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"Ninguém perturbará a ordem deste país comigo vivo. Ninguém! E eu não aconselharia, quem quer que seja, a tentá-lo" (25 de março de 1961). "Fui vencido pela reação e, assim, deixo o governo (...) Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou me infamam, até com a desculpa da colaboração. Se permanecesse não manteria a confiança e a tranqüilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio, mesmo, que não manteria a própria paz pública" (25 de agosto de 1961).

Cinco meses apenas separam as duas declarações, expressivas do início e do fim desse breve governo marcado pelas contradições e ambigüidades. Ambigüidades tanto decorrentes da personalidade do presidente, quanto das expectativas e posições, reciprocamente contraditórias, dos diversos grupos sociais que o apoiavam (Hélio Jaguaribe). E que teriam efeitos deletérios para o desenvolvimento do sistema democrático no país. Por quê? Até que ponto é correto imputar a um governante tão pesada carga de responsabilidade por um sinistro futuro?

É claro que um homem não faz sozinho a história. Mas é impossível negar a responsabilidade do presidente, num sistema presidencialista, e sobretudo daquele presidente que quis governar "acima dos partidos" e com forte apoio nos militares. Como é difícil esquecer que, pela primeira vez na República de 1946, um presidente civil recebera a faixa presidencial de outro civil, no prazo marcado pela Constituição. O que inspirava grandes esperanças quanto à consolidação do regime democrático. Mas o personalismo autoritário de Jânio, o bonapartismo, o moralismo que desemboca no golpismo — temas da discussão nas páginas precedentes — contribuiriam, de maneira inequívoca, para a crise que "se resolve" em 1964.

Em primeiro lugar, pela consolidação da intervenção militar na cena política, graças ao papel privilegiado concedido aos militares, em detrimento das forças civis. Em segundo lugar, pela exacerbação da extrema-direita organizada, que se mobiliza sobre- tudo pelos aspectos contraditórios da "política externa independente". Em terceiro lugar, pela conseqüente radicalização, no outro extremo, dos setores populares e de esquerda. Estes, profundamente lesados pelo não cumprimento das promessas de efe- tivas transformações sociais, sobrecarregariam o governo Goulart de demandas insustentáveis num sistema político ainda dominado pelos interesses das oligarquias, das elites financeiras e do capitalismo internacional, afinal não atingidos pelos raios puni- tivos do moralismo janista.

ambíguo liberalismo, ao permitir a ascensão de Carlos Lacerda, que se torna, para a opinião pública, o líder nacional do partido. Revigorava-se, assim, o golpismo, fugazmente amortecido na segunda metade do governo Kubitschek pela expectativa de vitória nas eleições com Jânio. O novo golpismo, desta vez ideologicamente apoiado no anticomunismo e no antinacionalismo — e não mais no antigetulismo — dirigia-se contra supostas disposições golpistas do presidente, na reedição dos "contragolpes preventivos". Significava, também, o nítido distanciamento entre a ala radical da UDN carioca e o udenismo dos "históricos" (Milton Campos, Afonso Arinos, Adaucto Lúcio Cardoso, entre outros). Significava, acima de tudo, que a nova frustração com uma falsa vitória (os udenistas reclamavam da marginalização política imposta por Jânio) não seria absorvida pela retórica dos bacharéis. E assim como a UDN aceitaria, até com certo alívio, a renúncia de Jânio, aceitaria também o regime militar instalado após a deposição do presidente João Goulart (M. V. Benevides, op. cit.).

Carlos Lacerda seria o avesso do autoritarismo janista. E o avesso de seu golpismo. Pois ao golpe de Jânio responderia o golpe de Lacerda, ou vice-versa, clamando, ambos, por um certo tipo de intervenção militar (H. Jaguaribe).

Os fatos imediatamente precedentes à renúncia têm, como protagonista, justamente o governador da Guanabara. O pano de fundo compõe-se do clima de denúncias sobre a "comunização" do Itamarati e, sobretudo, pelo profundo ressentimento de Lacerda — que não era considerado, como o desejava, "o parceiro privilegiado" do governo federal. Num primeiro momento trata-se do famoso "caso da mala". Lacerda sente-se insultado pelo fato de sua bagagem ter sido colocada na portaria do palácio da Alvorada, onde esperava hospedagem "oficial". Num segundo momento, Lacerda (e não por acaso a 24 de agosto) pronuncia um violento discurso na televisão acusando o presidente de intenções golpistas. Declara ter sido duas vezes convidado pelo Ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, para participar do golpe (lembre-se que esta era uma atitude comum a Lacerda; entre outras coisas, denunciara o convite para participar do levante de Aragarças, em fins de 1959, por seus próprios aliados, oficiais da Aeronáutica).

