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Repercussões do romance no mundo acadêmico

Prolegômenos a uma obra sufocante

1.5 Repercussões do romance no mundo acadêmico

Raramente um estudo parte do nada para a sua realização. O desenvolvimento de nossa pesquisa sobre a configuração interna de Cidade de Deus também inspira-se em trabalhos críticos que a antecederam.

Esta situação singulariza-se mais ainda no caso do romance de Paulo Lins, quando se relembra que ele é o resultado de uma sugestão de um crítico literário ao autor que, por sua vez, havia trabalhado anos a fio como colaborador de uma pesquisa que era de antropologia e não de literatura.

Trata-se, assim, de uma obra que nasce de uma confluência de diversas áreas e de distintos autores, portanto um texto ficcional marcado pelo acadêmico e pela sua crítica.

Destacam-se aqui alguns trabalhos que tanto o autor quanto sua obra obtiveram nos últimos tempos.

Com referência a artigos publicados em jornal, revista ou capítulos de livros, é preciso colocar, em primeiro lugar, o trabalho de Roberto Schwarz, que faz um ensaio intitulado Cidade de Deus, publicado em seu livro Seqüências brasileiras (1999). Neste escrito, o romance de Paulo Lins é visto por ele como uma “aventura artística fora do comum” graças ao “interesse explosivo do assunto, o tamanho da empresa, a sua dificuldade, o ponto de vista interno e diferente” (1999, p. 163). Seu ensaio serviu como base para inúmeros trabalhos posteriores sobre a obra de Lins.

Schwarz, enquanto crítico literário, apresenta-se, pois, como um padrinho do romance, uma vez que no contexto acadêmico brasileiro sua opinião é há muito tempo sempre digna de respeito, seja pelos temas que tem trabalhado (Machado de Assis e Guimarães Rosa, dentre outros), seja pela linhagem crítica a que se filia. Além de professor célebre da Unicamp, ele representa uma das vertentes que dão continuidade à obra teórica de Antonio Cândido, considerado o introdutor da Teoria Literária enquanto ciência no Brasil. Além disso, Roberto Schwarz foi quem sugeriu ao autor que escrevesse seu romance a partir do seu próprio poema.

Em seguida, para tratar da crítica a respeito do romance, Luciana Artacho Penna abre o terreno ao escrever A bala e a fala (1998), um texto apaixonado de defesa a Cidade de Deus. Ela enfrenta questões polêmicas, tais como as avaliações negativas feitas ao livro quanto à qualidade literária da prosa e as idéias preconcebidas em relação à origem e à trajetória de vida do autor e conclui pela confirmação de que se trata de uma obra-prima.

Já Vilma Arêas, em Errando nas quinas da Cidade de Deus (1998), trata do assunto destacando algumas questões pertinentes à análise do romance. Dentre elas está a relação bastante visível da interdependência entre ficção e realidade. As preocupações do leitor com a situação real da violência nos ambientes urbanos de todo o país deram seqüência ao despontar de obras e críticas apaixonadas escritas por autores comprometidos com seu tempo. Preocupa-se também em desvendar a organização interna do romance, que apresenta a gesta popular na composição da personagem Mané Galinha e da saga no suceder das gerações.

Por sua vez, Cléa Corrêa de Mello escreve o artigo O desafio crítico de Cidade de Deus (2000) com vistas a analisar o teor e comparar as críticas sobre a obra de Paulo Lins, e encontra conflitos teóricos nos estudos literários contemporâneos. Ela identifica visões diversas e contraditórias acerca da própria conceituação do “literário” no meio acadêmico e literário brasileiro. Os critérios de estabelecimento do cânone na atualidade não estariam, assim, claros ou precisos. Além disso, ela toma outra vertente de análise, destacando o aspecto da construção discursiva do que é nacional, feita pelos excluídos.

Seguindo outra vertente, Karl Erik Schollhammer, em Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira (2000), trata dos espaços urbanos retratados na literatura brasileira. Segundo ele, Paulo Lins se utilizaria de uma técnica naturalista na construção de sua obra, recriando, assim, uma linguagem próxima àquela dos malandros do fim do século XIX.

Em Do sertão ao subúrbio: Guimarães Rosa e Paulo Lins (2000), Eduardo de Assis Duarte relaciona Cidade de Deus a Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa. Ambas as obras teriam como semelhanças o agrupamento de histórias, a pesquisa lingüística e mesmo a matéria narrativa. A diferença torna-se evidente quando se confrontam os valores morais, que têm o amparo dos jagunços e nenhuma importância para os narcotraficantes, e a organização da sociedade que, se guarda práticas de solidariedade no sertão, apresenta o auge do individualismo e do consumismo na favela.

Na palestra Os pobres na literatura: naturalismo e descendência (2006), proferida durante um congresso de literatura, Iná Camargo Costa faz uma comparação da narrativa de Lins com O cortiço de Aluísio Azevedo. Aproveitando-se de seu conhecimento na área do teatro, Costa tenta tirar o estigma que se abateu sobre a escola naturalista e celebra Cidade de Deus como a obra que reabilitou o naturalismo no momento contemporâneo.

Victor Hugo A. Pereira, em seu artigo Cidades fragmentadas e intelectuais partidos (2003), preocupa-se em vincular o romance de Paulo Lins à tradição literária, seja ela da épica ou da narrativa realista. Ele o enxerga como uma reedição da épica “numa ótica comprometida com a

contemporaneidade” (2003, p. 203). Isso significa que, nos moldes tradicionais, a épica já não é mais possível devido à dessacralização da sociedade, mas pode ser recriada se inserida num contexto válido. Ele faz um comentário também sobre a versão cinematográfica, que teria sofrido “um enfraquecimento do potencial crítico” (2003, p. 211) e cuja escassez de contextualização tenderia a espetacularizar o tema da violência.

