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Conforme já mencionado anteriormente, as remoções forçadas ainda são práticas extremamente comuns. Estima-se que, anualmente, mais de dez milhões de pessoas são forçadas a sair dos locais onde vivem, inserindo-se as desocupações forçadas nesse contexto266 .

Para além de definir conceitos, o que se pretende no presente capítulo é demonstrar que as remoções forçadas não devem ser vistas isoladamente, sendo mais adequado tratá-las como um fenômeno coletivamente compreendido, já que existe um arcabouço jurídico que lhes é comum.

Há muito a comunidade internacional está atenta à nocividade dessa prática, havendo inúmeros trabalhos destacando a importância de os Estados se absterem de praticá-la, bem como de impedirem que particulares o façam, em razão do reconhecimento de que nessas hipóteses ficam vulnerados uma série de direitos humanos.

A matéria das remoções forçadas assume tamanha relevância que foi objeto do Comentário Geral nº 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais267.

Em igual sentido, foi editado pela ONU um “Guinding principles on internal displacement”268, que trata da questão e traz como principal ponto de relevância, segundo

a doutrina, o princípio 5269 que imputa aos Estados a responsabilidade de prevenir as remoções270.

Não obstante o problema seja muito mais amplo que isso, os esforços da ONU se concentram nos casos em que essa prática está relacionada com conflitos armados, perseguições religiosas ou étnicas ou quando ocorrem em um contexto sem lei e sem ordem, com ausência de presença Estatal.

266 Segundo O Alto Comissariado Das Nações Unidas Para Os Direitos Humanos da ONU Em Sua Ficha Informativa 25.

267 Disponível em http://hrlibrary.umn.edu/gencomm/escgencom7.htm. Acesso em 02/01/2018.

268 Disponível em http://www.unhcr.org/protection/idps/43ce1cff2/guiding-principles-internal-

displacement.html. Acesso em 02/01/2018.

269 Principle 5: “All authorities and international actors shall respect and ensure respect for their

obligations under international law, including human rights and humanitarian law, in all circumstances, so as to prevent and avoid conditions that might lead to displacement of persons.”

270 Segundo CHAUDHRY. Prossegue o autor destacando que também são relevantes para o tema os princípios 6 a 9, 12, 14, 15, 18, 21 e 28. CHAUDHRY, Shivani. Development-Induced Displacement and Forced Evictions. In Incorporating the Guiding Principles on Internal Displacement into Domestic Law: Issues and Challenges. Walter Kälin, Rhodri C.Williams, Khalid Koser, e Andrew Solomon. Ed. The American Society of International Law: 2010, p. 593.

Como consequência disso, muitas vezes ficam ao desamparo aqueles que são submetidos ao desalojamento forçado, dentro do contexto do Estado Democrático de Direito. Não raro a vulnerabilidade dos envolvidos impede que os mesmos sequer conheçam seus direitos, desguarnecidos que estão de informações e acesso aos meios de defesa.

Isso porque no âmbito interno dos Estados essa preocupação não é tão marcante, seja porque não há a prática entre os juristas de atentar para a observância dos alertas feitos pelos organismos internacionais, seja por uma tradição romano - germânica de observância da legalidade.

Contudo, há que se atentar para a relevância do direito à moradia adequada e, mormente, para o princípio da dignidade da pessoa humana, quando se busca identificar se uma remoção forçada obedece aos ditames da Constituição de dado ordenamento jurídico.

Entende-se por desocupação forçada o afastamento involuntário de uma pessoa ou um grupo de pessoas, de suas casas ou terras, imputável direta ou indiretamente ao Estado, tendo como consequência a impossibilidade de permanência no local, podendo haver, ou não, sua realocação271 .

Uma característica que deve ser realçada – embora não chegue propriamente a integrar o conceito de desalojamento forçado – é que ela quase invariavelmente vem precedida de uma ordem de desocupação, que pode ter sido obtida judicialmente ou ser resultado de ato administrativo do poder executivo.

De plano é importante destacar que as desocupações forçadas chegam a ser consideradas, a priori, contrárias ao ordenamento jurídico272. Contudo, é perfeitamente viável – embora incomum - que ela se faça em absoluto respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, hipóteses em que é imperioso reconhecê-la regular, ainda que não corresponda à vontade dos removidos.