As denúncias de Lacerda causam um grande impacto e a Câmara dos Deputados solicita o comparecimento do Ministro da Justiça. No dia seguinte, após presidir as solenidades do Dia do Soldado, Jânio envia ao Congresso documento apresentando sua renúncia à presidência da República.

Aparentemente Jânio esperava voltar "nos braços do povo". Confiava demais na "ignorância das massas" e naquilo que Max Scheller chama "democracia das emoções". Confiava no temor dos militares e da direita em geral com a "ameaça" da posse de João Goulart (pois era o herdeiro de Getúlio, de memória associada a temíveis pactos "comunistas" ou "sindicalistas"...). Confiava, também, no temor da esquerda com a possível instalação de uma junta militar no governo, se declarado acéfalo, pois o vice- presidente encontrava-se em missão oficial na China. E assim, contando otimisticamente com a repercussão na opinião pública (afinal, eram seis milhões de votos!), entre os militares, na

direita e na esquerda, imaginava, talvez, o ressurgimento de um novo "queremismo". Um "queremos Jânio" (num pastiche ao queremismo getulista que garantira a volta de Vargas em 1950) que lhe daria respaldo para reassumir a Presidência com poderes discricionários. Talvez sonhasse mais longe, do exemplo de Getúlio para a história de De Gaulle.

As intenções do presidente ficariam mais claras com o depoimento de seu secretário de imprensa, Carlos Castello Branco, que lhe atribui as seguintes declarações, ainda na Base Aérea de Cumbica, onde se refugiara após a renúncia: "Não farei nada para voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo. O Brasil, no momento, precisa de três coisas: autoridade, capacidade de trabalho e coragem e ra- pidez nas decisões. Atrás de mim não fica ninguém, mas ninguém, que reúna esses três requisitos" (Realidade, nov., 1967).

Não houve a esperada comoção popular. Não havia, aliás, nenhum "dispositivo sindical" — como ocorreria para a posse de Goulart — que pudesse ser mobilizado para neutralizar a renúncia. Jânio incompatibilizara-se com o movimento sindical pela própria política de "despolitizar" o Ministério do Trabalho e a Previdência Social.

A maioria no Congresso, representada pela aliança PSD-PTB, prontamente aceitou a renúncia. O presidente da Câmara, Ranieri Mazzili, assume a Presidência, interinamente, e a questão da investidura de Goulart passa a dominar o cenário político, numa gravíssima conjuntura conspiratória e golpista, a partir do momento em que os ministros militares deixaram clara sua oposição à posse do vice-presidente. Pela ação legalista liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola e pelo comando do III Exército, com apoio de amplos setores sociais e políticos, o golpe é evitado e o parlamentarismo é adotado como solução de compromisso. João Goulart assume a chefia do governo a sete de setembro, iniciando uma breve experiência parlamentarista. Seu governo, marcado por inúmeras crises, porém polarizador da mais intensa mobilização social e política da história brasileira contemporânea, contribuiria para acuar a direita em posições cada vez mais gol- pistas e reacionárias.

Se a argumentação que atesta a tentativa de golpe de Jânio tem sérios respaldos — inclusive pelas suas declarações posteriores — é preciso levar em conta, igualmente, o clima altamente "golpista", alimentado por Lacerda e seguidores. Seria possível falar, talvez, de dois golpes em marcha; o de Jânio, pela volta ao governo com poderes especiais, e o de Lacerda, que certamente ainda acalentava o "estado de exceção" defendido abertamente desde os tempos de Getúlio Vargas. Seria um golpe da direita militar, a mesma que tentaria, em vão, impedir a investidura constitucional do vice Goulart. Nesse sentido, o golpe gorado de 1961, para Lacerda ou para Jânio, fora um ensaio de 64.

