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CAPÍTULO II: A repetição como estratégia de inter e intratextualidade

3. A repetição em efeito de mise en abyme

Mrs Dalloway representou uma separação em relação ao modo de escrever vigente, baseado em modelos e formas repetitivas. No romance de Woolf «o modo como algo é dito adquire maior importância do que aquilo que é realmente afirmado» (Duarte 114). Cunningham tenta também, à sua maneira, deixar a sua marca de novidade no processo de contar para evidenciar a criatividade da sua narrativa e fá-lo partindo da dependência (ou diálogo) intertextual com o romance canónico. Algumas das marcas idiossincráticas da sua escrita são visíveis em aspectos técnicos que resultam numa “série infinita de espelhos”, mas mantendo sempre um elo de ligação com o romance base.

Através de uma análise mais atenta de alguns casos de duplicação é possível identificar elementos que constituem a marca própria do autor contemporâneo. Atente-se na cena da secção “Mrs Dalloway” – quando Clarissa Vaughan está na florista, ouve um som forte de algo a despedaçar-se e vê a cabeça de uma figura feminina (Meryl Streep ou Vanessa Redgrave) a emergir da porta de uma roulotte e a recolher-se logo a seguir:

‘What was that?’ Barbara says. She and Clarissa go to the window. ‘I think it’s the movie people.’

‘Probably. They’ve been filming out there all morning.’ ‘Do you know what it is?’

‘No’, she says (…) Clarissa remains, looking out at the welter of trucks and trailers. Suddenly the door to one of the trailers opens, and a famous head emerges. It is a woman’s head, quite a distance away, seen in profile, like the head of a coin, and while Clarissa cannot immediately identify her (Maryl Streep? Vanessa Redgrave?) she knows without question that the woman is a movie star. (Cunningham 26-27)

Esta passagem suscita de imediato no leitor um flash de reconhecimento de uma passagem análoga em Mrs Dalloway, quando Clarissa, também na florista, ouve o som tipo disparo do cano de escape de um carro:

Oh! A pistol shot in the street outside!

The violent explosion which made Mrs Dalloway jump and Miss Pym go to the window and apologise came from a motor car which had drawn to the side of the pavement precisely opposite Mulberry’s shop window. Passers-by who, of course, stopped and stared, had just time to see a face of the very great importance against the dove-grey upholstery (…)

But nobody knew whose face had been seen. Was it the Prince of Wales’s, the Queen’s, the Prime Minister’s? Whose face was it? Nobody knew. (Woolf 15)

Em Mrs Dalloway, este é um episódio simples que insere a personagem principal no movimento de uma cidade nos anos vinte em interacção com outras personagens. Apesar da sua aparente banalidade, a cena dá lugar a interpretações várias e díspares. As menos arrebatadas apontam para a manifestação de deleite e avidez de Clarissa pela vida. Assim, o carro, embora emitindo um som desagradável, faz parte da existência real, daí que se enquadre no mesmo cenário dos objectos e acções que provocam a sensação de maravilha pela vida. Outras, numa perspectiva existencialista, vêem o episódio como uma ocasião de experiência partilhada: «An anonymity provided by shared experience relieves humans of the loneliness of individual existence» (Littleton). Ainda há outras que propõem uma explicação de ordem técnica, vendo aqui a aplicação de uma técnica narrativa cinemática: «(…) an elegant closed motor car going up Bond Street provides a visual object upon which many people project their fantasies, allowing Woolf to pan from mind to mind with great economy and directness, and to capture the chaos in an image.» (Showalter xxiii). Todas as interpretações trazem elementos que

permitem uma compreensão mais vasta das potencialidades da cena. Em termos de construção narrativa, resta acrescentar que esta passagem serve para apresentar a personagem Septimus e a sua visão distópica.

É de notar, da comparação rápida da cena nas duas obras, a diferença dada à exploração narrativa, em The Hours, da qual o autor retira apenas o essencial: a introdução, por encaixe, de um pequeno episódio de aparição de figuras famosas e a consequente atracção e curiosidade que isso suscita na plebe. As figuras representantes do poder real ou político dão lugar a figuras mediáticas, mas do mundo do cinema, sinal inequívoco dos valores da sociedade actual. É relevante a divagação sobre o fascínio pelas celebridades, que parecem viver num mundo de estrelas, num éter diferente, que as fará imortais, mas a marca de Cunningham está num outro pormenor. A escolha das estrelas de cinema que se crê serem a figura misteriosa é consoante com a simetria geral do romance, pois são mencionadas três mulheres: Meryl Streep, Susan Sarandon e Vanessa Redgrave: as duas primeiras são americanas, com a idade aproximada de Clarissa; a última é inglesa e na altura da concepção do romance já era sexagenária. Mais notável do que serem todas mulheres e da idade da personagem principal de The Hours é o facto de uma delas ter acabado de entrar num filme em que desempenhava o papel de Clarissa Dalloway.

