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REPRESENTAÇÃO IMAGÉTICA NO SÉCULO XVII: LEITURA E INTERPRETAÇÃO LEITURA E INTERPRETAÇÃO

No documento Iconofotologia do barroco Alemão (páginas 104-200)

Leituras pré-iconográfica, iconográfica e iconológica

ara se compreender uma mensagem é necessário que os dois elementos da comunicação – o emissor e o receptor – possuam, evidentemente, um código comum, para que se possam estabelecer relações mínimas de compreensão. Isso não é válido somente ao se fazer uso da linguagem verbal, mas também para toda comunicação humana, seja por meio de gestos, sinais, olhares ou imagens. No entanto, devido à dinamicidade da língua, à arbitrariedade do signo lingüístico e ao fato de este também não ser uma entidade estanque, apesar de convencional, a língua não consegue se defender dos deslocamentos imputados ao signo lingüístico (Cf. Saussure, 2006, p. 90), sofrendo mutações no correr dos tempos. Dessa forma, uma palavra não só poderá sofrer acréscimos ou supressões de fonemas ou letras (modificando seu significante)105 como poderá também ter um deslocamento da

relação significante x significado. Assim, o λόγος rompe o casulo sígnico e se abre a outras especulações.

Conforme afirma Saussure, esse rompimento se dá, primeiramente, por meio da fala, pois para o lingüista suíço, toda modificação diacrônica da língua é ocasionada justamente por ela (Cf.: ibidem, p. 115), quando alguns indivíduos de uma comunidade fazem dessa alteração a norma106; porém, essa relação não é percebida pela consciência coletiva (Cf.: ibidem, p. 116) de imediato, afinal essas alterações nunca se efetuam em bloco, mas em elementos, digamos, aleatórios dentro do sistema que é a língua. (Cf.: ibidem, p. 102)

A arte, enquanto expressão de uma coletividade, também se deixa influenciar pelas mudanças de postura da própria sociedade em que está

105 Saussure comenta a esse respeito quando fala da regularidade das mudanças fonéticas (Cf.: Saussure, op. cit. p.167 ss.)

106 Algo parecido com o sentido do lingüista Coseriu, que propôs um acréscimo à dicotomia saussuriana, cuja tricotomia vai do mais concreto (fala, uso individual da norma) ao mais abstrato (língua, sistema funcional), passando por um grau intermediário: a norma (uso coletivo da língua).

inserida, bem como da influência do tempo que, implacável, tudo modifica, inclusive a relação entre a própria arte e seu artífice. Este se torna um representante dos anseios de sua sociedade, na medida em que não só externa os anseios de sua Weltanschauung, como também serve de elo entre os homens e sua divindade. Não se quer dizer, contudo, que os artistas sempre desfrutaram de boa reputação, inclusive na base da sociedade ocidental, a cultura grega. Na Grécia, por exemplo, exaltavam-se as estátuas do τεχυίτης – como Fídias –, porém este era menosprezado por ser um mero artífice, alguém que apenas domina a τέχυη mecânica. Afinal não é porque a obra oferecia prazer que os artífices deveriam ser dignos de estima, pelo contrário: dificilmente passaria na cabeça dos jovens das famílias tradicionais a vontade de ser um artista, um τεχυίτης. Ao poeta, também não restava tanta consideração, pelo contrário, da mesma forma que os artífices, sua obra era exaltada, o poeta não. Isso devido ao fato de que a obra poética não dependia das próprias faculdades do poeta, mas da inspiração107, ou seja, o poeta não era filtro do meio em que estava, mas da divindade a que estava submetido.

Se a inspiração para Platão em A República era sinal de falta de conhecimento próprio, do jogo dos deuses em relação aos homens, cujo fim é o encantamento e a distância das coisas sérias, mas não conduz à sabedoria e a virtude, pois envolve o homem num mundo onírico e irreal; o mesmo não pode ser dito dos românticos, seu extremo oposto.108 Para os românticos, a

finalidade da poesia era elevá-la a sublime fonte donde ela emana, isto é,

Deus, porque o poeta sem religião e sem moral é como o veneno derramado na fonte (Gonçalves de Magalhães, apud, Martins, 1977/78, v. II, 546 p.), ou

107 Pode-se dizer, portanto, que o resultado do processo artístico provém de dois saberes: de um lado o saber racional ou técnico, de outro o irracional que provém da inspiração. Quando o artífice constrói um navio, utiliza de seus conhecimentos adquiridos via τέχυη juntamente com a razão, no entanto, como a inspiração proveria de outrem e não de capacidades próprias, essa escaparia do domínio da razão.