271 No mesmo sentido O Alto Comissariado Das Nações Unidas Para Os Direitos Humanos da ONU em seu comentário geral nº 7 afirma que desocupação forçada: “ is defined as the permanent or temporary

removal against their will of individuals, families and/or communities from the homes and/or land which they occupy, without the provision of, and access to, appropriate forms of legal or other protection.”

Disponível em http://hrlibrary.umn.edu/gencomm/escgencom7.htm. Acesso em 02/01/2018.

272 Nesse sentido o parágrafo 18 do Comentário Geral nº 4 do Comitê dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais: “In this regard, the Committee considers that instances of forced eviction are prima facie

incompatible with the requirements of the Covenant and can only be justified in the most exceptional circumstances, and in accordance with the relevant principles of international Law.”

Nesse sentido, desde que verificada a contrariedade ao ordenamento jurídico, é imediatamente exigível que o Estado se abstenha de praticá-la273.

Importante observar que, embora os direitos sociais em geral e o direito à moradia adequada em especial estejam sujeitos a um regime de progressividade (artigo 2º, 1, do PIDESC), o dever de abstenção em relação à prática de desocupações forçadas é imediatamente exigível, sendo obviamente incabível a alegação de insuficiência de recursos por se tratar de uma postura negativa.

Sobre sua forma de implementação, é de se considerar que as remoções forçadas podem ser realizadas de duas maneiras: uma ordem de desocupação, através de ato administrativo do poder executivo (que pode ter sido precedida de processo administrativo)274 ou por procedimento judicial.

Considerando a grande repercussão que essas questões assumem, por vezes o poder público evita a remoção compulsória por ato administrativo, pois isso geraria muitas indagações acerca da legalidade da medida e aumentaria o impacto negativo do caso junto à opinião pública interna e internacional. Ademais, àqueles que se sentirem prejudicados pelo referido ato, fica facilitado o questionamento judicial com o objetivo

273 Nesse sentido, a Lei orgânica do município do RJ: Art. 429 - A política de desenvolvimento urbano respeitará os seguintes preceitos: (...) VI - urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes, hipótese em que serão seguidas as seguintes regras: a) laudo técnico do órgão responsável; b) participação da comunidade interessada e das entidades representativas na análise e defi nição das soluções; c) assentamento em localidades próximas dos locais da moradia ou do

trabalho, se necessário o remanejamento; Disponível em

http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4946719/4126916/Lei_Organica_MRJ_comaltdo205.pdf.

274 Em Portugal, o DL n.º 555/99 que trata do regime jurídico da urbanização e edificação traz a seguinte previsão em seu Artigo 109: “Cessação da utilização. 1 - Sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de julho, o presidente da câmara municipal é competente para ordenar e fixar prazo para a cessação da utilização de edifícios ou de suas frações autónomas quando sejam ocupados sem a necessária autorização de utilização ou quando estejam a ser afetos a fim diverso do previsto no respetivo alvará. 2 - Quando os ocupantes dos edifícios ou suas frações não cessem a utilização indevida no prazo fixado, pode a câmara municipal determinar o despejo administrativo, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 92.º 3 - O despejo determinado nos termos do número anterior deve ser sobrestado quando, tratando-se de edifício ou sua fração que estejam a ser utilizados para habitação, o ocupante mostre, por atestado médico, que a execução do mesmo põe em risco de vida, por razão de doença aguda, a pessoa que se encontre no local. 4 - Na situação referida no número anterior, o despejo não pode prosseguir enquanto a câmara municipal não providencie pelo realojamento da pessoa em questão, a expensas do responsável pela utilização indevida, nos termos do artigo anterior.” Disponível em

http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_print_articulado.php?tabela=leis&artigo_id=&nid=625&nversao=&tabel a=leis. Como se vê, está regulamentada a remoção compulsória por ato administrativo, conferindo apenas alguns direitos aos moradores com problemas médicos, revelando a preocupação com a tutela do direito fundamental à saúde.

de anulá-lo275. Por essas razões, não raras vezes são ajuizadas medidas judiciais prévias a fim de obter ordem judicial para remoção das pessoas.

