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É preciso dizer que, a rigor, não se trata, para Freud, de deduzir do mecanismo das alucinações toda a atividade perceptiva, nem, aliás, por outro lado, de reduzir o fenômeno alucinatório a uma ordem exclusivamente sensorial, e, menos ainda, de de- finir a verdade dos fenômenos psíquicos em função de um sistema do conhecimento verdadeiro (E, p. 81). Primeiro porque, como vimos, é a partir da análise dos sonhos, e não da vida desperta, que Freud fornece uma explicação acerca do mecanismo das alu- cinações. Tal como nos adverte Lacan, se Freud chama a recordação primária de aluci-

nação, é porque “ele coloca a percepção autêntica em outro lugar” (S II, p. 184). Se- gundo, as alucinações, em que pese manifestarem o caráter sensível da imagem, não levam necessariamente à crença na realidade do objeto alucinado-percebido. Nesse sentido, é preciso considerar os casos em que alucinação designa um fenômeno exclu- sivamente psíquico, sem alterações neurológicas56. No Suplemento metapsicológico à

teoria dos sonhos (1917[1915]/2006), Freud dirá que a alucinação deve ser “mais do que a vivificação regressiva das imagens mnêmicas que se encontram em estado in- consciente” (p. 86)57. E por último, a verdade da alucinação-percepção está ligada mui- to mais a alguma coisa que se difrata no interior do aparelho e irrompe como uma rea- lidade opaca e difusa, do que ao lugar que o mecanismo alucinatório ocupa no fenôme-

no do conhecimento e consequentemente à sua posição relativa no sistema hierarqui- zado de objetos inteiramente positivos. É, antes, para algo da ordem do reconhecimen-

56 Vale lembrar aqui, com Bercherie (1989), a clássica distinção, introduzida por Leuret, e aperfeiçoada

por Baillarger, entre “as alucinações psíquicas (representação xenopática sem caráter estésico, onde, portanto, a teoria de Moreau [de Tours] e de Esquirol era válida) e as alucinações psicossensoriais, onde o caráter nitidamente estésico mostrava a intervenção dos aparelhos perceptivos e onde, portanto, a psicogênese era insuficiente, havendo a intervenção de um fator de ordem neurológica.” (p. 66-67). O caráter xenopático das alucinações, a partir do qual Clérambault, mestre de Lacan em psiquiatria, formu- la o conceito de “automatismo mental”, conota o “sentimento de que as coisas nos vêm de fora, as pala- vras e os pensamentos são escutados” (Miller, 1997, p. 131)

57 Uma primeira resposta à questão que nos colocávamos acima sobre a pertinência da hipótese de uma

generalização do fenômeno alucinatório ao conjunto da vida psíquica seria a de que o caráter estésico das alucinações não esgota a função e a significação das alucinações para uma teoria do psiquismo in- consciente.

103 to, ou melhor dizendo, do desconhecimento, do desconhecido, que a alucinação aponta na minúcia do texto freudiano.

Que a percepção seja concebida como algo de elementar, quer dizer, dado de saída, anterior ao surgimento do menor sinal de consciência, a questão que advém daí é a de saber de que maneira os fenômenos perceptivos podem designar, na dinâmica psíquica, algo mais do que o mero efeito da capacidade receptiva dos órgãos sensori- ais, e a alucinação, mais do que a reativação sensorial das imagens mnêmicas. Em ou- tras palavras, trata-se de dar conta da relação que se estabelece entre percepção e alu- cinação no que diz respeito à realidade dos fenômenos psíquicos. Para as psicologias associacionistas, isso evidentemente não é um problema, já que, como vimos anterior- mente, a “realidade verdadeira” só comporta fenômenos que podem ser verificados por um sistema de referências que é aquele das operações do conhecimento racional (asso- ciação, julgamento, consciência, etc.). Ao que não se pode verificar por esse sistema, não resta senão a alcunha de “ilusório”.

Se bem que contemporize, em alguma medida, com o sensualismo das psicolo- gias da associação, Freud não se não se contenta com a pseudo-oposição entre “reali- dade verdadeira” e “realidade ilusória”58. Verdadeira ou ilusória, a realidade possui uma estrutura, implica uma ordem positiva na qual os fenômenos se produzem. E a- preender essa ordem, exige, antes de mais nada, deslocar os termos do problema: não se trata submeter os fenômenos psíquicos aos critérios de certeza, evidência e não- contradição (E. p, 83) com os quais a ciência clássica – leia-se, cartesiana – acreditava poder circunscrever todo o campo da racionalidade, mas de seguir a lógica de sua constituição, extraindo os efeitos que ele impõe na experiência e inserindo-o numa cadeia de determinações simbólicas, isto é, conceituais. É dessa forma, a nosso ver, que Freud procede no que concerne à questão das relações entre percepção, alucinação e realidade.