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campanha contra a corrupção. Parece evidente que há muito mais oportunismo (e nenhuma ingenuidade) neste estilo que pretende fa- zer crer na força intrínseca da austeridade e da honestidade para impulsionar o desenvolvimento e consolidar a justiça social. Em momento algum entram em causa o questionamento do regime capitalista, as relações de forças, o problema das classes, enfim. Aliás, o janismo nunca foi um movimento para organizar as massas, mas para manipulá-las, no pior sentido do populismo autoritário e, justamente, desmobilizador no plano da verdadeira participação.

Convém lembrar, ainda, que a vassoura não era o símbolo inocente que sua inspiração doméstica pode insinuar. Mesmo apelando para as imagens mais tolas, a vassoura tanto pode servir para varrer, como para, na superstição popular, afastar visitantes indesejáveis. Na discussão sobre o moralismo janista já se disse que a varredura implicava em diversas versões de "sujeira". Que podia ser a "sujeira da corrupção", como também a da "plebe" que quer se mostrar — em toda sua "sujeira" — participar, rei- vindicar... "sujar o palco", enfim (Souza e Lamounier, op. cit.).

O mais importante é entender que o império da vassoura preparou o caminho para o domínio da espada. A política autoritária e mesquinha, inspirada na máxima "governar é punir", transformara o país num imenso quartel de inquisição. O incentivo às delações, o aplauso às "apurações rigorosas" (em muitos casos sem direito aos processos competentes de defesa) nas numerosas comissões de sindicâncias, com a responsabilidade centralizada nas mãos dos militares, abriria o caminho para a instalação do esquema burocrático-punitivo após 64.

Ainda quanto aos militares, observe-se que a impetuosidade e o empirismo do presidente no trato das graves questões econômicas e administrativas permitia a eclosão das divergências entre seus ministros (sobre remessa de lucros, sobre a 204, etc.) e tornava inviável a proposta de uma assessoria técnica para o planejamento. Tal situação levaria os militares aos postos realmente importantes do governo, especialmente os membros da Casa Militar, que, organizada e ativa, incumbia-se das grandes tarefas — como, por exemplo, os encontros com os governadores nos estados — e da "luta contra a corrupção e a subversão". Assim, o governo Quadros teria contribuído decisivamente para reforçar o papel "avalista" das Forças Armadas, na linha seguida após 64, e na antiga lição dos liberais em descaminho, de que "fora do Exército não há salvação".

O estilo de Jânio e sua renúncia contribuíram, também, para a desmoralização do processo eleitoral e, conseqüentemente, da participação democrática. Significa o desprezo, profundamente arraigado no pensamento elitista (do qual o populismo acaba sendo o outro lado da moeda), pela legitimidade da participação popular. A descrença consagrada de que "o povo não sabe votar" termina por se tornar uma potente arma ideológica da direita, para incutir no povo a percepção negativa de seus direitos políticos de cidadãos. Se seu voto nada vale, para que votar? É nesse sentido que se pode falar, como o jornalista Mino Carta, que "homens como Jânio contribuíram para manter o Brasil distante da contemporaneidade".

É nesse sentido que ao janismo não interessa, efetivamente, o desenvolvimento político e social do país. A demagogia teatral, o moralismo maniqueísta, o personalismo arrogante, só podem vingar no atraso decorrente da fragilidade das instituições e da mani- pulação das classes populares.

Como indica Francisco Weffort, "o populismo trás em si a inconsistência que conduz inevitavelmente à traição. Não obstante, o mais hipócrita dos populistas nunca pode ser totalmente infiel à sua massa; ele trairá, mas há limites para a traição além dos quais a imagem do líder começa a se dissolver". Vinte anos transcorridos após a renúncia, o ex-presidente não consegue explicar o gesto. A traição à massa talvez esteja mais clara numa de suas declarações significativas: "O verdadeiro estado democrá- tico é o elitário" (Jornal do Brasil, 29/4/76).

Retomando a análise de Weffort, "donde vem a força que a massa ilusoriamente atribui ao líder? Dela mesma, evidentemente. Quadros foi apenas uma expressão do impulso popular, sua ideologia ambígua foi apenas a expressão mistificada e mistificadora das condições de existência do proletariado, num momento determinado de sua

formação como classe". Mas o falso carisma e os vícios do populismo autoritário são rechaçados, e cada vez com mais vigor, à medida que os trabalhadores organizam-se. E dirigem seu movimento, a partir das bases e com lideranças autênticas, para a construção da democracia.

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