108 Evidentemente o salto é gigantesco, entretanto ilustra duas visões bem particulares de mundo: se em uma – na grega – vigora a aristocracia, cujos princípios serviram de base para grande parte da sociedade ocidental, com sua visão – para nossos dias – excludente e princípio social estamental; na outra, temos a incipiência do fato burguês, quando se instaura uma outra realidade sócio-econômica e cultural no ocidente. Dessa forma, se avançarmos alguns séculos e desde o ponto de vista literário, também poderíamos ter duas visões diferentes, dois extremos: de um lado o Classicismo – inserido também no continuísmo aristocrático – que visava àquela realidade extemporânea; de outro o Romantismo – com sua visão burguesa. Esta, porém, teve a necessidade de um intermezzo que foi o Arcadismo – tentativa, digamos, infantil de a burguesia se apropriar dos conhecimentos clássicos da moribunda aristocracia – para, finalmente, aflorar um novo e dinâmico correr literário que veríamos posteriormente, quando as amarras do mimetismo foram desatadas.

seja, tais poetas eram o sinal de sua superioridade frente aos outros homens: o

poeta quando canta, não é um mortal, mas o ‘Arcanjo da justiça eterna’

(ibidem, p. 223), mais que um elo com o divino, ele próprio tem participação nessa vida divina via sua criação: ele cria, seu λόγος transcende, tem vida.

A afinidade entre o poeta e o divino também se modificou, de forma profunda, na arte moderna. Se no Romantismo o poeta estaria um degrau acima dos meros mortais, agora o artista é o próprio deus e sua obra, objeto de veneração, já que Deus, o simbólico, o mítico são, simplesmente, ignorados pela nova expressão artística:

Toda a história da arte no ocidente, especialmente a partir do Renascimento, conta e mostra os recuos sucessivos do sagrado em proveito de uma autonomia vivida como uma liberação cada vez maior dos constrangimentos religiosos e morais. Mas com a arte moderna, o momento originário ao qual a obra remete não é definitivamente mais aquele da criação (nem aquele do ato sacrificial que funda a unidade simbólica da comunidade); é aquele do ato de figuração em si mesmo. Ato que remete, efetivamente, a uma ‘presença real’, mas que nada tem de divino, de mítico, de mitológico, de histórico, mas nada de transcendente, já que ela nada mais é que a presença do artista, desmesuradamente expandida, perfeitamente soberana, mas imanente e fechada sobre si mesma. (Couchot, op. cit., pp. 145-146)

Ao abandonar o mítico, a obra de arte cria um fosso imensurável entre si e o público, ou seja, esse rompimento que deveria ser passageiro, curto, momentos de explosão, de tempestade como as vanguardas devem ser, para que se efetue a posterior bonança, ou seja, seu aprimoramento, não ocorreu, pelo contrário; estende-se num eterno continuum:

Se a imitação se torna simples repetição, o diálogo cessa e a tradição se petrifica; e do mesmo modo, se a modernidade não faz a crítica de si mesma, se não se postula como ruptura e só é uma prolongação do ‘moderno’, a tradição se imobiliza. Isto é o que sucede com grande parte da chamada ‘vanguarda’. A razão é clara: a idéia de modernidade começa a perder sua vitalidade. (Paz, op. cit., p. 134)

O artista de mero artífice, de mero instrumento, tornou-se divino, superior à obra, ou nas palavras de Harold Rosenberg, grande demais para a

arte (Rosenberg, apud Couchot, op. cit., p. 126), ou ainda o próprio demiurgo,

utilizando o conceito platônico; a obra artística, uma fênix que tem de perpetuar-se, indefinidamente, enquanto expressão solitária e única, à semelhança do primeiro hieróglifo mostrado por Horapolo (fig. 14), segundo o qual os egípcios, quando queriam designar eternidade, representavam um basilisco mordendo, continuamente, sua própria cauda: eis a arte moderna. Livre das preceptivas miméticas, torna-se, no entanto, refém de uma procura ininterrupta por originalidade numa perpetuação massificante, quando é obrigada a se manter num eterno vanguardismo, logo numa contínua rejeição ao passadiço. No entanto, ao esvaziar-se de toda ligação com o passado, inclusive com o sagrado, a arte imagética, por exemplo, apaga toda sua significação fundamental que era, exatamente, dar ao homem acesso ao ininteligível, à mítica realidade; ou, ainda, o prazer estético que a fruição das obras nos proporcionava, como o de reconhecer nela seu original (Cf.: Aristóteles, 1996, p. 33) via ί ησις.