O caráter alucinatório das primeiras percepções não se explica num nível estri- tamente tópico – o investimento de φ a partir de ψ. É preciso, mais do que isso, que levemos em conta os efeitos econômico e temporal que a alucinação introduz: respec-

58 A respeito do termo “realidade verdadeira”, Lacan dirá que não passa de uma “contradição in adjec-

to”. Diz ele: “Que uma coisa exista realmente ou não, pouco importa. Ela pode perfeitamente existir no sentido pleno do termo, mesmo que não exista realmente. Toda existência tem, por definição, algo de tão improvável que, com efeito, a gente fica perpetuamente se interrogando sobre sua realidade” (S II, p. 288)

104 tivamente, insatisfação e expectativa. Insatisfação, pois, como já dissemos, não po- dendo reconhecer o objeto percebido-alucinado como “não-real”, o aparelho desenca- deia a ação motora, permanecendo no estado de tensão original (Pr, p. 197). E expecta-

tiva, pois a “desilusão” e o desprazer advindos dessa descarga em falso impõem uma nova coordenada para a satisfação: a de que o objeto encontrado “dentro” (φ ← ψ) deva ser re-encontrado “fora”, na realidade externa (← φψω →). Instaura-se, a partir daí, um horizonte temporal que se traduz num estado permanente de expectativa pelo reencontro com o objeto na percepção. À articulação entre insatisfação e expectativa, Freud chama “desejo”. E é à regressão alucinatória que ele atribuiu sua realização pri- mordial:

A criança faminta chorará ou se debaterá desamparadamente. Mas a situa- ção permanece inalterada, pois a excitação proveniente da necessidade in- terna não corresponde a uma força que percute de maneira momentânea, mas a uma que atua de maneira contínua. Apenas pode ocorrer uma mudan- ça quando, por uma via qualquer – no caso da criança, por uma assistência alheia –, se faz a experiência da vivência de satisfação, que elimina o estí- mulo interno. Um componente essencial dessa vivência é o surgimento de certa percepção (no exemplo, a percepção da nutrição), cuja imagem mnê- mica daí por diante fica associada com o traço mnêmico da excitação da ne- cessidade. Tão logo essa necessidade reapareça, resultará, graças à ligação estabelecida, uma moção psíquica que pretende investir outra vez a imagem mnêmica daquela percepção e causar novamente a própria percepção, ou se- ja, na verdade restabelecer a situação da primeira satisfação. Uma moção dessas é o que chamamos desejo [Wunsch]; o reaparecimento da percepção é a realização do desejo [Wunscherfüllung], e o investimento pleno da per- cepção por parte da excitação da necessidade é o caminho mais curto para a realização de desejo. Nada nos impede de supor um estado primitivo em que esse caminho é realmente percorrido dessa maneira, ou seja, em que o deseja termina num alucinar. Portanto, essa primeira atividade psíquica visa uma identidade perceptiva, isto é, a repetição daquela percepção que está ligada à satisfação da necessidade (InS, p. 594)

Pela alucinação, o mundo da percepção perde seu caráter presumidamente neu- tro – isto que, de certa forma, está subentendido na localização dos processos percep- tuais na extremidade sensorial (Pcpt.), como anteriores a toda atividade psíquica – tornando-se, assim, o próprio mundo do desejo. A pretensa neutralidade da percepção desaparece no momento mesmo em que a “realização do desejo” se impõe como efeito econômico e temporal da regressão alucinatória. A atividade perceptiva permanecerá, doravante, indissociavelmente ligada a essa “moção” que impulsiona o psiquismo a

105 presentação, como lembrança inconsciente, o que nos impede de conceber o percebido como algo de originário, dado de saída, quer dizer, limitado à extremidade sensorial do aparelho. Decorre daí que, vista sob a perspectiva do desejo, a concepção sensualista- associacionista da percepção se deforma: a clareza e a imediatez com a qual algumas doutrinas empiristas acreditavam poder definir a noção de sensação, e a partir dela induzir as funções psíquicas, se desfaz em um complexo movimento cuja direção não é unívoca, cujo ritmo não é constante, e no qual os objetos se definem menos por sua posição espacial do que pelo horizonte temporal em que se inscrevem.

É verdade que a experiência à qual Freud se refere na citação acima já havia si- do descrita no Projeto, quer dizer, ao nível do “primeiro esquema” do psiquismo, sob a insígnia da “vivência de satisfação” (Pr, p. 195-197). Mas aqui, no escopo do “segundo esquema”, Freud diz que “o reaparecimento da percepção é a realização do desejo” (Wunscherfüllung), ao invés de afirmar simplesmente, como o faz no Projeto, que a imagem mnêmica é “afetada pela animação desiderativa” (Wunschbelebung)59. Parece- nos que há aí uma diferença importante. O termo “realização” aponta para o fato de que a alucinação do objeto que satisfaria as precisões do organismo inaugura um do- mínio no qual aquilo que não tem existência no mundo externo, possui, no entanto, realidade. Assim, ao contrário de ser simplesmente tomada como um obstáculo à satis- fação das necessidades do organismo, a alucinação é precisamente o que inaugura, no psiquismo, uma possibilidade de realização a despeito da in(existência) do objeto no mundo externo: a realização do desejo, no sentido em que ela deve ser entendida na experiência analítica – no de tornar real uma insatisfação. E, uma vez a necessidade prolongada em desejo, o objeto que a satisfaria torna-se irremediavelmente perdido. Mais precisamente, com a alucinação do objeto da necessidade, ele se converte em

objeto de desejo, na medida em que, reevocando-o, antecipa-se a presença de algo que não está mais presente. O que não quer dizer que o objeto tenha realmente estado pre- sente ou existido – e “nada nos impede de supor” que ele o tenha – mas apenas que sua