Chega-se nesse momento ao ponto central do presente trabalho, que será objeto de análise mais aprofundada no próximo capítulo. Conforme se verifica, sob a roupagem da legalidade estrita e apoiado em normas de direito interno276 , não raras vezes o Estado está violando inúmeras normas de direitos fundamentais.

Atenta a hipóteses como a presente, a Corte Europeia de Direitos Humanos tem reiterada jurisprudência no sentido de que, todo aquele que tem sob ameaça a sua moradia tem o direito a ter acesso a um tribunal independente que julgue a matéria à luz dos princípios previstos nas normas internacionais, ainda que o desalojamento esteja em conformidade com as normas internas daquele país277. Assim o simples argumento de observância da legalidade não pode ser aceito. Há que se avaliar a influência de eventuais direitos fundamentais e princípios envolvidos.

É nesse contexto que se vislumbra a hipótese de colisão entre os direitos fundamentais à moradia adequada e ao ambiente ecologicamente equilibrado. Muito embora por vezes a discussão jurisprudencial se resuma à análise do descumprimento das determinações constitucionais de proteção aos interesses ambientais dessa e das futuras gerações – avaliando com base nisso a necessidade de remoção das moradias instaladas em determinado local – o que se verifica na realidade é a colisão de direitos fundamentais que deve ser enfrentada e solucionada.

Resolver a tensão acima descrita e verificar quais direitos socorrem as populações vitimadas pelas desocupações forçadas é tarefa das mais difíceis.

275 Dispõe o artigo 161 do Código de Procedimento Administrativo Português ao estabelecer quais atos administrativos são nulos: “art. 161: (...)2 - São, designadamente, nulos: (...) d) Os atos que ofendam o

conteúdo essencial de um direito fundamental;” Disponível em

http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?ficha=101&artigo_id=&nid=2248&pagina=2&ta bela=leis&nversao=&so_miolo=. Acesso em 02/01/2018l

276 O Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, interpretando o artigo 17 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos que fala em “interferência arbitrária” no domicílio, enfrenta a questão esclarecendo ser perfeitamente possível que ela seja considerada de acordo com a lei interna e ao mesmo tempo contrária aos instrumentos jurídicos internacionais, devendo ser feito um juízo acerca do caso concreto e sua conformidade com o princípio da proporcionalidade: “The expression "arbitrary interference" is also relevant to the protection of the right provided for in article 17. In the Committee's view the expression "arbitrary interference" can also extend to interference provided for under the law. The introduction of the concept of arbitrariness is intended to guarantee that even interference provided for by law should be in accordance with the provisions, aims and objectives of the Covenant and should be, in any event, reasonable in the particular circumstances.” (Comentário Geral nº 16, disponível em http://www.refworld.org/docid/453883f922.html . Acesso em 06/09/2015.

277 Ver a respeito Paulic v. Croatia §43, julgado em 22/10/2009 e disponível em http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/Pages/search.aspx#{"appno":["3572/06"],"itemid":["001-95327"]}

A realidade urbana demonstra que, no processo de crescimento das cidades, muitas áreas ficaram alijadas da especulação imobiliária, embora sejam de localização privilegiada e próximas a centros de maior riqueza (como é o caso de encostas de morros, por exemplo).

Assim, a primeira – e talvez mais perversa – constatação é a de que o poder público muitas vezes se utiliza do argumento da violação de normas ambientais para remover a população vulnerável ali instalada. Procura deslocar para regiões mais distantes e menos valorizadas aqueles que já são objeto do esquecimento estatal e que, no mais das vezes, não dispõem da maioria dos elementos já apontados como integrantes do conceito de moradia adequada nos termos do que foi exposto no primeiro capítulo.

A solução dessa questão passará pelo irrefutável argumento de que o interesse público de preservação ambiental não se sobrepõe à dignidade da pessoa humana, uma vez que ela é o objetivo maior e valor fundamental de um Estado Democrático de Direito: sua realização é o verdadeiro interesse da coletividade. Caberá ao aplicador do direito identificar qual dos dois princípios deverá prevalecer no caso concreto, sempre atento ao respeito à dignidade.