No entanto, ao apagar tais elementos, sacraliza-se109 a ruptura entre o deus artista e seus fiéis, já que esses não conseguem acompanhar essa nova

109 Couchot nos diz que: A vanguarda responde por artifícios à dessacralização dos rituais

provocados pelas mídias de massa e pela sua tecnologização que suprime o caráter único das obras de arte. Trata-se de reinventar o sagrado ou substitui-lo por qualquer coisa que dê a ilusão dele, ainda que o negando. Também a arte moderna (...) é assombrada pelo sagrado. Mas este (...) toma as formas simbólicas de substituição. Uma dessas formas é a presença do artista, de sua pessoa, que tende a se confundir com a obra e busca atribuir-lhe sua unicidade de indivíduo (...). (Couchot, op. cit., p. 148)

Com sua presença ratifica-se à idolatria do autor, quando transforma seu próprio λόγος, enquanto emanação do Ser, em obra, tentando-se assemelhar ao λόγος divino. No entanto, nem sempre essa tomada de lugar do divino alcança seus objetivos e, por isso, o artista tem de buscar outros meios para que possam satisfazer o anseio de seus fiéis como a utilização da ciência e da técnica. A ciência, todavia, é utilizada não pelo que é ou representa, mas por aquilo que não é como a magia e o mistério: a arte então se torna uma ciência, mas uma ciência inverificável, um conhecimento revelado, um evangelho. (Ibidem, p. 148)

religião, presos que ainda estão a antigos conceitos. Da mesma forma que esses fiéis são desprezados pelos deuses neófitos, estes ignoram a relação intrínseca estabelecida pelo signo. Apesar de este em um poema sofrer deslocamentos metafóricos em seus constituintes, suas imagens dão prazer, afinal ainda representam o mundo de onde provieram e este ainda é acessível aos pobres mortais. Entretanto, vemos seu esvaziamento, continuamente, nas várias tendências artísticas da pós-modernidade, sua desconstrução sígnica, inclusive do próprio λόγος, impedindo a relação irremediável entre obra e leitor. Iser nos fala que a relação entre o leitor e o texto, por exemplo, caracteriza-se por um envolvimento direto e por se transcenderem justamente por esse envolvimento. (Cf.: Iser, op. cit,. pp. 12-13) No entanto, como podemos nos envolver quando o que temos diante de nós parece não nos dizer absolutamente nada?

Sem alegria, sem prazer num mundo polissêmico e repleto de cacossemia: muitas vezes sentimo-nos assim diante do mundo que nos rodeia. A relação do homem com o mundo mudou, o mesmo serve em relação ao divino e consigo mesmo; também mudou sua relação com a arte e com aquilo que consideramos arte. Dessa forma, como podemos acreditar que seja possível simplesmente abrir um livro de outras épocas, ler e absorver tudo com os olhos que temos hoje, se muitas das verdades e daquela Weltanschauung não nos dizem nada mais? Entramos no futuro, por isso necessitamos de uma máquina do tempo para poder compreender qual o valor das imagens/conceitos presentes no imaginário seiscentista para que possamos confrontá-lo com aquilo que nós mesmos cremos hoje; para essa viagem é mister conhecer sua iconografia e iconologia, para que também nós não nos percamos na polissemia daquele momento.

Para a análise das obras pictóricas presentes nesta tese, vamos utilizar os preceitos oferecidos pelo teórico de arte alemão Erwin Panofsky (1892- 1968), para quem é possível identificar três níveis no tema ou significado de uma obra de arte, a fim de que possamos compreender seus conceitos de

iconografia e iconologia:

a) tema primário ou natural (descrição pré-iconográfica): identificação das formas básicas110 de uma expressão artística, tendo por base nossa

experiência prática: cores, linhas e volumes; materiais identificados com as formas animadas ou inanimadas (homens, animais, plantas, objetos etc) como bronze, madeira, pedra; percepção de alguns modos de expressão – alegria, tristeza, raiva;

b) tema secundário ou convencional (descrição iconográfica): ligação de motivos artísticos e suas combinações com assuntos ou conceitos que podem ser reconhecidos como portadores de significados, como as alegorias; pressupõe, portanto, familiaridade com temas ou conceitos específicos (imagens católicas retratadas com uma palma nas mãos representam martírio, por exemplo), ou seja, demanda busca de conhecimentos prévios para sua interpretação111;