No dia 6 de Março de 1997 estreou no Reino Unido o filme Mrs Dalloway, uma adaptação fiel do romance de Woolf, segundo a crítica (Maslin), dirigido por Marleen Gorris e tendo no elenco personagens como Natascha McElhone, (Clarissa Dalloway), Rupert Graves (Septimus), Michael Kitchen (Peter Walsh), Lena Headey (jovem Sally), John Standing (Richard Dalloway) para além de Vanessa Redgrave que desempenhou o papel de Mrs Dalloway (a Clarissa de meia-idade). Em Novembro de 1998 foi publicado o livro The Hours, o que significa que Cunningham tinha conhecimento do filme e colocou o nome da actriz inglesa no episódio do seu romance propositadamente. Com que finalidade, pergunta-se? O que existe de evidente nesta relação intertextual é um exercício de jogo, que aponta para a (des)construção do texto e, simultaneamente para as relações intricadas de que este se nutre.

Uma vez que Cunningham teve de ser um leitor atento de Woolf, usando a sua biografia e obra como alicerces e moldura para The Hours, é de crer que tenha lido o ensaio de Woolf “The Cinema” (publicado em 1926), considerado um dos primeiros ensaios ingleses a identificar o potencial do cinema no modernismo. Neste ensaio Woolf admite que o cinema pode produzir sentidos muito diferentes, mas não necessariamente inferiores aos produzidos pela literatura e reconhece que o cinema é detentor de uma estética viável e independente (Humm 190). Quererá então Cunningham, na senda de Woolf, comprovar a crença da autora na validade do cinema? Quererá ir mais além e mostrar que o cinema pode viver da literatura e esta, por sua vez, do cinema, numa sucessão regressiva e progressiva? Diz-se progressiva, tendo em conta o facto insólito (ou não) de Maryl Streep ter representado o papel da personagem Clarissa Vaughan (a homóloga de Clarissa Dalloway) no filme The Hours que estreou em 27 de Dezembro de 2002. De qualquer forma, e independentemente de outras possíveis interpretações, a aparição de uma estrela de cinema é uma marca do tempo, na qual a modalidade narrativa por excelência está patente num outro meio que não o romance e cujos recursos técnicos e possibilidades narratológicas atraem todas as camadas da população.

Se nos fixarmos apenas na alusão, de cariz metonímico, centrada na actriz Vanessa Redgrave que representa o filme Mrs Dalloway que, por sua vez, representa o romance de Woolf, estamos na presença de uma representação segundo a mise en abyme. Aqui, constitui uma forma indirecta de auto-representação, denunciando também a dimensão reflexiva que tem vindo a ser evocada neste trabalho. No exemplo deste episódio, a percepção que é deixada transparecer está dissolvida no jogo de associações. De forma redundante, (re)lembra o leitor do elo íntimo que a obra contemporânea tem com o romance woolfiano.

Embora não seja um recurso exclusivo da narrativa pós-modernista, a mise en abyme é explorada e desenvolvida pelos autores pós-modernos de forma extensiva. McHale qualifica esta ficção de “abismal”: «mise-en-abyme is another form of short-circuit, another disruption of the logic of narrative hierarchy, every bit as disquieting as a character stepping across the ontological threshold to a different narrative level» (125). Consiste num processo de duplicação especular, efeito perseguido por Cunningham, de

forma aberta e sistemática. Confere a visão de profundidade e de reduplicação reduzida, tal como foi descrita pelo criador, André Gide (Reis 225), também sugerida pela imagem das caixas chinesas ou das bonecas russas (matrioskas). Esta, entre outras estratégias que integram aquilo que McHale chama “recursive structure” e que dão lugar a mundos de caixas chinesas, põe em evidência a estrutura (ontológica, segundo McHale) e simultaneamente as interligações no seio da própria obra e/ou com outras obras de arte. Esta técnica de escrita associa-se à característica da circularidade que Virginia Woolf atribuía à ficção, quando, em A Room of One’s Own, comparou a ficção a uma teia de aranha (43).

Em The Hours, o exemplo mais acabado de como a narrativa se observa a si própria, projectando em profundidade uma representação reduzida de si mesmo verifica-se quando, na secção “Mrs Dalloway” o leitor se apercebe que a personagem Richard Brown escreveu um romance, cujo nome não é, sintomaticamente, revelado, e que gira à volta de uma personagem feminina, “uma” Mrs Dalloway, ou seja, o romance de Richard está embutido no romance The Hours, mais especificamente na secção “Mrs Dalloway”. Para provocar o efeito de entrosamento maior, ainda ficámos a saber que a personagem do romance de Richard é a própria Clarissa Vaughan (o alter-ego de Clarissa Dalloway).

A primeira referência ao romance de Richard surge indirectamente por entre as lucubrações de uma personagem menor, Walter Hardy, quando este encontra Clarissa Vaughan: «Yes, she’s the woman in the book, the subject of a much antecipated novel by an almost legendary writer (…)» (Cunningham 16). Posteriormente, Clarissa voltará a ser designada, enigmaticamente como «the woman in the book» (93). O comentário reflexivo de Clarissa Vaughan a propósito do mundo pessoal de Richard serve para elucidar um pouco as tendências do escritor que teima em fazer da vida ficção: «It is only after knowing him for some time that you begin to realize you are, to him, an essentially fictional character, one he has invested with nearly limitless capacities for tragedy and comedy (…)» (61).