Não é demais repetir que, na maioria dos casos, as populações vítimas dessa prática estatal já estão sujeitas a algum tipo de vulnerabilidade, sendo a econômica a mais comum. A grande valorização imobiliária nas áreas urbanas, aliada à existência de áreas ocupadas por populações de baixa renda faz com que essas últimas sejam alvo preferencial, para não dizer exclusivo, do poder público.

Isso faz com que os desalojamentos tenham um custo social ainda maior. O Alto Comissariado das Nações Unidas Para os Direitos Humanos, na já citada ficha informativa 25278 , reforça essa posição, afirmando que:

“As pessoas que tiveram de desocupar o espaço onde viviam também perdem as relações recíprocas – muitas vezes complexas – que tecem uma rede de segurança ou de sobrevivência que as protege dos custos decorrentes da doença, da diminuição de rendimento ou da perda de emprego, e que possibilita a partilha de muitas tarefas. É frequente perderem uma ou mais fontes de subsistência, já que são forçadas a deixarem a área onde tinham trabalho ou fontes de rendimento. Nos casos em que está previsto o realojamento, quase sempre as pessoas são supostas reconstruir as suas casas num lugar distante, com poucas ou nenhumas condições

para a instalação de infraestruturas e serviços (...) preços de transporte mais elevados; (...) perda de lugares culturalmente importantes.”

Portanto, o que se verifica é que não apenas o direito à moradia adequada é vulnerado no contexto das desocupações forçadas: é apenas o mais evidentemente transgredido.

E não é só: sempre que a administração pública não dá total publicidade às suas intenções e estabelece canais de comunicação com os interessados, viola-se o direito à informação e o direito à participação popular; sempre que não há um plano concreto para continuidade dos estudos que se encontravam em curso, viola-se o direito à educação dos removidos; sempre que se retira um cidadão de perto do seu local de trabalho, muitas vezes inviabilizando sua continuidade, viola-se o direito ao trabalho ; as ameaças constantes de destruição de seu lar, aliadas à falta de informação e segurança acerca do futuro não raras vezes afetam a integridade física e mental daqueles que serão alvo da desocupação, violando-se o direito à saúde; sempre que o deslocamento represente aumento significativo da distância entre o deslocado e sua família viola-se o direito à vida familiar.

Uma situação que merece maior reflexão é aquela em que as pessoas que serão removidas ocupam irregularmente a área. Isso porque é farta a jurisprudência no sentido de que o conceito de casa, para que seja juridicamente protegida, independe de ocupação regular279 .

Assim, ainda que sua situação jurídica esteja fragilizada pelo título precário de ocupação da área, não se pode negar qualquer proteção estatal a esses ocupantes no processo de remoção de suas casas. Igualmente, o direito à moradia adequada estará em jogo, com a mesma possibilidade de vulneração da dignidade da pessoa humana dos envolvidos, o que reclama tutela jurídica adequada. 280

Ademais, em regra, a ação do tempo já sanou os vícios porventura existentes no momento da aquisição da posse em virtude da ocorrência da usucapião em qualquer uma de suas modalidades, o que torna essa discussão desnecessária na maioria dos casos.

279 Nesse sentido se pronunciou a Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Bjedov v. Croatia §57,

julgado em 29/05/2012 e disponível em

https://hudoc.echr.coe.int/eng#{"dmdocnumber":["908714"],"itemid":["001-110953"]}; e também em McCann v. the United Kingdom §46, julgado em 13/05/2008, disponível em

https://hudoc.echr.coe.int/eng#{"dmdocnumber":["695820"],"itemid":["001-57943"]}. Acesso em 02/01/2018.

280 Nesse sentido é a lição de INGO WOLFGANG SARLET. Algumas notas sobre a eficácia e efetividade do direito à moradia como direito de defesa. In Revista da Ordem dos Advogados do Brasil/ Rio de Janeiro OAB/RJ – n. 1, v. 24. Rio de Janeiro, 2008, pp. 172 – 174.

Assim, lançadas essas bases, se passará no próximo capítulo a buscar os critérios jurídicos para a solução de conflito entre direitos fundamentais, nas hipóteses em que as remoções forçadas se fundam no argumento de que a ocupação da área viola o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado.

Capítulo 4 – CRITÉRIOS JURÍDICOS PARA A SOLUÇÃO

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