c) significado intrínseco ou conteúdo (descrição iconológica): apreensão de princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, de um

período, classe social, crença religiosa ou filosófica (Panofsky, op. cit., p. 52),

dessa forma requer mais do que familiaridade com determinados conceitos, ou, como diz Panosfky, temos de ter uma faculdade mental comparável à de um

clínico nos seus diagnósticos. (Ibidem, p. 62) Deve-se, portanto, buscar as

respostas para possíveis questionamentos na obra, não apenas e exclusivamente em uma única, mas no grupo de obras, a que devota sua

atenção, com base no que pensa ser o significado intrínseco de tantos outros documentos da civilização historicamente relacionados a esta obra ou grupo de obras quantos conseguir: de documentos que testemunhem as tendências políticas, poéticas, religiosas, filosóficas e sociais da personalidade, período ou país sob investigação. (Ibidem, p. 63)

A partir desses pressupostos, definiremos o que entendemos por iconografia e iconologia, para que possamos dar continuidade a este trabalho. Como a própria origem etimológica nos deixa antever, a palavra iconografia já traz em si a palavra imagem – εἰκών –, porém esta vem acrescida de γραφή –

110 Puras para Panofsky.

111 No entanto, tal conhecimento prévio pode não garantir a totalidade da interpretação, já que podem haver variáveis de percurso, conforme exemplo dado por Panofsky acerca da pseudo- figura de João Batista degolado. (Cf. Ibidem, pp. 59-62)

escrita, ou seja, implica em si um método basicamente descritivo e estatístico. A preocupação da iconografia é a de descrever e classificar imagens, portanto

é um estudo limitado e, como que ancilar, que nos informa quando e onde temas específicos foram visualizados por quais motivos específicos. Diz-nos quando e onde o Cristo crucificado usava uma tanga ou uma veste comprida; quando e onde foi Ele pregado à Cruz, e se com quatro ou três cravos; como o Vício e a Virtude eram representados nos diferentes séculos e ambientes. (Cf. Panofsky, op. cit., p. 53)

Enquanto a iconografia paira sobre a superfície da obra artística, a iconologia vai mais fundo, dirige-se ao método interpretativo e, exatamente, por adentrar no mundo do λόγος, que cria a racionalidade, o mundo mítico, o mundo da poesia, o mesmo que vai além da linguagem comum e entra no mundo mágico das abstrações alegóricas e metafóricas à procura que está da ordenação do caos da formação do eu individual, a partir de sua consciência. É como se o λόγος saísse à busca de sua cara metade que se perdeu na natureza (quando ele ainda pertencia a ela) e tivesse adquirido corporeidade via ί ησις. Esse é o maravilhoso mundo da iconologia, pois

sempre que a iconografia for tirada de seu isolamento e integrada em qualquer outro método histórico, psicológico ou crítico, que tentemos usar para resolver o enigma da esfinge. (Ibidem, p. 54)

A mesma que aparece diante de nós e nos pergunta: quem sou eu? Que represento para você? Estou no lugar de quem ou de quê? Decifra-me ou devoro-te!112 Dessa forma, a iconologia ultrapassa a mera análise superficial e incide com a síntese, convertendo-se em parte integral do estudo da arte, uma vez que não se limita ao mero levantamento estatístico preliminar. Faz-se necessário, portanto, muito mais do que ver e conhecer as iconologias existentes no século XVII, buscar sua relação com o homem dos Seiscentos e a interferência que esse sistema teria em nossa compreensão daquele mundo, a partir de sua relação estabelecida entre a palavra e a imagem.

Há uma imagem (fig. 15), que consideramos uma das mais belas do Barroco, exatamente por, aparentemente, não corresponder ao lugar-comum que temos das imagens do período, obra do escultor espanhol Pedro de Mena (1628-1688), que nos servirá para iniciarmos esta viagem pelo mundo dos Seiscentos.

112 A citação refere-se à tragédia de Sófocles, Édipo Rei, quando a esfinge dirige-se a Édipo com a seguinte pergunta/enigma: Qual é o ser que, tendo uma única voz, ora caminha com dois pés, ora com três, ou ainda com quatro, e que é tanto mais fraco quantos mais pés tiver? Prontamente respondida por Édipo: o homem. Para Cesare Ripa, todas as alegorias deveriam ser nomeadas, entretanto ao retirar-lhe o nome, ela se torna um enigma.