59 “Assim, origina-se, por intermédio da vivência de satisfação, uma facilitação entre duas imagens

recordativas e os neurônios nucleares que, no estado de incitação, são ocupados. Com a eliminação {própria} da satisfação, a Qn também é, sem dúvida, retirada das imagens re[cordativas]. Com o reapa- recimento do estado incitante ou desiderativo, a ocupação prossegue agora também para ambas as re[cordações] e as anima. A imagem recordativa do objeto é certamente a primeira a ser afetada pela

106 existência é inessencial no que concerne à constituição da realidade psíquica. É o dese- jo, diz Lacan, que é “a essência da realidade” (S XIV, p. 19).

Com efeito, desejar é, originariamente, alucinar. E, se é verdade que a alucina- ção constitui o sistema de referência sem o qual “nenhum mundo da percepção chega a ordenar-se de maneira válida” (S VII, p. 68), não nos parece exagerado dizer que per-

ceber é desejar. Não queremos, com isso, sugerir que percepção e desejo sejam pro- cessos psíquicos idênticos, ou que somente percebemos aquilo que desejamos. Antes, trata-se de situar o fenômeno da percepção no interior de um movimento psíquico que se caracteriza pela negativização dos objetos empíricos “inéditos”, à procura de um objeto que seja capaz de repetir a satisfação originária, da qual o “caminho curto” da alucinação não oferece senão a face imajada e evanescente.

Depreende-se do exposto acima ao menos duas consequências: (i) a percepção é marcada pela dimensão da falta, da negatividade; (ii) o percebido se constitui numa relação de tensionamento entre as imagens perceptivas, as imagens mnêmicas e o lugar do objeto de desejo60. Tentaremos desenvolver, mais adiante, essas duas consequên- cias. Desde já, entretanto, poder-se-ia resumi-las dizendo que a percepção se dá sobre o fundo de uma tomada de posição em relação ao problema da satisfação, ou, o que dá no mesmo, da insatisfação.

A estrutura temporal do desejo, descortinada pelo esquema do aparelho psíqui- co da Interpretação dos sonhos, abre as comportas de uma verdade inaudita pelo pen- samento filosófico e psicológico até Freud: aquilo que não existe, o objeto “alucinado- percebido”, está aí para testemunhar o que há de frágil e improvável na existência da- quilo que, para existir “realmente”, precisa excluir seu passado, a história tateante e titubeante de sua constituição. A relação do homem com o mundo, diz Lacan, “tem algo de profundamente, inicialmente, inauguralmente lesado” (S II p. 212). Nesse sen-

60 Em última análise, podemos dizer que a emergência do lugar do objeto de desejo é correlativa da

defasagem estrutural entre percepção e memória; nos termos do “primeiro esquema” freudiano, entre φ e ψ. Do ponto de vista econômico, o lugar do objeto de desejo designa o efeito da discordância, constituti- va do psiquismo, entre o que é rememorado e o que é dado na percepção atual. Essa discordância, na medida em que institui um lugar vazio em torno do qual as representações psíquicas se articulam, surge como uma condição fundamental para o reinvestimento das imagens mnêmicas da percepção e, conse- quentemente, para a satisfação alucinatória da qual o desejo é o herdeiro. A nosso ver, é em virtude da necessidade teórica de se manter esse lugar vazio no interior do aparelho, que Lacan, comentando a tentativa de Freud (1950[1896]/1996), na Carta 39 de 01.01.1896 a Fliess, de interpor o sistema ω (a consciência) entre a percepção (φ) e a memória (ψ), adverte que não é aí que se deve situá-lo, já que é a possibilidade de o sistema ψ penetrar diretamente no sistema φ – portanto, de alucinar – que inaugura a busca pelo objeto do desejo enquanto objeto a ser, não encontrado, mas reencontrado (S VII, p. 65).

107 tido, a alucinação não exprime outra coisa senão que, “do psiquismo, é a insatisfação que constitui o elemento primordial” (Lacan, 2001[1967] / 2003, p. 354).

Mas, afinal, se a alucinação é o princípio elementar do funcionamento psíquico, de que maneira o aparelho poderia escapar dessa “falsa realidade” à qual o fenômeno alucinatório da percepção predestina o organismo humano (S VII, p. 55)?