BENJAMIN, 1994, p. 211. 93 Ibid., p. 211.

94 GAGNEBIN. In: BENJAMIN, 1994, p. 14. 95 Ibid., p. 15.

96 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: ____. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989.

97 BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

O autor descobriu, sob uma memória superficial, anônima, assimilável ao hábito, uma memória profunda, pessoal, “pura”, que não poderia ser analisável em termos de “coisas”, mas de “progresso”. Essa teoria, que realça os laços da memória com o espírito tem uma grande influência na literatura. Ela marca o ciclo narrativo de Marcel Proust e causa uma expansão da memória na ficção.

Proust, segundo Benjamin, reproduziu artificialmente, de acordo com as condições em que vivia, a experiência tal como Bergson a imaginou. Ele transformou a memória “pura”, da teoria bergsoniana, em “memória involuntária” e a confrontou com a “memória voluntária”, controlada pela consciência. Para o autor, a “memória involuntária” não possuiria um caráter utilitário, pois depende do acaso para emergir do inconsciente, podendo ser ativada por pequenos dados sensoriais como um odor, uma forma, um som ou uma sensação tátil. Nesse sentido, no seu aflorar poder-se- ia encontrar a experiência “verdadeira”, ligada a Erfahrung, pois “só se torna componente da mémoire involontaire [memória involuntária] aquilo que não foi expressa e conscientemente ‘vivenciado’, aquilo que não sucedeu ao sujeito como ‘vivência’”.98

A memória involuntária de Proust, conforme esclarece Walter Benjamin, está mais próxima do esquecimento do que do lembrar, pois o sujeito só se recorda no mais profundo do olvido. Sobre isso, Gagnebin esclarece que:

[...] como a tecedura, para produzir um véu, se compõe dos movimentos ao mesmo tempo complementares e opostos dos fios da trama e da urdidura, assim também se mesclam e se cruzam, na produção do texto, a atividade do lembrar e a atividade de esquecer.99

A “empresa proustiana”, dessa forma, ao relacionar essas duas atividades – lembrar e esquecer – mostra as medidas necessárias à restauração da figura do narrador na atualidade. Proust personifica a força salvadora da memória ao escrever não uma vida como de fato ela foi, mas lembrada por quem a viveu. Benjamin destaca que se “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, [...] o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”.100 A grandeza de Proust consiste,

98 BENJAMIN, 1989, p. 108.

99 GAGNEBIN. In: BENJAMIN, 1994, p. 05.

100 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literature e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 37.

portanto, não em ter escrito memórias, mas em buscar as analogias e semelhanças entre passado e presente.

Em oposição ao pensamento de Bergson, principalmente no que se refere à conservação total e independente do passado no espírito de cada ser humano, encontra-se o pensamento de Maurice Halbwachs101, estudioso da memória enquanto fenômeno social.

Halbwachs relativizará a pureza da memória ao enfatizar a precedência do fato e do sistema social sobre os fenômenos de ordem psicológica e individual. Sua preocupação não se baseia no estudo da memória enquanto tal, mas nos “quadros sociais da memória”. Sua ótica, ao contrário de Bergson, desvia-se do que é individual, como as relações entre o corpo e o espírito, e passa a enfatizar a realidade interpessoal das relações sociais. Dessa forma, “a memória do indivíduo depende de seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo”.102

Halbwachs enfatiza as instituições formadoras do sujeito e realça a importância que a vida atual tem sobre o indivíduo ao desencadear o curso da memória. Nesse sentido, ele é contrário ao princípio bergsoniano de que o passado conserva-se inteiro de forma inconsciente e pode ser atualizado pelas imagens- lembranças, pois, em sua opinião, os indivíduos constroem suas lembranças baseados no conjunto de representações posto a sua disposição no momento atual.

Para o autor, recordar não é reviver, mas reconstruir, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. Assim, por mais nítida que nos pareça uma lembrança de um fato pretérito, ela não é a mesma imagem que experimentamos anteriormente, porque os sujeitos mudam de ideias, concepções, juízos. Por essa via, Halbwachs une a memória pessoal à memória do grupo social, e esta à memória coletiva de cada sociedade.

101HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. 102 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 54.