Sem nos ater ao nome da obra, mas somente a uma descrição direta do que podemos ver, ou seja, fazendo nossa descrição pré-iconográfica, é possível levantarmos alguns aspectos da imagem:

a) Temos uma imagem esculpida na madeira;

b) Uma mulher, recurvada, cujos olhos estão fixos em direção a um crucifixo;

c) Seu rosto transmite um aspecto grave, de dor ou sofrimento; possui cabelos longos, desgrenhados;

d) Sua mão direita está direcionada ao peito; sua mão esquerda segura o crucifixo;

e) Está com um vestido reto, longo, cingido com uma corda em laço; f) Pernas separadas, a esquerda na frente, a outra atrás; pés

descalços.

Além do aspecto da beleza plástica evocada e das características descritas acima, a obra não nos passaria nada além do exposto, afinal não há nada nela que poderia nos chamar a atenção. Talvez a singularidade da cor do vestido (lembra aspectos dourados) que sequer o é, pois podemos verificar, próximo aos pés, que parece mais uma túnica cingida por uma corda do que, propriamente, um vestido, que seria uma peça única.

Ao passarmos para a análise iconográfica, estamos propensos a constatar que a imagem tenha um cunho religioso, devido, evidentemente, ao crucifixo na mão esquerda da mulher, que o segura firmemente, demonstrando um devoto sentimento. Logo observamos que essa mulher não é qualquer mulher, mas uma que, segundo os Evangelhos, seguiu Jesus de perto. Sabemos isso devido ao título da obra: Maria Madalena. Inclusive foi uma das mulheres que estiveram ao pé da cruz juntamente com Maria, mãe de Jesus, e o apóstolo São João (Mt 27,56, Mc 15,40, Lc 23,49, Jo 19, 25) além disso, foi a primeira testemunha ocular da Ressurreição de Cristo (Mt 27,55-56; Mc 15,40- 41, Lc 23,49, Jo 19,25).

Poderíamos, inclusive, conjecturar que o ato de segurar o crucifixo poderia ser uma alusão a sua presença na crucificação de Jesus, algo como

uma rememoração de um ato consumado e presenciado que o artista quis imputar-lhe. Imagem retratada pelo poeta Angelus Silesius (1624-1664)113 em

Ans Kreuze Christi

Schau, deine Sünden sinds, die Christum, unsern Gott, So unbarmherzig verdammen bis in Tod.

Jedoch verzweifle nicht, bist du nur Magdalen, So kannst du seliglich bei seinem Kreuze stehn.

(Silesius. Cherubinischer Wandersmann, p. 605 [À cruz de Cristo

Veja, são estes teus pecados, que o Cristo, nosso Deus,/ tão cruelmente condenaram à morte./ No entanto, não te desesperes, tu és Madalena apenas,/ Assim tu podes ficar próximo a sua cruz.]

Talvez resida aí a alusão encontrada em Lc 7, 36-50, quando uma mulher, também pecadora, dirige-se a Jesus e lava-lhe os pés com suas lágrimas, secando-os com seus cabelos e cobrindo-os de beijos e perfume. Ainda conforme Silesius:

Von Maria Magdalena

Maria kommt zum Herrn, voll Leids und voller Schmerzen, Sie bittet um Genad und tut doch ihren Mund

Mit keinem Wörtlein auf; wie macht sies ihm denn kund? Mit ihrer Tränen Fall und dem zerknirschten Herzen.

(Silesius, op. cit., p. 883) [De Maria Madalena

Maria vem ao Senhor, repleta de sofrimentos e de dores,/ Ela pediu por misericórdia e sua boca/ Não se abriu com nenhuma palavrinha; como ela se fez entender?/ Com a queda de suas lágrimas e o coração esmagado]

Pode-se demonstrar que o ato de ter o crucifixo na mão, representasse que a retratada não quisesse se esquecer daquele ato, quando se projetariam

suas lembranças por meio de um objeto concreto. No entanto, teríamos aí um anacronismo: a utilização de crucifixos (a cruz juntamente com a representação de Cristo morto) apareceria na iconologia cristã por volta do século V, logo Maria Madalena já estaria morta há muito tempo. Por que então o olhar grave, se Jesus, apesar de sua morte, havia ressuscitado e estava vivo, sendo ela, inclusive, a primeira testemunha ocular? Aqui, temos de voltar aos Evangelhos, que nos dizem que Maria Madalena foi uma mulher de quem Jesus havia expulsado sete114 demônios. (Lc 8, 2; Mc 16,9) Quem sabe resida aí a resposta

No documento Iconofotologia do barroco Alemão (páginas 104-200)

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