Se bem que Clarissa revele conhecer Richard, não é certo que ela tenha consciência de fazer parte do romance dele, nem que conheça as afinidades que tem com a personagem Mrs Dalloway de Woolf. Quando Louis a confronta sobre a estranheza do romance de Richard, por conter pessoas da vida “real”, ela dá uma interpretação psicoliterária: «‘That isn’t me,’ she says. ‘It’s Richard’s fantasy about some woman who vaguely resembles me.’» (129). Momentos antes do suicídio de Richard, é apenas para ser condescendente com ele, na tentativa de o convencer a afastar-se da janela, que ela, de forma desprendida, assume ser Mrs Dalloway: «‘Remember her? Your alter ego? Whatever became of her?’/‘This is her. I’m her. I need you to come inside, will you, please?’» (198). Na verdade, ter a alcunha Dalloway é-lhe igual a ter uma alcunha de outra qualquer grandiosa personagem feminina.

Não obstante, este desconhecimento incrementa o lado do jogo de associações de que o leitor se vai apercebendo. Por exemplo, por entre o discurso desconexo que Richard mantém com Clarissa (por causa do avançado estado de doença deste), o poeta e escritor revela insatisfação por não ter conseguido dizer tudo o que desejava no romance e diz que lhe deu um final chocante (66), o que lembra o tipo de final que Woolf pensara dar ao seu livro – matar Clarissa Dalloway. A ambiguidade do discurso e o jogo deixam o leitor na dúvida. Estaria Richard a delirar? Ele já não distinguia muito bem as fronteiras do tempo, poderia pois estar a viver no presente um momento de indecisão sobre a feitura do seu romance que já teria acontecido. A ambiguidade torna-se mais problemática quando se tenta identificar o responsável pelo discurso na expressão: «It’s always wonderful to see you, Mrs Dalloway» (67). A frase pode pertencer ao nível diegético da secção “Mrs Dalloway”: a personagem Richard dirige-se (em tom de gracejo) a Clarissa Vaughan, ou pode pertencer ao nível hipodiegético, o romance de Richard, e então qualquer entidade a pode ter proferido.

É novamente através de outra personagem secundária, Louis Waters, que se desvenda um pouco mais sobre o livro de Richard. Louis considera-o um livro estranho por versar sobre a vida de pessoas reais: inclui a própria Clarissa Vaughan (a personagem do livro tem o mesmo nome de Clarissa – queixa-se Louis), inclui o próprio Louis, relegado a figurante, e inclusive a mãe de Richard que ele (autor) mata (ela suicida-se de forma

inesperada no fim do livro). Confirma-se, deste modo, que esta mise en abyme consiste na duplicação quase perfeita da narrativa da secção “Mrs Dalloway” de The Hours. Preenche os três critérios de uma verdadeira mise en abyme, segundo McHale:

(…) first, it is a nested or embedded representation, occupying a narrative level inferior to that of the primary, diagetic narrative world; secondly, this nested representation

resembles (…) something of the level of the primary, diagetic world; and thirdly, this

“something” that it resembles must constitute some salient and continuous aspect of the primary world, salient and continuous enough that we are willing to say the nested representation reproduces or duplicates the primary representation as a whole. (124)

Estes dois exemplos de mise en abyme denotam (por entre as ramificações que vão estabelecendo para criar a representação reduzida) ligações não apenas com a narrativa da secção “Mrs Dalloway” mas também com o romance de Woolf. Se fosse pertinente continuar a análise do romance de Cunningham em busca de exemplos menos acabados de mise en abyme, poder-se-ia assinalar outros, como o caso da cena em “Mrs Brown”, quando Laura está no quarto de hotel a ler a passagem de Mrs Dalloway referente aos versos de Shakespeare «Fear no more the heat o’ the sun» (Cunningham 151), que no romance de Woolf estão a ser lidos por Clarissa num livro exposto na montra da loja do senhor Hatchard (Woolf 10). Esta estratégia denuncia a mencionada estrutura de encaixe tipo caixas chinesas ou bonecas russas. A própria Virginia Woolf usou a comparação da imagem das caixas chinesas para se referir aos sons da cidade na história “Kew Gardens”, publicada em 1921: «(…) like a vast nest of Chinese boxes all of wrought steel turning ceaselessly one within another the city murmured» (14). O efeito conseguido é o de retardamento da acção principal, quando as associações se diluem em jogo e, igualmente, de regressão que indicia a (auto)consciência e (auto)contemplação do processo de criação da obra de arte. De um ponto de vista mais vasto, pode entender-se o romance The Hours, como uma forma integrada numa sucessão de bonecas russas, todas elas obedecendo ao tema da mundividência de Mrs Dalloway e do universo de Woolf.

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