Com referência a resenhas jornalísticas, Marcelo Rubens Paiva escreve Paulo Lins é um autor e tanto (1997), onde acolhe o romance com louvor. Em seu texto publicado na Folha de S. Paulo em 16 de agosto de 1997, ele celebra o trabalho do autor que se utiliza de uma linguagem crua para falar de personagens que representam “um Brasil de poesia, sangue e mangues”.

Quanto a teses e dissertações apresentados na universidade brasileira, tivemos acesso aos trabalhos de Tailze Melo Ferreira e de Luiz Eduardo Franco do Amaral e sabemos da existência, sem ter obtido acesso porém, das pesquisas de Anderson Luís Nunes da Mata, de Raphael Martins da Silva e de Luciana de Carvalho.

Ferreira realiza a dissertação de mestrado Tessituras da violência em Cidade de Deus, de Paulo Lins (2003), que pretende servir como espaço de discussão interdisciplinar ao abordar o tema da violência em suas diversas facetas na composição narrativa do romance. Para ela, Cidade de Deus seria uma “forma estética de reflexão sobre o fenômeno da violência” (2003, p. 20).

Na dissertação Vozes da favela: representação da favela em Carolina de Jesus, Paulo Lins e Luiz Paulo Corrêa e Castro (2003), Amaral estuda as obras de três autores – Paulo Lins, Carolina de Jesus e Luiz Paulo Corrêa e Castro –, a fim de investigar as manifestações artísticas criadas nas favelas brasileiras e refinar o conceito do que é chamado por ele de “literatura de favela”. Sua preocupação volta-se para a estranheza que, segundo ele, a redação do romance provoca no leitor: “É como se também a gramática, a língua culta fosse violentada” (2003, p. 68). O romance traria um registro de tradições populares, falas e expressões da comunidade favelada contemporânea.

O objetivo de da Mata, em O silêncio das crianças: representações da infância na narrativa brasileira contemporânea (2006), consiste em investigar os lugares reservados à infância em seis narrativas brasileiras no período de 1990 a 2004. Segundo ele, em Cidade de Deus, as crianças são destituídas de seus traços infantis e têm um comportamento aproximado ao dos adultos.

A dissertação de Silva, intitulada A barbárie como arte: Tendências da literatura e do cinema brasileiro contemporâneo (2005), faz um estudo comparado entre obras de literatura que têm a violência como temática e suas respectivas versões cinematográficas.

Carvalho, em Uma leitura de Cidade de Deus de Paulo Lins (2007), parte do instrumental teórico da semiótica para fazer uma leitura detalhada do romance e lembrar as relações deste com o filme de Fernando Meirelles.

Com referência ao cinema, ou seja, a transformação desse trabalho em filme, existem também alguns trabalhos. Dentre eles, podemos destacar, por exemplo, o artigo Dialética da marginalidade (2004) de João Cezar de Castro Rocha, que faz uma comparação entre romance e filme, lamentando a “determinação do foco narrativo, atribuído ao adolescente Busca-Pé” (2004, p. 6). A determinação de um narrador-personagem e sua “extraordinária simplificação” (op. cit., p. 6) serviriam às exigências do mercado uma vez que favorecem a instalação de um tom de comédia ao dar importância exagerada à inexperiência sexual do protagonista, além da suavização do horror da história.

Beatriz Jaguaribe, em seu artigo O choque do real: a violência e as estéticas do realismo midiático e literário (2003), faz uma avaliação da construção midiática do cotidiano na sociedade contemporânea globalizada. Segundo ela, algumas produções estéticas realistas brasileiras pretenderiam criar um outro “real”, diferente daquele produzido pelos meios de comunicação de massa. Nesse esforço de simulação de um “real”, pode ocorrer o que ela chama de “choque do real”, que seria “um recurso de impacto estético que realça a violência, a pobreza, a favela e o tráfico de drogas” (2003, p. 2). Para esta teórica, o filme Cidade de Deus seria uma dessas produções do realismo contemporâneo que geram uma saturação de imagens, no caso, uma

saturação de imagens da violência. O “choque do real” acontece porque há um momento de suspensão da ficcionalidade quando uma criança atira no pé de outra a mando do traficante Zé Pequeno. Essa cena seria, portanto, dramaticamente verossímil aos olhos da estudiosa.

Paulo Jorge Ribeiro, em seu artigo Cidade de Deus na zona de contato: alguns impasses da crítica cultural contemporânea (2003), volta- se para a crítica da falta de mediações ou contextualizações que funcionaria, para ele, como uma celebração da estética da violência. Ele segue a vertente do estudo da recepção e condena a estigmatização social que o filme teria promovido na população que vive na Cidade de Deus.

Este trabalho pretende deixar de lado tudo o que se refere ao filme e voltar-se exclusivamente ao romance, não porque as relações entre o texto do romance e a sua representação fílmica não suscitem reflexões interessantes, mas para restringir o âmbito da pesquisa a um mestrado. Investigar como as categorias da narrativa trabalhadas pelo autor podem determinar a literariedade ou não do romance, pareceu-nos suficiente para este tipo de trabalho acadêmico.

Dentre todos esses trabalhos optamos por aproveitar inicialmente em nossa proposta de pesquisa os estudos de Vilma Arêas, Tailze Melo Ferreira, João Cezar de Castro Rocha, Cléa Corrêa de Mello e Roberto Schwarz. Isso devido ao modo como eles visualizam a configuração interna do texto, valorizando-o em seu aspecto estético e em sua originalidade. É a partir da contribuição desses autores que partimos em busca das respostas às perguntas aqui colocadas.

A literatura renovando o locus e a

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